Correio da Cidadania

Ingenuidade ou esperteza

0
0
0
s2sdefault

 

A compra de aviões militares deve ser decidida por critérios técnicos ou políticos? Caberia indagar sobre a ingenuidade ou a esperteza de quem se manifesta em relação a essas falsas alternativas.

 

Desde os antigos gregos, sabe-se que a téchne, o jeito de fazer as coisas, tem implicações sócio-políticas. Novos padrões tecnológicos alteram a vida em sociedade e incidem sobre o jogo do poder. Não é razoável a tentativa de apartar assepticamente a "técnica" da "política". Lastreada que seja em "critérios técnicos", uma decisão governamental nunca perde o seu teor político. Em negócios de caserna, quem argüi a supremacia do "técnico" sobre o "político" pode estar tentando encobrir opções ideológicas ou vontades corporativas. Tratando-se de comércio de armas, a insistência em tais critérios pode até camuflar interesses ilícitos.

 

Encomendas de sofisticados instrumentos de guerra têm graves desdobramentos, destacando-se o fato de o cliente contribuir para o desenvolvimento da indústria bélica do fornecedor. A potência industrial-militar que logra vendas externas amplia suas possibilidades de investir em novos produtos, reforça e espalha seus tendões além-fronteira e impõe sua vontade. Ao longo do século XX, do ponto de vista estratégico, o comércio internacional de armas ampliou a distância entre as potências fabricantes e seus clientes. O comprador aceita a subordinação, que pode ser maior ou menor, em função de diversos outros fatores, dentre os quais o nível de dependência do conjunto de sua força armada em relação ao fornecedor estrangeiro. Quem não controla a produção de suas armas não pode, em últimos termos, decidir com autonomia seu próprio destino; na melhor das hipóteses, enfrenta inimigos secundários, mesmo assim, sem contrariar o fornecedor.

 

No caso da compra de aviões de combate pelo Brasil, antes do preço da mercadoria e da propalada "transferência de tecnologia", o que cabe analisar é se o país deve ou não continuar atrelado ao complexo de defesa dos Estados Unidos. A atual geração de oficiais generais brasileiros, educada na admiração ao colosso norte-americano e aos seus valores e orientações ideológicas, tem dificuldades para acompanhar as múltiplas conseqüências do papel de protagonista que se desenha aceleradamente para o país. Apenas isso pode explicar o fato de o avião norte-americano persistir no páreo. A reativação da IV Frota e a insistência dos Estados Unidos em instalar bases militares perto da fronteira brasileira deveriam bastar para que o país rejeitasse a compra de material de guerra norte-americano.

 

A alternativa sueca parece alimentar o faz-de-conta, já que o caça oferecido pela metade do preço não sai do chão sem variados componentes fabricados nos Estados Unidos, inclusive o motor. Caso o Brasil compre aviões militares estrangeiros preservando seus laços ocidentais, a opção pela oferta francesa está mais de acordo com a busca de autonomia. Afinal, na Europa, excetuada a Rússia, é a França, com suas 350 ogivas nucleares, que mostra mais reticências à projeção de força dos Estados Unidos.

 

Certamente não cabem ilusões de que o Raffale seja usado em confrontos que desagradem o governo francês. Tampouco cabe pôr muita fé na prodigalidade francesa quanto à transferência de tecnologia: quem dispõe do chamado "conhecimento sensível", aquele que torna superior o armamento, não o cede facilmente. No mais, valeria atentar para a dificuldade de o Brasil incorporar efetivamente possíveis aportes tecnológicos.

 

O militar brasileiro é em grande parte responsável pela montagem do respeitável sistema de pesquisa e ensino superior que o país dispõe hoje: fundou o CNPq e instituições de excelência, como o ITA e o IME; durante a ditadura, impulsionou universidades e estimulou empresas industriais especializadas. Mas, acostumado a usar equipamento estrangeiro, anuviado pelo corporativismo e preso a veleidades autárquicas, não estabeleceu relações frutíferas entre este sistema e as necessidades da defesa armada.

 

Alguns aviões importados não protegerão o país de inimigos poderosos que ousem ocupar a Amazônia ou destruir plataformas de petróleo, preocupações assinaladas na Estratégia Nacional de Defesa; apenas dissuadirão aventuras inconseqüentes de agressores nas fronteiras, interceptarão pontualmente eventuais invasores do espaço aéreo e permitirão à FAB familiarizar-se com o manuseio de equipamentos avançados.

 

Efetuadas as aquisições em debate, o perigo seria disseminar a sensação de que o país estaria preparado para assegurar efetivamente sua defesa aérea, marítima e terrestre. Incomoda pensar que a atualização do aparelhamento das Forças Armadas ganhe manchetes em detrimento de tantos assuntos complexos como a reforma do serviço militar, a montagem da base industrial e de defesa, a redistribuição espacial dos efetivos, a integração da defesa sul-americana e o desenvolvimento dos estudos estratégicos. Tais assuntos dizem respeito a todos e a cada um: precisam ser aprofundados sem ingenuidade ou esperteza.

 

Manuel Domingos Neto é professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense e coordenador do "Observatório das Nacionalidades".

 

Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

{moscomment}

0
0
0
s2sdefault