Correio da Cidadania

Perdão dos criminosos da ditadura é irreversível

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Do alto dos seus 62 anos como advogado, evocando mestres falecidos, mas não esquecidos, colegas, juízes e desembargadores exemplares com quem conviveu, Paulo Brossard pontificou, no Zero Hora de 4 de janeiro com a gravidade do patriarca entre os senadores, ao pronunciar-se mais para a história do que para seus pares e ouvintes: "A anistia é irreversível". O ex-ministro da Justiça e do Supremo Tribunal Federal referia-se, é claro, à Lei nº 6.683, apresentada e sancionada pelo general em turno, em agosto de 1979, anistiando parcialmente os atos de resistência à ditadura e, em forma plena, total e irrestrita, os crimes por ela cometidos contra a população brasileira.

 

Literalmente liquidando a proposta de violação da anistia, "concebida nos altos escalões do governo federal ou quem sabe dos baixos [sic]", invocou seu mestre José Frederico Marques que "ensina o que é corrente entre tratadistas". A anistia é "ato legislativo em que o Estado renuncia ao direito de punir". Uma "verdadeira revogação parcial, hic et nunc, de lei penal". Competindo ao Legislativo a concessão da anistia, após a promulgação, nem por ele pode ser revogada, sob pena de inconstitucionalidade.

 

Interdição que eleva a "dogma" jurídico, pois a "lei penal só retroage quando benéfica ao acusado [...]". Daí a "irrevogabilidade". Apagado para sempre, o delito não será restabelecido, sob pena de "retroatividade".

 

Não haveria dúvidas. O constitucionalista lembra que a norma jurídica não se regeria-imporia por sua justiça, mas por sua vigência. Propõe até mesmo que a "anistia pode ser mais ou menos justa" e, portanto, até mesmo injusta. Definitivamente, o "expediente articulado nos meandros [sic] do Planalto", constituiria, para ele, o que em Direito denomina-se de inépcia. Coisa, folga dizer, de ineptos. Porém, para Brossard, a justiça não seria o "caráter marcante" da anistia, o qual se encontraria na obtenção da "paz" – um efeito que escaparia, assim, da esfera jurídica para se realizar na esfera social.

 

Lembra que a versão da anistia aprovada em 1979, proposta sobretudo pela oposição consentida, defendia "anistia recíproca" para, segundo ele, pacificar as "duas partes em que o país fora dividido".

 

Destaque-se a contradição dessa última leitura: uma anistia, apesar de irrevogável, caso comprometesse a "paz social", perderia sua principal razão de ser! E, desnecessário dizer, se concordamos com o juridicismo geral de Brossard, teríamos que aceitar que, após uma hipotética vitória ou empate do nazismo na II guerra, uma auto-anistia, através de ato legislativo, asseguraria para Hitler, Goebbels, Himmler e caterva o direito, sob a proteção da lei, devido à extinção dos crimes para todo o sempre, de morrerem em suas camas, após gozarem de polpudas aposentadorias de ex-dirigentes do Estado. E sem sequer a obrigação de indicar onde enterraram as cinzas dos milhões de martirizados!

 

Justiça e injustiça

 

Erra Paulo Brossard, no geral e particular. Não há normas e dogmas jurídicos por sobre os direitos dos homens e mulheres, reconhecidos e materializados na e através da história. Exemplifico com realidades conhecidas até mesmo pelos não "tratadistas". No Brasil, o direito do negreiro sobre o cativo foi a base objetiva do estatuto da propriedade, reafirmado pelos costumes e disposições jurídicas e constitucionais.

 

Nos tribunais do RS, por ofensas à ordem escravista, trabalhadores escravizados eram condenados a mil e quinhentas chicotadas e lanhados como uma peça de charque até a morte. Apesar de atos jurídicos perfeitos, aquela propriedade e aquelas penas terroristas eram social e moralmente ilegais, crimes cometidos sob a vigência das leis de então.

 

Apoiados na lei, os escravagistas lembraram que o fruto da propriedade não podia ser expropriado sem indenização. Que lhes foi concedida, parcialmente, quando a lei de 1871 determinou a liberdade condicional dos filhos das cativas nascidas após aquele ato. Em 1888, os escravistas não discutiam a moralidade da propriedade sobre o cativo, lembrando apenas, com razão, que era preceito legal e constitucional, portanto, necessariamente indenizável, no caso de extinção. Naquela vez não levaram nada – governantes e forças mais "vivas da nação" preocupavam-se já com o financiamento da vinda dos novos negros, os imigrantes, e despreocupavam-se com a indenização legal da "lavoura andrajosa".

 

Naqueles tempos, o negro Luís Gama, após fugir do cativeiro ilegal, cursou parcialmente como ouvinte a Escola de Direito do Largo de São Francisco e, já advogado provisionado, libertou talvez um milhar de cativos. Ele defendia que o "escravo que" matasse o "senhor" praticava "ato de legítima defesa". À margem de todas as normas jurídicas de então – e atuais –, apenas reafirmava o direito social e histórico do homem de lutar por sua liberdade essencialmente violada, com as armas de que dispuser e crer necessárias.

 

Em 1888, devido à nova correlação social de forças, a propriedade sobre o trabalhador, ato legal e constitucional perfeito, foi violada e enterrada inapelavelmente, aflorando em maior grau, ainda que imperfeito, a justiça social e histórica, própria aos homens. Abandonemos, portanto, o filisteísmo e fetichismo da lei petrificada por sobre os direitos dos povos à justiça.

 

Ato imperfeito

 

Porém, Brossard erra em forma mais substancial. A anistia de 1979 constituiu um ato imperfeito, nascido e corrompido pela situação de exceção, em que a ordem militar mantinha-se pela força da violência e do apoio dos grandes proprietários do país e do mundo. Ela foi apenas uma iniciativa parida pela necessidade de garantir, ainda que em forma limitada, os direitos violados de milhares de homens e mulheres.

 

Em um sentido essencial, estes últimos não foram perdoados e não tiveram ações criminosas e delitivas extintas. Não havia o que perdoar, extinguir ou esquecer, ao não terem cometido qualquer crime e delito. Haviam sido e eram perseguidos por ações legítimas, necessárias, morais e éticas de oposição aos agressores dos direitos da população brasileira. Tinham exercido o direito e o dever inarredável do oprimido de levantar-se, de todas as formas, contra a opressão grave, referido por Luís Gama. Ato de anistia ao quais os responsáveis máximos pela violação dos direitos cidadãos e nacionais tentaram astutamente enganchar o perdão das ações suas e de seus agentes, essas sim social e historicamente criminosas.

 

O preclaro Paulo Brossard certamente escutou, ainda adolescente, nos bancos ginasiais, quando das aulas de religião, a lição de que o sacerdote não pode absolver a si e a quem com ele peca. Não podiam absolver nem que fosse por tabela, através do parlamento concedido, emasculado e moldado pela ditadura, em 1979. Não há auto-anistia, ainda mais quando se trata de atos cometidos à sombra da proteção do Estado, de tal gravidade que já são considerados pelo pensamento jurídico internacional como imprescritíveis e não anistiáveis, em uma indiscutível procura de adequação aos direitos sociais e históricos dos povos.

 

Um crime sem fim

 

O princípio da imprescritibilidade e inextinguibilidade de crimes de Estado – genocídio, tortura, assassinato, desaparecimento etc. – tem sido materializado, ali onde a população mobilizada alcança fazer valer em forma mais perfeita a punição de seus ofensores. Nos últimos anos, tem sido anuladas anistias de crimes de Estados concedidas pelos próprios governos criminosos ou por administrações e parlamentos democraticamente eleitos, lançando-se na lixeira das justificativas jurídico-ideológicas os causuísmos com os quais se pretende defender aqueles crimes e criminosos.

 

É o caso da Argentina, onde ditadores, militares e policiais são levados à Justiça, devido à anulação de leis de anistia como a da "Obediência devida", do "Ponto Final" e os indultos de Carlos Menem (1989-1999). A mesma responsabilização judicial de criminosos de Estado se procede, ainda em forma mais parcial, no Chile e Peru, onde o ex-presidente Fujimori encontra-se já condenado e preso.

 

Paulo Brossard não se engana apenas por defender casuisticamente a vigência e inarredabilidade de lei imperfeita, que agride a essência da justiça e a legalidade. Erra, sobretudo, por tentar resgatar indiretamente a ação da ditadura. O que registra, em forma clara e explícita, ao propor que aquele diploma legal buscasse a paz, ao enterrar as divergências e os eventuais excessos das "duas partes em que o país foi dividido".

 

Identifica, em forma inaceitável, a vítima ao vitimador, o violentador ao violentado, como na Europa atual procura-se confundir os partigiani aos fascistas italianos; os maquisards aos vichistas franceses; os republicanos aos falangistas espanhóis. Procura-se resgatar, desse modo, lá e aqui, a ação e os atos dos criminosos de Estado, preservando seus quadros, ainda vivos e sobretudo suas memórias, com as decorrências políticas e sociais inevitáveis para o presente e futuro.

 

As propostas de revisão da anistia do Plano Nacional dos Direitos Humanos, apenas apresentado, quanto aos crimes e criminosos da Ditadura Militar (1964-1985) são atrozmente limitadas, sobretudo em relação aos avanços realizados em alguns países da América Latina. Não almejam mais do que a revelação dos destinos dos desaparecidos pela ditadura e eventual nominação dos responsáveis diretos.

 

Em parte, a enorme resistência que enfrentam essas tímidas respostas deve-se às posições institucionais que ocupam ainda responsáveis diretos e indiretos por aqueles atos. Sobretudo, ela nasce da vontade dos núcleos centrais das grandes classes proprietárias de manter intocado o direito de impor a exceção e a violência direta e geral sobre a população, quando seus privilégios estejam ameaçados ou assim o exijam.

 

Razão que explica o amplo esforço de apoio à impunidade de oficiais e policiais torturadores, estupradores e assassinos, em alguns casos, confessos.

 

Mário Maestri é historiador. Participou como estudante da resistência contra a ditadura. Foi preso em 1969 e viveu no exílio de 1971 a 1977.

 

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Comentários   

0 #2 Sobre a imprescritibilidade da torturaLuiz Paulo Santana 25-01-2010 17:39
Brilhante e irretocável artigo do Professor Mário Maestri. É preciso insistir muito, repetir sempre, o que eu considero o 11º. mandamento: não torturarás. Porque a tortura, independentemente de quem a pratique, é suprema covardia.E cometida no exercício de função publica excede a qualquer contemporização: crime inafiançável e imprescritível.
E precisa ser banida dos porões das delegacias de polícia e dos quarteis das PMs, onde ainda continuam a acontecer.
É preciso criar essa consciência, essa convicção: não torturarás!
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0 #1 O BROSSARD ORA O BROSSARDLuiz Carlos de Souza 20-01-2010 15:46
Ora, quando Lula coloca como ministro da Defesa um sujeito asqueroso e direitoso como o JOBIM, pode-se esperar tudo. É um absurdo que não se possa apurar os atos criminosos e fascistas da ditadura porque os milicos se sentem atingidos. As forças armadas continuam sendo o cão de guarda da burguesia, dos grandes propriétários (banqueiros, industriais e latifundiários). Engana-se quem pensa que as forças armadas da America Latina se tornaram democráticas:elas foram formadas pelas escolas de guerra dos EUA. Tem ieologia de direita e jamais serão democráticas. Apenas aguardam uma senha para se insurgirem contra qualquer governo ou movimento que toque nos privilégios de classe desses proprietários.Vide o que aconteceu com os golpes contra CHAVES, ALLENDE e outros.
Não creio que no domínio do capital esse tipo de forças armadas deixem de ser o que são.Ou seja: o Estado em Armas contra o povo.
Dá para avançar como na Argentina, na Espanha e até no Chile. Mas,Lula é capaz de vender tudo isso pela eleição da Dilma. Se eu fosse o Lula eu demitia o JOBIM(o general genérico, como o chamam os outros generais).Mas, o Lula está cego pela vaidade.
Quanto ao Brossard acho que ele morreu e esqueceu de deitar.
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