Correio da Cidadania

Futebol: sócio-torcedor ou buyers-club

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Uma discussão que parece ter-se perdido nos últimos anos é o histórico das modalidades populares de associação de torcedores aos clubes. Nos anos 2000, foram diversos os movimentos de torcedores, reservados aos seus clubes, que exigiam democratização na participação política das instituições. Esses movimentos aproveitavam – em casos bem esparsos – a criação de planos de associação que, à época, buscavam atrair os torcedores aos estádios com a vantagem de ter acesso livre aos jogos.

 

Era uma contraofensiva torcedora à proposta amplamente difundida pela imprensa comercial de que a saída para o fim dos desmandos dos cartolas era a transformação dos clubes em empresas. Os movimentos de torcedores propunham ser necessário ampliar o arco de decisões para além das famílias e grupos políticos restritos que dominavam a direção dos clubes.

 

Não aconteceu nem um, nem outro. Os clubes até continuaram associações civis, para o bem dos torcedores, mas não houve nenhuma grande medida que exigisse a democratização de suas estruturas através de reformas estatutárias obrigatórias. Poucos foram os casos, e por conta de conjunturas locais, em que os clubes permitiram a escolha dos seus presidentes pelo voto direto do torcedor associado.

 

Em alguns casos, como nos clubes do Rio Grande do Sul, o voto é amplo e o processo eleitoral agita a vida da instituição, mas outros se resumem a uma reunião de poucos conselheiros que, volta e meia, elegem um novo presidente por “aclamação”, batendo palmas, como muitos clubes do Nordeste. Não há um levantamento preciso de todos os modelos estatutários dos clubes brasileiros, mas sabe-se que, em grande parte, a participação do torcedor comum é muito restrita.

 

Um dos poucos onde essa discussão avançou de forma favorável aos torcedores foi o Esporte Clube Bahia, quando uma crise derrubou, via justiça, a diretoria comandada pela família Magalhães, e a associação massiva foi um passo para reaproximar o torcedor e gabaritar politicamente o grupo que se mantém hoje. Ainda que seja repleto de limites, o formato estatutário do Bahia está muito à frente do seu principal rival, o Vitória, que conseguiu ampliar o quadro de sócios, mas teve, na promessa de democratização do clube, uma série de impedimentos e manobras suspeitas.

 

O tema da mudança de caráter dos clubes brasileiros voltou à tona por conta da Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE) impulsionada pelo governo federal, retirado de pauta para reforma do texto a partir de pedidos do Bom Senso FC. A ideia era garantir alguma contrapartida aos clubes pela prorrogação do prazo de pagamento das dívidas.

 

Ninguém sabe ainda qual será a contrapartida. O momento deixa novamente em aberto a discussão sobre o caráter jurídico dos clubes brasileiros que ainda não optaram por transformar-se em empresas, como exige a cartilha do football-business mundial. Por outro lado, pode-se voltar a discutir os direitos políticos do torcedor nos clubes.

 

Planos de sócio-consumidor

 

Ainda que a mudança na LRFE ajude nas discussões de democratização dos clubes, o que temos atualmente é uma total deturpação do projeto original de sócio-torcedor, que criava uma modalidade popular para associação aos clubes. Hoje eles não passam de um clube de compras, um buyers club à moda antiga.

 

O “Movimento Por Um Futebol Melhor” foi a ponta-de-lança dessa mudança de caráter da associação popular. Uma união entre diversas empresas, capitaneadas pela Ambev, aproveitou o descrédito dos clubes, os estádios vazios e a aproximação da Copa do Mundo pra promover uma imensa jogada de marketing: os clubes filiados ao “movimento” permitiriam que seus associados usufruíssem de promoções na compra de produtos dessas empresas, em qualquer cidade e estabelecimento comercial. O garoto-propaganda era o, até então, quase onipresente Ronaldo “Fenômeno”, recém-aposentado.

 

Como era de seu interesse, o próprio “movimento” fez questão de monitorar o crescimento das associações e vangloriar-se disso. Os clubes, por sua vez, passaram também a promover essas vantagens de consumo nos planos de sócios-torcedores, enquanto pouco avançavam em suas reformas estatutárias.

 

Em suma: o “movimento” não significava absolutamente nada na luta dos torcedores. As mudanças estatutárias foram deixadas de lado e as vantagens aos associados se resumiram a promoções consumistas – incluindo aí o próprio ingresso do jogo – e os clubes continuam os mesmos feudos de sempre. A diferença é que um simpatizante de um clube carioca que morasse em Manaus, mesmo que não fosse ao estádio, poderia beneficiar-se dessa associação consumidora, afinal os direitos de promoção estavam resguardados.

 

O Globoesporte.com publicou uma longa reportagem sobre planos de sócio-torcedor no Brasil, chamando-os de “mina de ouro” e ressaltando o sucesso de alguns clubes, com um claro recado ao Vasco e Botafogo, afirmando que estes vivem “na idade das pedras”. Apontam, inclusive, que hoje a expectativa é de que a associação seja a segunda maior fonte de renda dos clubes, atrás apenas dos repasses de direitos televisivos.

 

Na matéria produzida por Alexandre Alliati e Daniel Mundim, em 27 de janeiro, há uma menção à lógica que hoje domina os planos de sócio-torcedor: “Na prática, o associado é fisgado como torcedor, mas precisa ser mantido como cliente: revista chegando em dia, descontos efetivamente aplicados, tecnologia funcionando na hora de comprar o ingresso, facilidade para pagar a mensalidade”.

 

Outro destaque: “O sócio é um produto entre vários produtos do clube. E precisa ser trabalhado assim. O programa precisa ter qualidade, o torcedor precisa perceber valor nele. É uma visão que pode até parecer fria, do futebol como negócio, mas em cima de algo apaixonante. É preciso que você consiga fazer a entrega de um produto de qualidade. Aí o torcedor vai consumir o produto. São consumidores da paixão. Precisa dar tratamento de produto a isso – opina o diretor de marketing do Cruzeiro, Marcone Barbosa”.

 

O atual momento do futebol brasileiro promete ser a corrida dos planos de sócio-torcedor nos moldes colocados pelos marqueteiros. O Palmeiras, por exemplo, iniciou 2015 com um imenso número de contratações com o claro objetivo, revelado pelo próprio presidente do clube, de atrair os torcedores para o programa “Avanti Palestra” de sócio-torcedor do clube paulista.

 

Ou seja: os próprios diretores já deixaram de planejar a associação popular como atração dos torcedores para uma “comunidade” que o clube consegue representar. A ideia agora é criar grandes jogadas de marketing para garantir a associação, pelo menos, por períodos curtos, tendo do torcedor a resposta de um consumidor que deve ser convencido a pagar um alto valor para obter vantagens na compra de ingresso e de outros produtos.

 

Democratizar os clubes pra quê?

 

Um caso muito interessante para se entender a diferença de ter um clube com estatuto que permita a participação torcedora é o exemplo do Sport Club Internacional, de Porto Alegre.

 

O Internacional é um dos clubes brasileiros cuja estrutura administrativa mais se assemelha a uma empresa, tendo um executivo submetido a cada uma das 11 vice-presidências do clube. O Inter conseguiu emplacar uma reforma no Beira-Rio como sede gaúcha da Copa do Mundo de 2014.

 

Mas é ao mesmo tempo o clube mais democrático do Brasil, cuja estrutura associativa é um ponto extremamente sensível. Nenhum presidente jamais ousaria mexer nas regras que permitiram, em 2014, o grupo criado por torcedores comuns, em 2012 (antes das eleições), chegar a ter 16 conselheiros no clube.

 

O Povo do Clube define-se como “um movimento político no âmbito do Internacional, mas também é um movimento social, que transcende as questões clubísticas que muitas vezes limitam as ações dos grupos organizados”. Sua principal bandeira é a democratização do acesso ao Beira-Rio, tendo como símbolos torcedores históricos que não conseguem mais entrar na nova Arena do clube.

 

O grupo promete ser a força contrária à elitização do Beira-Rio, do Inter e do futebol brasileiro como um todo. Uma força política que cresce num dos clubes mais “empresariados” e lucrativos do país, e servirá de contramola na importante luta contra a elitização do próprio estádio. Uma experiência que deve ser acompanhada de perto e que pode inspirar torcedores de outros grandes clubes.

 

 

Irlan Simões é jornalista e editor da Revista Rever.

Publicado originalmente em Outras Palavras.

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