Juiz aposentado compulsoriamente reafirma desrespeito do Judiciário pelos presos
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- Gabriel Brito, da Redação
- 04/01/2011
Após mais um ano em que ficou constatada a falência do sistema prisional brasileiro, o Correio da Cidadania inicia os trabalhos deste novo ano publicando entrevista com o juiz Livingsthon José Machado, aposentado compulsoriamente – ato ainda não oficializado – e atualmente professor de Direito da PUC de Minas Gerais.
Após exercer carreira na Justiça mineira, Livingsthon se notabilizou pelo episódio, em novembro de 2005, em que ordenou a soltura de mais de 50 presos que tinham direito a responder o processo em liberdade, por conta também das condições mais que desumanas do presídio da cidade de Contagem. O ato causou alvoroço nos setores conservadores de nossa sociedade, sempre em busca de criminalizar a pobreza. Sob a benção do governador Aécio Neves, colocou-se ponto final na trajetória do juiz na magistratura.
Nesta entrevista concedida ao Correio, o juiz comenta o lamentável episódio do presídio de Pedrinhas (MA), no qual uma rebelião há cerca de dois meses terminou com 18 mortes. Além do mais, aponta para o total desprezo do Judiciário em relação a um presidiário, inclusive antes da condenação. "Não existe nenhuma relação de respeito do Poder Judiciário para com a população carcerária ou os acusados de um crime qualquer. Há na realidade uma ‘pré-concepção’ de culpa".
De acordo com ele, haveria espaço para a aplicação de penas alternativas a delitos leves, desde que "acompanhadas de um programa efetivo e fundo educativo" e "políticas públicas sérias", o que não se encontra em nosso horizonte. O fato mais relevante na área foi a consolidação do Brasil como a quarta população carcerária do planeta, exatamente por ter adotado nos últimos anos políticas que jamais planejaram "levar em consideração os parâmetros fixados na Constituição Brasileira para a construção de um Estado Democrático de Direito", ou seja, justiça social.
Por fim, Livingsthon Machado rechaça a idéia de diminuição da maioridade penal, única solução apresentada pela mídia e autoridades de turno. "Será que alguém, em sã consciência, acredita nisso?". A entrevista completa pode ser conferida a seguir.
Correio da Cidadania: Há cerca de dois meses, uma rebelião de 28 horas no presídio de Pedrinhas, no Maranhão, terminou com a morte de 18 presos. Entre as queixas dos presidiários, estavam as péssimas condições, em quaisquer sentidos, das celas, superlotadas, sem higiene e condições dignas de estadia. Para o senhor, o que isso retrata de nosso sistema carcerário?
Livingsthon Machado: Uma completa irresponsabilidade do poder público para com o problema grave que é a dignidade da pessoa humana e a segurança pública, vez que as duas questões estão intimamente ligadas, ou seja, acabam sendo uma só coisa embora tratadas pelas várias esferas do poder como antagônicas e diversas.
Correio da Cidadania: O nosso sistema carcerário, de alguma maneira, estimula a ressocialização, de fato, daqueles que por ali passam e cumprem suas penas?
Livingsthon Machado: A resposta parece por demais óbvia e é negativa; o sentimento de boa parte da população não é outro senão o de pura e simplesmente uma vingança, uma retribuição penosa para o crime perpetrado pelo infrator da lei.
Penso que boa parte da responsabilidade por este "sentimento", que parece ser coletivo, deve ser atribuída à imprensa que explora, em muitos casos sem qualquer cuidado ou escrúpulos, crimes de repercussão, promovendo um "sensacionalismo barato" mais ou menos como eram os espetáculos na Roma Antiga (luta de gladiadores até a morte – cova de leões etc.). E nós ainda nos consideramos civilizados...
Correio da Cidadania: Para o senhor, no que o Estado falha no sentido de oferecer possibilidades de reinserção social dos ex ou atuais presidiários?
Livingsthon Machado: Em todos os aspectos, mas principalmente na falta de uma política séria – quando me refiro a política pública, não me reporto a políticas de governos, de governantes ou de partidos políticos –, que leve em consideração os parâmetros fixados na Constituição Brasileira para a construção de um Estado Democrático de Direito, tratados no artigo primeiro como fundamentos deste modelo político, administrativo e jurídico.
Correio da Cidadania:O que o senhor reflete acerca do fato de o Brasil ter a quarta maior população encarcerada no mundo (pouco mais de 500 mil detentos), atrás somente de EUA, China e Rússia?
Livingsthon Machado: A reposta a esta questão é praticamente idêntica à anterior, ou seja, a falta de uma política pública séria, de segurança pública e de preservação dos direitos humanos, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e livre iniciativa etc.
O que vemos em nosso país é um oportunismo exagerado e uma apropriação indevida das mazelas sociais e humanas para a promoção de muitos políticos que se passam por bons moços, mas que não têm a mínima preocupação com as questões sociais, só com seus futuros, principalmente político.
Correio da Cidadania: O que pensa sobre o fato reconhecido pelo Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, de que praticamente um terço da população carcerária espera mandato de soltura para responder processo em liberdade - o que não ocorre também pela falta de defensores públicos?
Livingsthon Machado: A propósito disso concedi uma entrevista ao repórter Frederico Vasconcelos que foi publicada na Folha de São Paulo, salvo engano no dia 29 de outubro deste ano, quando comentei um mutirão realizado pelo CNJ que resultou na expedição de cerca de 3.000 alvarás de soltura somente em Minas Gerais, por razões exatamente iguais às que fundamentaram minhas decisões em 2005 – quando fui afastado da magistratura por isso, ou seja, pela ilegalidade das prisões ordenadas anteriormente ("O CNJ demorou muito para se ocupar de algo que já existia naquela época e até muito antes... Não gosto de ressaltar minhas ações. Contudo, penso que consegui agir concretamente muito antes, antecipando em cinco anos o que está sendo feito agora").
Correio da Cidadania: Não seria hora de o país começar a investir em políticas de penas alternativas para delitos leves? Que outras políticas o senhor acha que seriam positivas nesse mesmo sentido?
Livingsthon Machado: Concordo, em parte, com a política de penas "alternativas", que na verdade são substitutivas das penas privativas de liberdade. Contudo, a simples alteração das espécies de pena não contribui em nada para o combate à criminalidade ou ressocialização daqueles que comentem infrações penais; ao contrário, só gera maior sensação de insegurança, impunidade e desrespeito às leis.
Repito, é preciso que se adotem políticas públicas sérias de combate à criminalidade. Se através de alternativas às penas privativas de liberdade, que sejam acompanhadas de um programa efetivo e fundo educativo.
Correio da Cidadania: Na sua experiência como juiz, o que pode relatar a respeito da relação do Poder Judiciário com a população carcerária e a preservação de seus direitos?
Livingsthon Machado: Não existe, na verdade, nenhuma relação de respeito do Poder Judiciário para com a população carcerária ou para com aqueles que estão na condição de acusados de um crime qualquer. Há na realidade uma "pré-concepção" de culpa ou de responsabilidade penal.
Veja, por exemplo, a famigerada "Lei da ficha limpa" e a dificuldade que hoje tem uma pessoa comum para conseguir uma liberdade que é chamada de provisória.
Hoje, o que se vê na maioria dos processos criminais é uma acusação quase que conjunta do delegado de polícia, do promotor de justiça e do juiz criminal... Quase que poderíamos dizer que, se tivéssemos mais um participante, não estaríamos longe de uma quadrilha.
Correio da Cidadania: O senhor crê, portanto, na validade da idéia de que o Poder Judiciário permanece com olhar pouco apurado às questões éticas e sociais, aplicando friamente a lei aos mais pobres, ao passo que, quando se trata de processos envolvendo a elite econômica, o tratamento muda?
Livingsthon Machado: O pior é que o Judiciário tem se esquecido da aplicação das leis e das normas constitucionais para aplicar aquilo que alguns juízes mais antigos, ou de maior graduação, entendem que é justo, colocando-se muitas vezes na condição de detentores de uma verdade absoluta.
Assim, o que é justo para os mais afortunados economicamente certamente não será justo para os menos afortunados e vice-versa.
Correio da Cidadania: Por que, diante de condições tão deploráveis para os presos de Contagem, o seu ato de libertar aqueles que esperavam transferência foi bombardeado de forma implacável, resultando em pressões políticas até do governador Aécio Neves e na sua aposentadoria compulsória?
Livingsthon Machado: Esta questão eu respondo no meu livro, mas acredito que ainda não é o momento mais adequado para comentar sobre isto. Peço que controlem um pouco a curiosidade e aguardem a edição do livro que escrevi contando todo o ocorrido, inclusive com algumas análises jurídicas das questões. Se conseguir nova editora para a publicação, assim que for publicado o ato de aposentadoria, cuidarei da publicação do livro e seu lançamento.
Correio da Cidadania: O que pensa da discussão sobre a diminuição da maioridade penal, trazida novamente à pauta após os conflitos entre a polícia carioca e Forças Armadas contra os tradicionais comandos do tráfico?
Livingsthon Machado: Creio que é uma medida inócua e que os efeitos seriam mais desastrosos, com uma sensação ainda maior de insegurança e impunidade. Não existem vagas em estabelecimentos penais adequados para o cumprimento de pena para os hoje imputáveis; não existem programas de reeducação ou prevenção de crimes eficazes.
Se aumentarmos o número de condenados, em que isso contribuirá para a diminuição dos crimes violentos? Será que alguém, em sã consciência, acredita nisso?
Gabriel Brito é jornalista.
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