Ignorando mudanças climáticas, Brasil continuará sofrendo com ‘catástrofes naturais’
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- Gabriel Brito, da Redação
- 10/07/2010
Durante a Copa do Mundo, o Brasil voltou a sofrer um duro choque de realidade em seu interior: com chuvas em níveis nunca registrados, o agreste de Pernambuco e Alagoas teve dezenas de cidades devastadas pelas enchentes decorrentes dos temporais, causando a morte de mais de 60 pessoas.
Para analisar o que está por trás de mais uma chuva calamitosa, após fenômenos parecidos por todas as regiões do país nos últimos anos, o Correio da Cidadania entrevistou Philip Fearnside, especialista em clima do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) e uma das maiores autoridades internacionais nos debates sobre o aquecimento global, fazendo parte também do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU.
De acordo com Fearnside, a tendência de ocorrências semelhantes se repetirem é crescente, já que as tempestades do Nordeste foram mais intensas que o normal por conta de uma maior temperatura das águas do Atlântico. O professor salienta que tal fenômeno se alinha ao El Niño (no Pacífico), levando aos mesmos efeitos de chuvas violentas e secas alternadas entre a Amazônia e o Nordeste, ameaçando, portanto, também a maior floresta tropical do mundo.
Diante disso, o pesquisador do INPA alerta para a urgência de uma mudança radical na atitude do país nas discussões globais sobre o aumento da temperatura e concentração de gases na atmosfera, o que poderá ser feito na convenção climática marcada para o México, no final deste ano. No entanto, destaca que a aprovação de mudanças no Código Florestal a que assistimos é um temerário passo ao caminho oposto.
Correio da Cidadania: Especialistas dizem que volume d’água em Pernambuco e Alagoas foi causado por uma frente de calor que provinha do Oceano Atlântico, a partir do aquecimento maior que o normal de suas águas. A que atribui as chuvas tão intensas ocorridas nas últimas semanas em várias cidades do agreste destes estados, que geraram uma enorme tragédia e cerca de 60 mortes?
Philip Fearnside: Há uma marcha de água do Atlântico que faz parte de uma gangorra, com águas do Atlântico Norte mais frias e do Atlântico Sul mais quentes, o que por vezes se inverte. Trata-se de um fenômeno que tende a aumentar com o aquecimento global. Isso aconteceu pelo outro lado em 2005, com uma seca enorme na parte sul da Amazônia, com vários afluentes do Rio Amazonas quase ficando secos, causando uma calamidade humana, pois vários deslocamentos, para hospitais, por exemplo, eram feitos pelos rios e não podiam se realizar.
É algo que acontece porque a Zona de Inter-convergência Tropical se desloca, o que teve relação com o acidente que derrubou o avião da Air France no meio do Atlântico. Havia uma parede de nuvens e massas de ar se misturando, causando chuvas mais fortes e turbulência.
Um ano depois, em 2006, houve grandes chuvas no Nordeste brasileiro e na Amazônia, registrando, inclusive, recordes do nível de água no Rio Amazonas. Com a água mais quente perto da costa brasileira, a evaporação é maior e vão se formando nuvens de chuvas mais fortes.
Os dois lados do ciclo devem se intensificar, tanto de chuva como de seca.
Estamos acostumados com o El Niño, mas ele é causado por massas de ar quente no Oceano Pacífico, não no Atlântico. Em 2003, tivemos enchentes em Roraima, assim como em 1997-98; em 1982, também houve enchentes na Amazônia, que causaram muitas mortes. Naquela época, em 1982, o desastre foi apresentado ao mundo como se fosse um ato de Deus; ‘simplesmente aconteceu, não foi culpa de ninguém’. Não se falava em conseqüências do desmatamento. Na hora que o El Niño e este fenômeno são ligados ao aquecimento global, aí fica muito diferente. Porque o aquecimento global tem culpados, sim, dá pra saber da emissão de gases de cada indivíduo e país.
No último Painel do Clima, em 2007, eu citei modelos que mostravam que, com mais aquecimento, vamos ter mais condições de ver o El Niño se manifestar, isto é, massas de ar quente no Pacífico. No caso do Atlântico, não há, digamos assim, uma teoria oficial. Há pesquisas que indicam ser mesmo fruto do aquecimento global, que tem aumentado a freqüência desse tipo de seca e chuva por conta da temperatura do Atlântico.
Um artigo na Revista Science de 2008 dá conta de que, se as emissões de gás carbônico no ar ultrapassarem 400 ppm (partes por milhão), a probabilidade de aqueles tipos de seca de 2005 se repetirem, e também de chuvas como as vemos hoje, explode, pois fica muito mais pesada a concentração de gases na atmosfera. E já estamos em 389 ppm, com um aumento médio de 2 ppm por ano, ou seja, já estamos quase nesse nível apontado como temerário.
Portanto, é muito importante, nas negociações no México no final do ano, se chegar a um acordo para manter um nível abaixo de 400 ppm. Porém, a questão não está resolvida, o número mais cogitado por aí é 450 ppm, e com esse acordo o Nordeste e a Amazônia enfrentarão eventos catastróficos novamente.
É muito importante que se estabeleça, portanto, tal limite de 400 ppm.
Correio da Cidadania: Esses desastres não se associam muito claramente também à falta de planejamento e de investimento em infra-estrutura, para fazer frente às intempéries naturais?
Philip Fearnside: Estamos com muitos problemas no Nordeste e é possível mesmo ter planejamento melhor. Em Santa Catarina aconteceram danos mínimos. Em 1982 houve grandes enchentes em Blumenau, que causaram um dano muito grande, mas lá existem algumas medidas para que a população não fique tão exposta, não ficaram tantas casas destruídas.
Por isso é importante ter um planejamento de verdade, para que se evitem tantas conseqüências.
Correio da Cidadania: O volume de água acumulado na época das chuvas na região não deveria levantar um questionamento sobre a tão difundida idéia da falta de água que assola os nordestinos?
Philip Fearnside: São coisas diferentes. Existem secas no Nordeste e a tendência é de que aumentem. Ao menos de acordo com previsões de modelos climáticos. Tanto o aumento do El Niño quanto esse novo fenômeno levam a seca ao Nordeste. Portanto, mesmo com enchentes, teremos anos com muitas secas.
E essa é uma região que já está no limite, um lugar que já sofre tremendamente com o clima atual, imagine com o clima dos próximos anos...
E não há como se aproveitarem essas chuvas hoje. Se caírem mais chuvas como essas, não se poderá armazenar a água para a sua utilização. Ou seja, joga-se fora o beneficio das chuvas, das quais o Nordeste precisa. Mas não dessa forma.
Correio da Cidadania: Ficou evidente a má conservação das matas ciliares dos rios que alagaram as cidades nordestinas, do que decorreu um fluxo das águas muito mais descontrolado. Esse fato vai, a seu ver, se agravar com a possível aprovação das mudanças no Código Florestal Brasileiro, envolvendo questões como a redução das Áreas de Proteção Permanente, no projeto proposto pelo deputado Aldo Rebelo?
Philip Fearnside: Esse era um dos pontos centrais do debate do Código Florestal, de abrir brechas para diminuir o tamanho das matas ciliares em margens, e realmente agora fica claro que é preciso conservá-las.
Sem dúvidas a situação pode piorar com as mudanças no Código que estão sendo aprovadas. E o pior de tudo é que se abrem brechas à presunção de que haverá mais anistia no futuro para quem desmatou acima do permitido por lei até aqui; fica a idéia de que quem desmatar ilegalmente também será perdoado futuramente.
Assim, ainda se verão muito mais problemas. O governo aceita os danos já praticados e coloca à disposição mecanismos para que ocorram outros mais, com as pessoas que respeitaram as leis sendo feitas de bobas, pois não desmatam, não cortam árvores, enquanto quem cometeu práticas ilegais é beneficiado. Logo, vão pensar em cortar também, e o hábito vai se perpetuando.
Evidentemente, tudo termina tendo um custo muito alto para as pessoas que sofrem as conseqüências da falta de tais precauções, como em relação à preservação das matas ciliares em rios etc.
Correio da Cidadania: É possível projetar os prejuízos ao país caso realmente se flexibilize o Código Florestal?
Philip Fearnside: Não se pode saber quanto será legalizado em termos de desmatamento ilegal de hoje. Mas o que não há como mensurar é o custo futuro, com as pessoas presumindo que poderão cometer todas essas ilegalidades e depois serem perdoados. Isso é muito perigoso.
Correio da Cidadania: Que medidas os governos estaduais, e o federal, deveriam adotar, a curto, médio e longo prazos, para evitar que futuramente se repitam os mesmos trágicos incidentes?
Philip Fearnside: Acho que a primeira prioridade deve ser a Convenção do Clima, pois o Brasil não tem tido um papel muito positivo nessas negociações. Só em 1999 que o governo aceitou a marca de 2 graus Celsius como definição de mudança climática perigosa, levando em conta a média de aumento da temperatura até a revolução industrial. Porque a convenção do clima assinada na Eco 92, no Rio, estabeleceu como objetivo evitar que os gases do efeito estufa chegassem a níveis perigosos.
A palavra chave é ‘perigoso’. O que está em discussão é quantas partes por milhão (ppm) de gás carbônico recebem tal consideração. É isso que está em negociação. Houve um acordo no ano passado de que 2 graus seriam a definição de perigoso, o que o Brasil só aceitou após o endosso de mais de 100 países.
Mas agora é preciso traduzir isso em relação à concentração dos gases. Até hoje o país não tomou decisões, dando a entender de que pensa em adiá-las ao máximo, permitindo mais emissões, desmatamento... Isso tem um custo muito grande e é um perigo para o Brasil. Especialmente para o Nordeste e a Amazônia, que, se continuar perdendo sua vegetação, sofrerá com secas também. Por isso é importante o país não deixar as coisas ‘irem rolando’, de modo a deixar tudo mais confortável para os países ricos.
Se o número escolhido for 450 ppm, haverá uma chance muito grande de se atingir o aumento da temperatura em dois graus. É jogar uma moeda no ar, com 50% de chances para cada possibilidade, colocando em risco a Floresta Amazônica, um desastre para o Brasil.
E há outras medidas a tomar, como a preservação de acordo com a necessidade e leis atuais, cuidado com as matas dos rios, enfim, um trabalho de prevenção para que se evitem tantos danos. Enchentes acontecem mais freqüentemente quando não se conservam bem os rios, pois suas águas acabam sofrendo mudanças em seus cursos. Enfim, há muito o que fazer, e o que destaco é que, à frente de tudo, se coloca a discussão sobre os efeitos dos gases estufa.
Correio da Cidadania: Acredita que haja vontade política para a tomada dessas decisões?
Philip Fearnside: Não quero ser fatalista, de achar que vai dar tudo errado, mas acontece que ninguém faz nada. É preciso ver os custos e benefícios de cada possibilidade. Mas, se ficarmos mais uns cinco anos sem fazermos nada, teremos conseqüências muito graves.
Mesmo que não exista uma vontade política mais visível, ela precisa aparecer.
Gabriel Brito é jornalista.
Colaborou Valéria Nader, economista e editora do Correio da Cidadania.
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Comentários
abracos,
Roberto Malvezzi (Gogó)
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