Eu tenho medo!
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- Pe. Alfredo J. Gonçalves
- 24/08/2010
Quem não se lembra do "Eu tenho medo!" de Regina Duarte quando, nas eleições de 2002, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva crescia nas pesquisas e ameaçava alcançar o posto máximo da presidência da República? A mesma situação de ameaça parece se repetir atualmente quando se procura mostrar que a candidatura de José Serra representa a burguesia e a volta do neoliberalismo. Em casos mais extremos, chega-se a falar de um possível retorno da barbárie. Filme reciclado que apela para o lado emocional dos eleitores, não para uma visão clara dos fatos.
Nos dois casos, tanto em 2002 quanto no atual processo eleitoral de 2010, o pânico apocalíptico joga fumaça nos olhos dos incautos, ofusca a realidade dos acontecimentos e impede uma análise mais objetiva da situação política. Nem Lula, quando eleito presidente, representou qualquer tipo de ameaça aos representantes do mercado financeiro internacional ou aos privilégios das classes dominantes nem o candidato Serra, se eleito, significará todo esse perigo anunciado.
Mais do que rupturas traumáticas, o que vemos no cenário político brasileiro é a continuidade mais ou menos tranqüila de um modelo político e econômico que se perpetua há décadas. Substancialmente, não se verificaram grandes transformações na passagem da gestão de Fernando Henrique Cardoso para Lula. Também deste para o próximo governo, seja ele quem for, não há sinais de mudanças que impliquem uma virada no rumo da política macroeconômica.
Nesta perspectiva, enquanto nas décadas de 1980-90 era teoricamente possível falar de uma disputa profunda de modelo político e econômico, de projeto nacional/popular versus projeto liberal/neoliberal, hoje essa alternativa não existe. O que se verifica é uma disputa entre duas dimensões do mesmo projeto neoliberal. Longe de significar o retorno do neoliberalismo, Serra apenas dará continuidade ao programa de Lula, que por sua vez o herdou de FHC.
O que podemos discutir nessa eventual troca de poder é a maior ou menor fatia do bolo oferecida aos setores mais carentes da população. Tanto é verdade que as comparações entre os últimos governos se restringem em geral a elementos periféricos (quem fez mais ou menos obras), não chegando ao debate sobre um novo horizonte no palco da economia política.
Não simpatizo com o PSDB nem com José Serra, creio inclusive que este pode, sim, significar um abalo nas políticas compensatórias do governo Lula: bolsa-família, microcrédito, sistemas de cotas, projeção do Brasil como país emergente, repasse de verbas para os movimentos sociais, entre outras. Mas o cerne neoliberal da política econômica, diante de qualquer resultado das eleições, tende a permanecer intocável. A opção é por mais ou menos migalhas aos moradores do andar de baixo, não por políticas públicas de profundidade. Em ambos os casos e independentemente de quem assuma o governo, o risco é de se consolidarem como definitivas políticas que, em verdade, nasceram com um caráter emergencial. Numa palavra, as políticas compensatórias não podem substituir políticas públicas de longo alcance.
Um exemplo pode ilustrar: se colocarmos num prato da balança os gastos com o programa bolsa-família ou bolsa-escola, com a ajuda aos movimentos sociais e à agricultura familiar, e no outro prato os lucros dos maiores bancos brasileiros, a diferença em favor dos últimos é exorbitante. Isto sem falar da opção pelo agronegócio e a empresa agroindustrial, da elevada carga tributária como transferência de renda para as classes dominantes, do latifúndio, das telecomunicações, da rede de transportes e assim por diante.
De fato, ao assumir a presidência da República, paradoxal e ironicamente, o presidente Lula dá as costas ao projeto popular e às organizações que o elegeram, e passa a administrar o modelo que combatia. Três razões o levaram a isso: primeiramente, as expectativas em torno de sua vitória estavam muito acima da capacidade de organização e mobilização das forças sociais; depois, a famigerada carta endereçada ao povo brasileiro, mas dirigida ao mercado financeiro, tranqüilizou os especuladores e investidores nacionais e internacionais quanto ao cumprimento dos compromissos por parte do novo governo; enfim, diante de tais circunstâncias e sendo um político extremamente sagaz, Lula opta por costurar uma aliança pela governabilidade, a qual, como sabemos, incluiu setores dos mais variados matizes políticos.
Não houve uma mudança de rumo substancialmente profunda e abrangente. Tampouco agora se prevê tal coisa. Aqui não está em julgamento a boa ou má vontade do presidente Lula ou dos candidatos Serra e Dilma. São circunstâncias históricas que mostram mudanças na periferia do modelo, mas deixam intacto o miolo do sistema capitalista e neoliberal. Ou seja, continuidade sem grandes rupturas!
Em síntese, estamos convidados a votar por mais ou menos migalhas para os habitantes da senzala, não pela possibilidade de um modelo alternativo. Por isso, não vejo razão para tanto pânico, nem para enxergar as próximas eleições num contexto míope de turbulências apocalípticas.
Pe. Alfredo Gonçalves é assessor das pastorais sociais da CNBB.
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Comentários
É preciso dar força aos processos de enfrentamento dos interesses dos poderosos. Nestes processos (avaliando pela experiência concreta de ver camisetas e bandeiras nas marchas do MST, plebiscitos populares, greves, ocupações, etc.) vejo muito mais a militância do PSOL que qualquer outro partido. O PT é ainda o maior negociador que fala pelos movimentos sociais, mas o maior agitador e politizador é, sem qualquer dúvida, o PSOL.
Nenhum nem todos aspectos positivos do governo Lula pode compensar a perda de autonomia política e capacidade de luta que o seu governo impôs aos trabalhadores conscientes e organizados do Brasil.
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