Obstáculos e possibilidades da reforma agrária
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- Osvaldo Russo
- 16/06/2009
Alguns estudiosos – em nome de uma ciência supostamente desprovida de ideologia – consideram irracionais a condução da reforma agrária no Brasil e a agenda pautada pelo movimento sindical e pelos movimentos sociais, quer por sua "desatualização" histórica, quer por sua radicalidade e amplitude. Entre estes, há os que chegam a falar em cooptação de pesquisadores que prestam consultoria ao governo federal nessa área.
Essa argumentação não é justa nem verossímil, pelo menos entre aqueles que se destacam no meio acadêmico por sua produção científica independente ou mesmo por sua militância política engajada na defesa da reforma agrária. Esse tipo de ataque parece somar-se à nova ofensiva contra o governo Lula e os movimentos sociais que lutam pela reforma agrária, com a tentativa de sua criminalização pelos setores conservadores, que procuram impor e antecipar a sua agenda política para 2010. Há interesses, idéias e projetos em disputa e os consensos e dissensos se fazem a cada realidade e circunstância histórica, e não ao sabor de um pensamento único, ainda que sob inspiração científica.
Ao se focar equivocadamente o debate, perde-se a oportunidade de discutir sobre qual reforma agrária nos entendemos ou divergimos. Ou, ainda, se é possível e necessária ser feita alguma reforma agrária e qual. A crise do capital muda alguma coisa? A persistência de mobilizações, acampamentos e conflitos no campo sinaliza o quê? O sistema predatório do agronegócio é sustentável? O desenvolvimento com desigualdade é aceitável? A agricultura camponesa está fadada à economia de subsistência ou isso está mais associado ao modelo de sociedade imposto por uma classe ou grupo social? As políticas públicas de educação e de acesso à pesquisa e à tecnologia podem alterar o modo e a escala da produção camponesa? As formas associativas podem cumprir uma função econômica diferenciada e competitiva? As políticas públicas são equitativas?
Ao contrário das décadas de 1950 e 1960, quando a reforma agrária poderia ser uma opção para acelerar a industrialização, hoje se trata de posicioná-la frente às alternativas para o desenvolvimento nacional sustentável. A modernização conservadora já ocorreu e não foi capaz de superar a crise alimentar e, diante da atual crise financeira e econômica mundial, a redistribuição da terra, das condições de produção e do conhecimento não é uma inevitabilidade, mas uma alternativa de outro tipo de desenvolvimento e sociedade para o qual existe demanda social. Será que não podemos formar um novo setor agrícola?
Crise e novas perspectivas
No Brasil, existem 4 milhões de pequenas unidades produtoras agrícolas, entre as quais 1 milhão nos assentamentos, que respondem pela maior parte da produção de alimentos que abastecem o mercado interno. Duas posições antagônicas defendem a existência de um único ministério para cuidar da agricultura (só que uma na ótica da agricultura familiar-camponesa e outra na lógica da agricultura patronal-empresarial). Entretanto, enquanto houver demanda social e realidade objetiva que sustente a coexistência conflitiva do agronegócio e da agricultura familiar-camponesa, haverá necessidade política e institucional de convivência de dois ministérios. Essa contradição só poderá ser superada pela política que altere a correlação de forças. A reforma agrária é a opção democrática e sustentável para um desenvolvimento com equidade social.
A crise mundial do capital aponta para novas perspectivas de mobilização social e afirmação da agricultura camponesa e familiar como estratégica ao desenvolvimento sustentável, onde a reforma agrária tenha centralidade, com geração de mais empregos, respeito ao meio ambiente e produção de alimentos saudáveis que garanta a soberania alimentar do país. Segundo dados oficiais, o governo Lula foi responsável por mais da metade dos assentamentos realizados em toda a história brasileira e o Pronaf saltou de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para R$ 13 bilhões, em 2008-2009.
É preciso também registrar que os programas sociais, como o Bolsa Família e o Luz para Todos, entre outros, alteraram o panorama rural brasileiro, melhorando a qualidade de vida no campo. Em relação à reforma agrária, no entanto, há entraves que precisam ser superados, como a atualização dos índices de produtividade, o cumprimento integral dos requisitos constitucionais da função social da propriedade, a aceleração da imissão de posse, a abolição dos juros compensatórios das indenizações por interesse social e a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do trabalho escravo, além da fixação do limite de propriedade defendida pelo Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo.
No tocante à Amazônia Legal, a região representa cerca de 60% do território nacional e nela vivem mais de 20 milhões de pessoas, das quais um terço na área rural. Na região Norte, mais de 70% da área total cadastrada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) referem-se aos grandes imóveis com área superior a 15 módulos fiscais, estimando-se que mais de 80% dessas áreas são improdutivas, portanto sujeitas à desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Ao lado do fortalecimento da agricultura familiar e do desenvolvimento sustentável dos assentamentos, a reforma agrária não é problema, pois favorece a produção de alimentos saudáveis e a proteção ao meio ambiente.
Em relação ao programa de regularização fundiária na Amazônia Legal, que propõe a legalização de ocupantes de área pública até 15 módulos fiscais (1.500 hectares), os movimentos sociais agrários e ambientais manifestam-se contra essa medida, quer porque amplia o limite de áreas públicas a serem regularizadas, abrindo brechas para a apropriação do patrimônio público por especuladores, quer por estar na contramão do sistema agrário de base familiar consagrado no ordenamento agrário brasileiro. É preciso ter clareza de que a principal fonte de desmatamento e ocupação fundiária irregular na Amazônia se dá pela ação de madeireiros, grileiros e fazendeiros do chamado agronegócio, com exploração da pecuária extensiva e da plantação de soja.
Há contradições e limitações que precisam ser superadas, entre as quais a nossa herança escravista, mas não há incompatibilidade entre reforma agrária e desenvolvimento. Diante da crise mundial, a hora é de dialogar e unir forças políticas e sociais para avançar e consolidar o processo brasileiro de desenvolvimento com distribuição da renda, da terra, do crédito e dos serviços, priorizando o emprego, a educação, a seguridade social, a reforma agrária e a preservação do meio ambiente.
A pesquisa realizada em 2007 pelo Ibase – Repercussões do Programa Bolsa Família na Segurança Alimentar e Nutricional das Famílias Beneficiadas - aponta que houve avanços nos índices de segurança alimentar e nutricional da população beneficiada com a transferência de renda efetuada pelo Bolsa Família, ainda que permaneça um contingente de famílias que mantém elevados índices de insegurança alimentar. Este programa social e as políticas de aumento real do salário mínimo e de elevação do nível de emprego pelo maior aporte de investimentos estatais (o Programa de Aceleração do Crescimento, PAC, é exemplo disso) expressam a mão distributiva do Estado social em contraposição à mão concentradora e desigual do mercado.
As exportações de commodities agrícolas transformaram a alimentação em mercadoria, gerando lucros fabulosos sem qualquer preocupação com a necessidade de alimentar as pessoas. Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), quase 1 bilhão de pessoas passam fome no mundo. Ou mudamos a matriz da produção de bens agrícolas, democratizando a terra e priorizando a produção de base familiar, ou estaremos inviabilizando a vida saudável no planeta. São os pobres em todo o mundo os que mais sofrem com as crises e as desigualdades do capitalismo.
Revolução sem armas
O Brasil, hoje, está mais preparado para enfrentar novos desafios. É preciso, entretanto, dialogar mais intensamente com os movimentos sociais para que estes sejam efetivamente parceiros ativos nesse diálogo nacional. O Brasil não pode esperar, porque a fome e a pobreza têm pressa, como costumava dizer o saudoso Betinho. A crise do capital financeiro internacional é a crise do seu centro acumulativo que já está adotando medidas para reciclar o cassino em que transformou a economia mundial, concentrando ainda mais o poder, a renda e a riqueza, destruindo a natureza e excluindo os pobres.
Se quisermos garantir a soberania alimentar do nosso povo, temos que potencializar as bases sociais e econômicas que construímos recentemente, ampliar a reforma agrária e fazer uma revolução sem armas no campo e na educação brasileira, com investimentos estatais em ciência, tecnologia, assistência técnica, qualificação profissional e preservação ambiental, criando e consolidando as bases sustentáveis do nosso desenvolvimento e da soberania do país. Apesar do volume de recursos aplicados no setor, os movimentos sociais reclamam da desaceleração da reforma agrária, com a redução da área desapropriada. É preciso revigorar o leme da democratização da terra, da qualificação dos assentamentos e do gerenciamento dos nossos recursos fundiários.
O governo Lula tem propiciado avanço notável nas políticas sociais, reduzindo a pobreza e as desigualdades. O Programa Bolsa Família, a nova política de assistência social introduzida pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas), o aumento real do salário mínimo, a geração de mais empregos com carteira assinada, a apoio à agricultura familiar através do Pronaf, o Luz para Todos, a construção de cisternas no semi-árido, a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) etc. têm merecido aceitação da maioria da população brasileira e reconhecimento dos organismos internacionais, dos movimentos sociais e dos governos municipais e estaduais, que são tratados de forma republicana pelo governo federal.
Os programas sociais, no entanto, inclusive os de transferência de renda, não substituem os de geração de trabalho e renda, que se constituem em portas de saída daqueles programas. Na área rural, este objetivo é cumprido pela reforma agrária e pelo desenvolvimento da agricultura de base familiar. Nesse sentido, a prioridade ao agronegócio deveria ser revista, pelo menos como está posta atualmente, pois tem comprometido o meio ambiente e a soberania alimentar da população brasileira, além de não gerar os empregos necessários ao país. O modo de produção do chamado agronegócio mostra-se, sobretudo, insustentável, segundo estudos que revelam novos padrões mundiais de sustentabilidade econômica, social e ambiental.
Feijão e feijoada
Em qualquer contexto, aqui e alhures, reforma agrária significa não só, mas antes de tudo, redistribuir a terra útil, sobretudo a privada, desconcentrando a sua propriedade, a sua posse e o seu uso - que atualmente mantêm 46,8% da área cadastrada nas mãos de 1,6% dos proprietários -, tornando produtivos os 133 milhões de hectares de terras ociosas. Ou então não se faz reforma agrária.
Como dizia o saudoso José Gomes da Silva (fundador da Associação Brasileira de Reforma Agrária/ABRA, ex-presidente do Incra e "ministro" do governo paralelo do Lula, em 1990): "A terra está para a reforma agrária, assim como o feijão está para a feijoada, depois vêm os temperos". Na reforma agrária, igualmente, é preciso garantir terra de boa qualidade e políticas adequadas de apoio aos assentamentos.
Democratizar a vida no campo, proteger o meio ambiente, gerar empregos, promover o ser humano e produzir alimentos saudáveis por si só justificam a importância da reforma agrária hoje. Nas regiões desenvolvidas do país, entretanto, a legislação atual inviabiliza a massividade da reforma agrária, mediante a aplicação de seu principal instrumento - a desapropriação por interesse social com pagamento da terra em títulos da dívida agrária. É preciso, pois, mobilizar as energias da sociedade e o acúmulo do Estado conseguido até aqui para impulsionar as mudanças normativas que se fazem necessárias, como fortalecer institucionalmente o programa de reforma agrária.
A reforma agrária precisa, sobretudo, dialogar com os movimentos sociais que organizam os demandantes prioritários – os trabalhadores rurais sem terra. A organização coletiva é necessária para alcançar escala econômica e empoderamento social que, ao lado de infra-estrutura, tecnologias apropriadas de produção, crédito, assistência técnica, educação e formação profissional, possibilitam a viabilidade econômica dos projetos de assentamento e a promoção social das famílias assentadas. Hoje, sem isso, torna-se impossível garantir o desenvolvimento sustentável dos assentamentos da reforma agrária no Brasil.
A partir do aprofundamento dessa discussão na sociedade, pode-se pactuar um programa comum - popular - atrativo a uma nova coalizão política de forças sociais no campo e nas cidades, para impulsionar a construção de um novo modelo econômico - democrático e sustentável - e, conseqüentemente, de um novo modelo agrícola e agrário para o país. O objetivo estratégico a alcançar, com ampla mobilização popular, é a viabilização desse novo tipo de desenvolvimento, que produza alimentos saudáveis, preserve a vida e reduza drasticamente as desigualdades e a pobreza no Brasil.
Sem prejuízo do financiamento da produção individual, há necessidade, entretanto, para viabilizar uma nova agricultura familiar competitiva, de criação de um programa de incentivos para a organização de associações de agricultores familiares, garantindo o acesso dos camponeses e suas famílias a um sistema público, com a participação dos movimentos sociais. Para a viabilização desse novo modelo agrícola, é preciso acelerar e qualificar a reforma agrária e o apoio à agricultura familiar para além da obtenção da terra, do mero assentamento e do acesso ao crédito. É preciso, sobretudo, romper progressivamente com o modelo atual, hegemonizado pelo agronegócio, e priorizar a integração da agricultura camponesa a um novo tipo de desenvolvimento no Brasil.
Oswaldo Russo é ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), estatístico, diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) e coordenador do Núcleo Agrário Nacional do Partido dos Trabalhadores (PT).
Artigo publicado na revista Democracia Viva (Nº 42/Maio/2009), editada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
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