Repressão na USP é simbólica da descaracterização da Universidade Pública
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- Valéria Nader e Gabriel Brito
- 26/06/2009
Desde o dia 9 de junho, a principal universidade do país voltou a se agitar. Por conta de uma greve de funcionários administrativos, a reitora da instituição Suely Vilela solicitou a entrada da Polícia Militar no campus, a fim de conter as manifestações. Apesar de transcorrerem sem distúrbios, os servidores uspianos foram duramente reprimidos, causando revolta em amplas correntes da sociedade e da comunidade acadêmica.
Volta, portanto, à baila o debate acerca do atual compromisso da universidade em relação à comunidade em que está inserido, tão negligenciado e dissimulado pela maioria dos veículos de comunicação. Em entrevista ao Correio da Cidadania, o atual presidente da ADUSP (Associação dos Docentes da USP), Octaviano Helene, afirmou que o episódio pode perfeitamente representar o atual momento de nossas políticas educacionais e sociais, levadas adiante mesmo contra a vontade da sociedade e fazendo uso de toda truculência necessária.
Helene, também professor do departamento de Física da USP, fez duras críticas ao que considera escancaradas políticas privatistas e fiscalistas em aliança, alegando ser plenamente possível atender às reivindicações dos grevistas. No plano mais amplo, lamenta os rumos do ensino público brasileiro, ressaltando que "não há qualquer exemplo de país que tenha superado o atraso e a subserviência sem ter desenvolvido seu sistema escolar e de ensino superior".
Na entrevista que pode ser conferida a seguir, Helene ainda falou sobre a má qualidade das cada vez mais numerosas e mercantis instituições privadas e alertou para o crescente número de jovens que vêm abandonando os estudos nos últimos anos.
Correio da Cidadania: A entrada da polícia na USP motivou uma nova dimensão da greve, com a adesão de professores e alunos. Como encara esse acontecimento?
Octaviano Helene: A entrada da polícia na USP naquele 9 de junho, dia da violência contra estudantes, funcionários e professores - também atingidos pela violência policial e que tentaram apaziguar a ação -, foi um negócio que há muito tempo não se via na universidade e que preferimos continuar sem presenciar. Isso não se vê em outros países. Foi uma ação policial violenta contra uma ação pacífica, pois não havia gente atirando pedras nos policiais, nada disso.
No momento em que ocorria, havia uma assembléia da ADUSP e, assim que começamos a ouvir as bombas estourando, pessoas chorando, a suspendemos e vários professores se dirigiram ao local dos fatos.
Dessa forma, diria que colocou, sim, um ingrediente diferente nas mobilizações e na assembléia que retomamos no dia seguinte, surpreendentemente numerosa, com sala lotadíssima. O livro de presença teve mais de 200 assinaturas e a participação da imprensa foi estimada em 400 pessoas. Levando em conta que se realizou no Butantã, que tem cerca de metade dos docentes da USP, foi muito numerosa.
CC: Argumenta-se que o orçamento da USP é em mais de 80% comprometido com folha de pagamento e que, em caso de serem atendidas as reivindicações dos funcionários em greve, esse comprometimento superaria 90%. Além do mais, o orçamento das três universidades paulistas estaria bloqueado, não havendo fundos específicos para o pagamento de aposentados. Qual a sua avaliação desse contexto? Ele inviabiliza realmente o atendimento às reivindicações?
OH: É uma questão de muitos componentes. Em primeiro lugar, o comprometimento do orçamento varia de ano para ano e de universidade para universidade. Já tivemos ocasiões em que passou dos 90% e situações como a do ano passado, de 67% - cálculo baseado nos gastos salariais em relação ao orçamento, vindo do ICMS.
Há uma grande margem de variação que não inviabiliza a universidade, que por sua vez continua andando, independentemente de tal flexibilidade. Já houve anos em que se chegou perto dos 100%. Portanto, há uma margem que permite à universidade sobreviver e conviver com níveis mais altos de comprometimento. Em 2008, foi muito baixo, ficando em 77% na USP, com a média das outras perto disso também.
Assim, no nosso entendimento há uma grande margem para realizar os reajustes salariais, já que em vários anos o comprometimento foi bem além dos 90%.
CC: A centralidade do argumento orçamentário, em um contexto nacional onde é recorrente o apelo à ótica fiscalista para justificar qualquer corte de gastos, especialmente aqueles voltados para as áreas sociais, não vem escancarar uma política velada de privatização do ensino superior?
OH: Tal política não é sequer velada, é explícita. Tanto é assim que, em São Paulo, o estado mais rico e a segunda maior renda per capita nacional, se verifica um nível de privatização muito maior que nos outros estados. Aqui, apenas 10% dos estudantes estão em alguma instituição pública de graduação, enquanto nos demais estados são cerca de 30%.
Embora nos outros também seja enorme – o Brasil está entre os 5 países de maior índice de privatização no mundo –, em São Paulo ela é muito maior, inclusive na proporção com a população: enquanto temos 350 habitantes para cada estudante do ensino público, a média nacional é de 150 para 1. Quer dizer, até do ponto de vista do atendimento à população ficamos muito abaixo dos outros.
Isso mostra uma política deliberada de privatização, que não se deve ao fato de o estado ser pobre ou algo parecido. É uma política explícita, não inevitável. Querem assim e ponto final, isso está claro.
Em São Paulo, os gastos com ensino público superior ficam em torno de 0,3%, 0,4% do PIB estadual, indicação do quão pouco se investe no ensino público superior. Portanto, trata-se de uma política, não de um acidente.
CC: O que esses fatores reunidos, inclusive a entrada polícia, revelam da atual universidade, assim como da política educacional?
OH: A invasão da polícia e essa política são dois fatos que realmente possuem um ponto em comum, que é o seguinte: para impor a pretendida política de ensino superior no estado usa-se de todos os instrumentos necessários, até da polícia.
Por outro lado, a privatização do estado de São Paulo é enorme, maior que no restante do país, como disse. Se fosse uma nação seria de longe, e vergonhosamente, a recordista em privatizações entre todos os países do mundo. Essa é uma política que vemos há tempos por aqui, décadas na verdade. Ou seja, a política de privatização do ensino superior já é presente no Brasil há muitas décadas, sendo mais intensa no estado de São Paulo.
E quando fazemos uma comparação com o restante do mundo, verificamos não apenas que estamos entre os líderes no índice de privatizações, como ainda que as políticas são de má qualidade, com cursos em grande parte ruins, áreas de conhecimento oferecidas que nada têm a ver com as necessidades nacionais, e sim com o interesse mercadológico das instituições. E mais: o local geográfico em que as instituições se estabelecem é onde encontram clientela, e não onde há necessidade de ensino superior.
Assim, tal política é muito ruim tanto quantitativamente como pela forma de implantação, baseada em instituições puramente mercantis em maioria.
CC: José Artur Giannoti, em artigo para a Folha de S. Paulo de 11 de junho, argumenta que a ‘falta’ de recursos leva a um impasse, que por sua vez conduz a um conhecido ritual: os funcionários decretam greve, no que são seguidos por algumas lideranças de professores e alunos. A indiferença da maioria dos atores acabaria por criar espaço para ‘radicais’ que acreditariam piamente no caráter repressor do Estado, e que por isso apelariam para a violência para mudar a universidade. Parece uma análise elaborada, mas, no frigir dos ovos, não dá no mesmo que chamar de vândalos os grevistas?
OH: Vou pegar o início da frase, que tem um problema grave. Essa dita falta de recursos é uma política explícita, não uma intrínseca falta de recursos. Trata-se de uma política explícita de privatização do ensino superior que, para ser viabilizada, é transformada em redução de recursos.
Daí decorre todo o resto. Não sei se os exemplos e análise são corretos, mas há muitos ingredientes, como a crise social do estado de São Paulo. Com o ensino privado nessas condições, não surpreende a crise social que enxergamos atualmente aqui. Isso, inclusive, provoca crise econômica, pois não é possível desenvolver um estado industrializado e com uma prestação de serviços relativamente sofisticada baseado em instituições de ensino de baixa qualidade. É simplesmente impossível.
O estado e seus 40 milhões de habitantes não estão precisando de profissionais mal formados. Pelo contrário, precisamos melhorar, e muito, a qualidade do ensino superior por aqui.
Nesse sentido, entro no tema do ensino à distância, porque este vai exatamente na contramão do que gostaríamos de seguir, que é ampliar o ensino superior presencial, e de qualidade. E a resposta do governo estadual, inclusive com apoio das universidades, é ampliar o ensino à distância, de baixa qualidade.
CC: Pensando em um outro aspecto específico importante, e que talvez pudesse não demandar um longo período de tempo para ser enfrentado, a representatividade proporcional de alunos, professores e funcionários dos conselhos não é algo que precisa ser rediscutido com alguma urgência?
OH: Certamente a questão da democratização das universidades estaduais paulistas, e especialmente da USP, é importantíssima. Para que se tenha uma idéia, o Conselho Universitário da USP tem cerca de 110 membros, sendo que apenas cinco são professores eleitos por seus pares, e ainda por cima de forma indireta.
É ridículo ter um número de eleitos diretamente tão pequeno, a ponto de toda a comunidade docente (cerca de 5400 pessoas) ter apenas cinco representantes. Há outros professores, mas que estão lá por serem diretores ou escolhidos por congregações (não representam categorias).
Portanto, essa forma de representatividade precisa ser melhorada.
CC: E o que pensa da idéia de eleições diretas para reitor?
OH: Essa é uma reivindicação que vem do 3º congresso da USP, em 1988, e é uma maneira de caminharmos na direção de democratizar a universidade. Não se trata de solução para todos os males, e há casos em que nem sequer é uma solução, mas é uma maneira que obriga os candidatos a exporem explicitamente seus programas de ação.
As campanhas eleitorais de hoje dependem mais de conversas de corredores, gabinetes, do que da apresentação de programas. Desta maneira, a idéia da eleição direta é colocar a necessidade de os candidatos apresentarem seus programas.
CC: O senhor acredita na retomada de um autêntico papel para a universidade em nosso país? Qual seria a saída, a seu ver?
OH: Aí já temos um problema importantíssimo. A universidade, entendo que deve ser pública, comprometida com o desenvolvimento social, econômico e cultural do país, que responda aos anseios da população, às necessidades das diferentes regiões do país e áreas profissionais.
Uma universidade desse tipo é necessária para viabilizar o crescimento e desenvolvimento de um país, qualquer que seja o viés; social, político, econômico, cultural.
Não há qualquer exemplo de país do mundo que tenha superado a barreira do atraso e da subserviência sem que tenha desenvolvido o seu sistema escolar e de ensino superior. Não há exceção. Existe o outro lado, o de alguns países que, apesar de terem um sistema escolar desenvolvido, não conseguiram o mesmo em outras áreas. No entanto, o inverso não ocorre. O desenvolvimento educacional é necessário para que ocorra o do país, ao lado de outras iniciativas.
Essa lição de casa o Brasil ainda não fez. Estamos atrasadíssimos, com um ensino superior privado de baixa qualidade, com a maior parte dos estudantes nesses cursos, em regiões onde não necessariamente estão localizadas as demandas para tais cursos, e com cursos que não dão contribuições significativas às profissões correspondentes.
No que se refere ao ensino fundamental, estamos já há cinco, seis anos reduzindo o número de crianças que completam esse grau. A cada ano, 1 milhão de crianças são expulsas do ensino fundamental e não o concluem mais tarde. Não é que ficam atrasadas, e sim que não o concluirão nem no futuro. Estão fora do sistema escolar.
Do fundamental ao superior, tudo precisa ser consertado.
CC: Acredita que haja alguma perspectiva positiva para esse tipo de universidade defendida pelo senhor?
OH: Não há nenhuma política consistente em nível nacional, ou mesmo nos estados, que vá esse sentido. Há muita demagogia, conversas, ações para inglês ver, mas de concreto não existe nada.
O início da mudança de caminho se daria com a efetivação do que estava no Plano Nacional de Educação apresentado pela sociedade civil. Parte dele foi, inclusive, incorporado no Plano Nacional da Educação já aprovado pelo Congresso.
No caso paulista, temos um plano estadual - projeto de lei que tramita na Assembléia Legislativa - elaborado por diversas entidades, especialmente pela ADUSP, contendo todas as deficiências escolares, em todos os níveis e regiões do estado. O plano faz uma proposta de como enfrentar tais questões, com ações objetivas que visam superar nosso atraso escolar.
Programas desse tipo poderiam levar o Brasil para um caminho mais promissor. Só que isso não existe. O plano não é cumprido na forma que foi concebido, o ensino fundamental não só está longe de ser universalizado, como tem piorado nos últimos anos, com números decrescentes de alunos que o concluem, assim como ocorre no ensino médio. Não apenas estamos deixando de seguir o caminho certo, como ainda estamos nos afastando dele.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.
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