Correio da Cidadania

Causas e desfechos da crise (2): possíveis cenários

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Cenário 1: um cenário neo-keynesiano

 

Os governos consertam o estrago do desperdício de liquidez, aumentando a liquidez. O governo americano investe em planos diversos, que somam trilhões de dólares de auxílio ao sistema financeiro e às maiores empresas produtivas em apuros. Apesar disso, a crise ainda se aprofunda durante algum tempo. Ela aumenta o desgaste do governo Obama, mas este ainda consegue manter uma liderança ativa. O desemprego preocupa no mundo todo. Ocorre uma tendência ao protecionismo, mas as nações se organizam em blocos para negociar saídas, a fim de salvar o comércio mundial. Depois de muita negociação e tropeços, os vários países e agentes econômicos conseguem compor alguns compromissos mais objetivos e eficientes.

 

À medida que isso acontece, começa uma recomposição paulatina dos ativos financeiros e das instituições de crédito. Os governos assumem uma atitude mais enérgica e ativa e regulamentam os mercados financeiros internacionais, via acordos multilaterais. Com dinheiro abundante, os preços disparam, mas o mundo se adapta à nova realidade. Esse surto inflacionário facilita uma retomada gradual do emprego, só que agora os salários reais são menores e, com o auxílio estatal às grandes empresas e instituições financeiras, aumenta a concentração de renda, dos grandes capitais e da força dos oligopólios e grandes organizações globais. Mas, com as pressões políticas pela proteção dos empregos, o processo de globalização crescente perde sua vitalidade e não progride muito além do que já havia conquistado antes da crise – ou progride um pouco mais devagar.

 

Em certos casos ocorrem excessos de interferência estatal e exageros burocráticos, mas os agentes econômicos ainda toleram isso, como um preço a pagar pela segurança da recuperação. Finalmente, a economia começa uma nova fase em que o desenvolvimento econômico é retomado, numa base tecnológica renovada e diferente. Algumas nações estão mais fechadas do que outras; o sistema financeiro mundial ficou parcialmente fragmentado – em alguns países o auxílio a ele assumiu a forma de uma estatização provisória, mas nem todos conseguiram estabelecer o que seria essa provisoriedade.

 

Cinco anos depois de detida a crise, nos Estados Unidos ainda se discute quais medidas o governo pode tomar com relação aos ativos comprados durante ela, sem que possa ser acusado de socialismo por uns ou de mercantilismo protecionista por outros. Na Europa, ainda sobraram divergências entre os velhos e os novos integrantes da UE com relação à diferenciação do socorro oferecido aos países do Leste, que ainda continuam relativamente atrasados.

 

Pergunta-se aqui: como um cenário assim se refletiria internamente no Brasil?

 

Cenário 2: A Grande Crise

 

Os governos tentam consertar o estrago do desperdício de liquidez, aumentando a liquidez. O governo americano investe em planos diversos, que somam trilhões de dólares de auxílio ao sistema financeiro e às maiores empresas produtivas em apuros.

 

Apesar disso, a crise ainda se aprofunda. A enxurrada de liquidez crescente começa a gerar aumentos de preços e facilita a mesma especulação que originou a crise antes de 2010, só que, agora, num contexto adverso de recessão. A crise ainda se aprofunda durante algum tempo. Ela aumenta o desgaste do governo Obama e este perde as suas condições de liderança internamente e no mundo. Começa a discussão sobre o valor real do dólar, desta vez em caráter mais sério, em fóruns internacionais. O desemprego preocupa no mundo todo. Ocorre uma tendência ao protecionismo e as nações se organizam em blocos para negociar saídas, a fim de salvar o comércio mundial.

 

O G-20, cindido, demonstra ser ineficiente. China e os árabes, preocupados com os efeitos que uma desvalorização do dólar pode causar às suas reservas, começam a diversificá-las, iniciando, na prática, a adoção de uma cesta de moedas e metais como padrão, no lugar do dólar americano. Isso deflagra a Grande Crise do dólar americano, que era justamente o que eles mais temiam. Com isso, a recomposição dos ativos financeiros, visada pelos auxílios trilionários dos governos às instituições de crédito, perde totalmente sua eficácia, com a desvalorização do dólar e o início de uma inflação descontrolada nos Estados Unidos e alguns países mais ricos, como a Grã-Bretanha. A Alemanha, avessa a qualquer idéia de inflação, fecha-se totalmente e a União Européia começa a cindir-se. Temerosos de sofrer ainda mais com as consequências disso, os governos se abrigam cada vez mais em barreiras alfandegárias e legislações protecionistas não-tarifárias.

 

As grandes empresas globais tendem a estagnar, presas num emaranhado de restrições nacionais contraditórias. As inovações tecnológicas tendem também a sofrer uma paralisação, devido ao fato de que a troca de informações e a abertura dos sistemas informacionais são praticamente enterradas atrás das fronteiras de países e blocos de países. Em muitos casos ocorrem excessos de interferência estatal e de exageros burocráticos, mas os agentes econômicos ainda toleram isso, pois não têm alternativa.

 

Finalmente, a Economia entra numa depressão, cujas consequências deixam o mundo mais parecido com a Europa medieval, dividida em feudos antagônicos, do que com as arrogantes previsões que os neoliberais previam para um mundo globalizado, antes da crise.

 

Pergunta: e o Brasil, como ficaria neste cenário? Voltaria a ser a colônia das sesmarias, com a indústria abalada e decadente, ou poderia talvez progredir e escapar da depressão, livre agora para explorar seus recursos e mercado internos, com base numa economia mais diversificada do que nas grandes crises dos séculos passados e numa ideologia neonacionalista ou neogetulista?

 

Cenário 3: As Guerras

 

Os governos tentam consertar os estragos do desperdício de liquidez, aumentando a liquidez. O governo americano investe em planos diversos, que somam trilhões de dólares de auxílio ao sistema financeiro e às maiores empresas produtivas em apuros.

 

Apesar disso, a crise ainda se aprofunda. A enxurrada de liquidez crescente começa a gerar aumentos de preços e facilita a mesma especulação que originou a crise antes de 2010, só que, agora, num contexto adverso de recessão. O G-20, cindido, demonstra ser ineficiente. China e os árabes, preocupados com os efeitos que uma desvalorização do dólar pode causar às suas reservas, começam a diversificá-las, iniciando, na prática, a adoção de uma cesta de moedas e metais como padrão, no lugar do dólar americano. Isso deflagra a Grande Crise do dólar americano, que era justamente o que eles mais temiam.

 

Ao mesmo tempo, fazendo as contas na ponta do lápis, os grandes estrategistas chegam à conclusão de que, diante de uma perspectiva de renovações de planos de recuperação de dois trilhões cada, com probabilidades igualmente renovadas de fracasso, é mais barato e mais produtivo investir-se numa guerra ou em várias guerras combinadas em escala global. Economistas lembram que a grande depressão dos anos 30 só foi superada com a II Guerra Mundial de 1939-1945 – em 1942, quando os Estados Unidos entraram na guerra, a dívida pública americana passou a 120% do PIB americano e os Estados Unidos saíram fortalecidos ao final.

 

As crises do Oriente Médio (Israel-Palestina, Irã, Iraque, Afeganistão, os ataques fundamentalistas radicais contra a dinastia saudita); a tensão das duas Coréias e a ameaça de intervenção do Japão; a tensão Paquistão-Índia e a interferência chinesa na crise asiática; os conflitos na África, com genocídios repetidos, a degringolada de governos locais e epidemia de AIDS; a rivalidade entre Estados Unidos, Rússia e China pela hegemonia no continente africano; novos atentados terroristas na Europa e nos Estados Unidos; tudo isso e outros acontecimentos mais ou menos localizados ofereciam oportunidades de conflitos, alianças, acordos e desacordos, expansões militares e mobilização mundial, lembrando a barafunda da Guerra dos Cem Anos na Europa, ou a luta de samurais e clãs pelo domínio da Corte Imperial no Japão durante o período medieval japonês.

 

Os governos são cada vez mais instrumentos de manipulação de grandes interesses financeiros internacionais, que investem e lucram pesadamente com a guerra. O temor do desemprego acaba devido à mobilização militar de multidões de desempregados, a produção industrial aumenta exponencialmente para sustentar o esforço de guerra, e os grandes financiadores e produtores de armas abastecem todos os lados envolvidos nos conflitos. Existem guerras locais, regionais e mundiais, e as alianças concebidas em cada nível por vezes são incompatíveis. Isso gera oportunidades de rompimentos de acordos, de traições de alianças e de mudanças de lado, sem uma definição clara de vencidos e vencedores. Os grandes oligopólios mundiais vicejam e a economia prospera. Em uma década, o mundo está devastado, mas a ameaça de crises econômicas e financeiras foi superada de vez. Ao final, a Paz retorna ao planeta, estabelece-se uma nova ONU 2.0, com uma globalização consolidada e esperança de um futuro promissor.

 

Perguntas a serem consideradas: o Brasil teria a ganhar ou a perder num cenário deste tipo? E se as coisas desandarem na(s) guerra(s) possível(is) e alguém inaugurar uma guerra nuclear, aonde isso vai parar?

 

As perguntas que deixamos em aberto ilustram o fato de que esses não são os únicos cenários possíveis e que, em cada caso, é possível desdobrá-los em subcenários aplicáveis ao Brasil, especificamente em cada contexto.

 

O leitor deverá notar também que existem dois cenários característicos que não estão considerados acima: o cenário "Lula" e o cenário "Socialismo".

 

O Cenário "Lula"

 

Primeiramente, o cenário, em que a administração Lula apostou, já está superado e pode ser descartado com segurança. É aquele que seria o preferido pelo establishment neoliberal e pelas instituições financeiras. Nesse cenário, você ignora o problema, não faz nada e as coisas se ajustam por si mesmas. É aquele em que a solução para a retomada do "desenvolvimento é uma questão de estado de espírito", como disse o professor Delfim Neto na televisão (entrevista ao Globo News em 12/10/2008). Como disse o Lula: se o tsunami econômico das nações ricas chegar aqui, mal será sentido como "uma marolinha". Então todos ficam aliviados e o Brasil inicia uma nova era de crescimento. Hoje já não se fala mais nisso.

 

O Cenário "Socialismo"

 

A esquerda não tem agenda coerente. Hoje, o que sobrou na agenda da esquerda é a luta pela carteira assinada (no Brasil), pelo apoio às centrais sindicais, pela sobrevivência do Mico-Leão, das baleias e dos passarinhos, pela preservação da Mata Atlântica, contra o Aquecimento Global etc. São lutas justas, mas pontuais.

 

É pouco. Qual o programa de esquerda que hoje sobrevive entre os que se dizem mais ou menos "socialistas"? A esquerda hoje é marxista, neomarxista, social-democrata (o que seria isso?) ou neokeynesiana?

 

O Socialismo venceu cabalmente o enfrentamento com o Capitalismo e o Fascismo no Século XX. Com isso, esvaziou-se de conteúdo. Obteve vitória de todas as suas reivindicações seculares, impostas à força ao Capitalismo, numa luta que começara na Revolução Francesa e, esperava-se, obteria o triunfo final com a Revolução Soviética.

 

Todas as suas reivindicações, listadas desde a I Revolução Industrial, foram incorporadas pelo Capitalismo acuado: jornada de 10 horas diárias (depois reduzidas a oito), repouso semanal remunerado e semana de 48 horas (depois reduzidas a 45 ou 40 horas ou 36 horas), direito à organização sindical, direito a férias, seguridade social e direito à aposentadoria, direito à greve, liberdade de associação etc.

 

O irônico é que, sendo o grande vencedor do Século XX, o Socialismo ficou consagrado como o grande perdedor, devido à queda do muro de Berlim e do chamado Socialismo Real no final do século (como se existisse algum outro irreal).

 

Com isso, o Capitalismo Financeiro ficou livre para desfazer todas essas conquistas dos últimos cem ou duzentos anos e voltar a impor as mesmas condições de trabalho em que nasceu e floresceu entre os séculos XVIII e o XIX, com o outsourcing (delegação de projetos por tarefa para equipes de fora da empresa, por empreitada temporária), off-shoring (outsouring transnacional, na procura de países com menos regulamentos, burocracias, impostos, sindicatos e controles), terceirização, a liberdade de trânsito de capitais sem a correspondente liberdade de trânsito de pessoas em nível mundial, tudo isso acoplado às novidades esotéricas de papéis, títulos e alavancagens do sistema financeiro que nos levaram a esta crise.

 

Assim, ele faz as pessoas voltarem às jornadas de trabalho de 16 e 20 horas diárias, à semana de 60 horas, à desistência de férias (ou "venda" de férias), à diminuição de salários, à robotização e ao desemprego crescentes, e por aí vai.

 

Norbert Wiener, que criou o termo "Cibernética" e apontou as condições do seu desenvolvimento, alertou, ainda em 1948, que o sindicatos deveriam estar atentos às perspectivas que a (então) futura revolução cibernética apresentava aos trabalhadores e ao emprego (cf. "Cybernetics or Control Communication in the Animal and the Machine", Wiley & Sons, NY-London, 1948-1961). Esse alerta se perdeu entre os especialistas. E hoje, chegamos aonde chegamos. Nota minha: Norbert Wiener nem era socialista nem era de esquerda. Celebrizou-se "apenas" como criador da Cibernética.

As condições, antes impostas aos mais pobres e humildes migrantes rurais para os centros urbanos onde se desenvolvia a Revolução Industrial, agora são disputadas por uma classe média com boa formação. Nos países mais ricos, a mão-de-obra operária, esperança da revolução socialista no início do século passado e base de uma estrutura sindical cada vez mais esvaziada, encontra-se inerme diante da globalização. Como, na Alemanha ou nos Estados Unidos, pedir aumento de salário e proteção social a empregadores que podem pagar poucos dólares mensais para a mesma tarefa na China, sem encargos sociais adicionais?

 

No Brasil (como no resto do mundo), a moçada que sai da faculdade disputa, ávida, a oportunidade de ser explorada como os operários do século XVIII. Só que, agora, em salas com ar condicionado, cafezinho, prestígio do empregador global e outras mordomias (como salas de recreação dentro da empresa, para que não gastem tempo desnecessário procurando aliviar tensões com a chefia) etc.

 

O trabalho sujo, aquele que machuca mesmo, vai ser feito em algum lugar hipotético como Vietnã, Malásia, interior da China, África. Algo semelhante, no que nos concerne em nosso dia-a-dia, ao Second Life.

 

Qual é a visão de futuro viável, realista e atual, que a Esquerda contrapõe a essa?

 

Não sei. Acho que essa é a discussão que falta na Esquerda, para completar um quarto cenário.

 

Para ler primeira parte deste artigo, clique aqui.,

 

Pergentino Mendes de Almeida é diretor da LPM, empresa de pesquisas atuante desde 1969. Website: http://www.lpm-research.com.br/home.htm

 

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