Correio da Cidadania

Carta à ministra dos Direitos Humanos pede fim de uso de armas “não letais”

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À Ministra Maria do Rosário,

É uma vergonha o descaso do Estado brasileiro com a falta de regulamentação do emprego de armas menos letais em nosso país. É sim, um grande nicho de mercado que se desenvolve, sem planejamento, sem educação para o uso conseqüente e balizado em práticas democráticas e de direitos humanos, sem estudo sério e independente sobre o impacto à saúde dos cidadãos, bem ao gosto da cultura de capitão do mato. O conseqüente emprego em TORTURA destes armamentos é hoje, apesar das poucas denúncias que vêm à tona, uma realidade que foge ao controle do Estado, situação esta criada pelo próprio governo que liberou o emprego massivo destes armamentos, de forma irresponsável e criminosa. Somando a impunidade dos torturadores de ontem e de hoje e o corporativismo das forças de segurança, das corregedorias e da própria justiça, o cidadão se vê à mercê da arbitrariedade, do preconceito e de práticas de terrorismo de Estado, que perduram em nossas instituições.

Há mais de ano que estamos denunciando esta situação, inclusive em audiência pública na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo em que a ministra esteve presente e de público garantiu que iria se empenhar em resolver a situação, criando um grupo de trabalho interministerial para regulamentarmos o emprego e uso destes armamentos. Nada foi feito e neste meio tempo várias pessoas ficaram cegas de um olho, atingidas por balas de borracha, sofreram seqüelas. Casos de morte também já ocorreram. Tantas outras têm sido torturadas, como o caso de André de Jesus Gomes da Silva, que traz agora em seu corpo a marca dos choques sofridos com o emprego criminoso da pistola taser e teve coragem de trazer o assunto a público.

É curioso ver que em 1969, outro Gomes da Silva morria sob tortura. Virgílio, o comandante Jonas da ALN, inaugurou a prática de desaparecimento forçado de opositores no DOI-CODI de São Paulo e apesar da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) condenar o Estado brasileiro a punir seus algozes, o Brasil em sua resposta escolheu se esconder e falsear o que efetivamente não tem feito para punir torturadores, como Brilhante Ustra (ou Sebastião Curió) e Dirceu Gravina, recentemente processados pelo MPF, que vem sofrendo toda sorte de resistência para fazer lograr suas iniciativas. A mesma omissão vemos hoje por parte do Estado brasileiro ao não enfrentar o lobby da bala e da indústria de segurança pública, em não desenvolver mecanismos que proporcionem uma adequação das forças de segurança pública e privada à vida democrática e ao respeito aos cidadãos.

A autorização para que os estados da federação passem a usar estes armamentos se deu no último dia do governo Lula, abrindo o campo da segurança pública às empresas que produzem tais armamentos, ditam como usá-lo e falseiam os perigos e riscos à saúde dos cidadãos. Necessitamos enfrentar essa questão. Como é possível um corpo policial treinado para a letalidade, usar de uma hora para outra, equipamentos menos letais de outro modo? Cursos de habilitação com poucas horas, cujo foco é o manuseio, são capazes de mudar uma mentalidade anti-democrática e repressora que perdura nas polícias país afora? Daí as fotos de pessoas com tiro de bala de borracha no rosto, na nuca, no peito, bombas de efeito moral destroçando pernas, dedos e tantas outras absurdas como as que vimos recentemente no Pinheirinho, em São José dos Campos, estado de São Paulo, onde estes armamentos foram usados de forma abusiva e absurda contra a população.

Não devemos fechar os olhos a esta situação, ministra. Não podemos pelo presente e futuro de nosso país e nossas instituições. O volume de armamentos em utilização se amplia a cada mês, mais e mais unidades de polícia passam a utilizá-los, bem como o setor privado, e não existe nenhuma regulamentação que discipline seu emprego e seja parâmetro e mecanismo de defesa de nós brasileiros e brasileiras.

Entendemos ser fundamental a criação imediata do Grupo de Trabalho Interministerial para regulamentar o emprego e uso destes armamentos, a sua proibição em manifestações políticas, sociais e culturais, bem como a suspensão de uso até termos definido os estudos de impacto sobre a saúde do cidadão e a correta forma de uso e emprego.

Solicitamos uma rigorosa apuração e punição da tortura sofrida pelo mecânico ANDRÉ DE JESUS GOMES DA SILVA e o cumprimento integral da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, com ênfase na desobstrução da justiça para que os processos contra os torturadores da ditadura militar prosperem até uma sentença que contribua para quebrarmos o ciclo de impunidade em nosso país e no desenvolvimento de mecanismos de educação para a democracia e direitos humanos, nas várias instâncias de nossa segurança pública.

Ministra, o crime de tortura deve efetivamente ser hediondo, inafiançável, imprescritível e sem direito a benefícios de diminuição de pena. Salientamos a necessidade de tornar os crimes de tortura apurados em âmbito federal e uma completa reformulação das corregedorias de polícia, tornando-as independentes e sem a presença de membros das forças de segurança, bem como acabarmos com a justiça militar, tornando todos iguais perante a lei. Só construiremos mecanismos de não repetição conforme aponta a sentença da CIDH com medidas concretas que mudem o comportamento e a cultura dos agentes que promovem as violências que nos atingem hoje. A regulamentação das armas menos-letais é uma medida prática que estimulará o Nunca Mais em nosso país.

No aguardo de encaminhamentos que possibilitem um combate efetivo a esta barbárie.

Atenciosamente,

Marcelo Zelic,
Vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo. Coordenador do Projeto Armazém Memória

Roberto Monte,
Coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular-RN e DHnet.


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