O outro “7 a 1” da Alemanha sobre o Brasil
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- Irlan Simões
- 17/07/2014
Terminada a Copa do Mundo de 2014, com o sangue frio, chega a hora da reflexão e da busca de pistas que nos tragam explicações sobre o que fez essa edição brasileira ser chamada de “Copa da Zueira”. Resultados imprevisíveis, eliminações precoce de favoritos, classificação de zebras etc. marcaram o decorrer desse torneio que vai ficar para a história.
A taça acabou por seguir o roteiro mais simples – algo raro no mundo do jogo dos pés. A favoritíssima Alemanha chegou a passar sufoco contra a Argentina, mas confirmou a superioridade no final da prorrogação, com gol de Götze.
Mas não adianta. Pode-se elencar tudo o que nos surpreendeu nesses tantos dias de futebol, mas o grande marco do evento será a goleada humilhante de 7 a 1 da Alemanha sobre o Brasil na semifinal.
É importante ressaltar que grande parte do torcedor mais devoto do futebol, aquele que vai com frequência a estádios e acompanha diariamente o clube do coração, não tem estômago para torcer pela Seleção. Eu chuto 98%, sem medo de acertar.
É uma questão de orgulho, de revolta e de certo entendimento de que o sucesso da Seleção é proporcionalmente inverso ao sucesso da liga interna de clubes do Brasil. O atropelo alemão na semifinal instigou sentimentos muito intensos de incredulidade por algo que nunca se viu na história do futebol, ao mesmo tempo em que representou gol após gol a absurda superioridade do futebol alemão diante do brasileiro.
Não estamos falando apenas da qualidade técnica dos atletas e do esquema tático que deixou jogadores e espectadores completamente tontos durante os 90 minutos. Estamos falando de um “7 a 1” que compete à totalidade da engrenagem que faz o futebol. Uma goleada que é sentida até pelo mais ferrenho oposicionista da CBF e de seu selecionado de lobistas.
Sim, doeu. Esse outro “7 a 1” ao qual me refiro já era denunciado há anos. Assim como o buraco em que nos metíamos enquanto a Alemanha, sem muito alarde, se mostrava um colossal exemplo do que fazer para corrigir o futebol brasileiro.
O texto que segue não tem nenhuma informação nova. Tudo o que será elencado aqui já estava sendo estudado, apontado, escrito e avisado há pelo menos 6 anos, portanto evitarei me alongar. Sempre que preciso será oferecida alguma fonte alternativa para mostrar como o resultado da “outra” goleada precisava finalmente ser sentido (mesmo que o placar fosse menor e menos humilhante).
Dada a largada, segue o baile alemão.
Alemanha 1 x 0 Brasil – Liga forte
A Bundesliga, como é conhecida a Liga de Clubes de Futebol Profissional da Alemanha, não é a mais rica (leia-se, a que gira maior volume de dinheiro), mas é, de longe, a mais bem sucedida e equilibrada. Os fatores que justificam essa assertiva envolvem os pontos que seguirão nos próximos “gols”, mas vale destacar que é uma liga de potência indiscutível, principalmente por não ser comandada por magnatas e mecenas de todos os cantos do planeta. Claro que toda essa discussão envolve questões macroeconômicas, portanto, ressalvas serão bem-vindas.
Os clubes são clubes, entidades da sociedade civil, e não meras empresas componentes de holdings pertencentes a barões alemães, oligarcas russos ou sheiks árabes. A Alemanha conseguiu atingir um ponto único no futebol mundial – e se esforça diariamente para manter isso – ao impedir a farra da grana suja que assola o futebol europeu, ao mesmo tempo em que não tem casos de feudos de cartolas, como acontece na América Latina. Isso reflete dentro de campo e seus resultados são de longo prazo. É por isso que os anos 2010 pertencem a eles.
Alemanha 2 x 0 Brasil – Estádios cheios
Bom futebol atrai bom público, mas não apenas isso. Os alemães se notabilizaram por conseguir aliar uma liga forte e “bem paga” com um público impressionante por conta de um fator muito simples: ingressos baratos. A média de 45 mil torcedores por partida é a maior do mundo, superando a tão exaltada Premier League e se mantém por conta do valor médio do ingresso ser o mais barato dentre as grandes ligas, em média 22 euros. Sobre isso vale ler “Die Dauerkarten – A Casa Sempre Cheia!”, de Fred Elesbão.
O ingresso alemão pode ser considerado mais barato do que o brasileiro (confira “Por que nosso estádios estão vazios”), caso se tenha como critério a renda per capita do trabalhador local, mas não apenas isso: para os clubes alemães o futebol só faz sentido com estádios cheios, e para encher eles viabilizam a entrada do povo.
Uma cidade como Dortmund chega a colocar 14% de sua população dentro do estádio durante o jogo do Borussia. Muito diferente do que está reservado às cidades brasileiras que acabam de adotar as novas Arenas (ao privatizar seus antigos estádios), feitas para ricos com seus ingressos caríssimos. Tudo, claro, com ampla aprovação da imprensa esportiva, clubes, federações e patrocinadores.
Alemanha 3 x 0 Brasil – Modelo que preza pelo equilíbrio
No Brasil, quando se aponta o futebol inglês como exemplo, propõe-lo como uma saída para o fim dos desmandos dos cartolas. Jornalistas muito famosos já cometeram esse equívoco, dentre eles o próprio Juca Kfouri. A proposta é que se adotasse a perspectiva neoliberal impulsionada por Margareth Thatcher nos anos 1980, onde clubes abririam o seu capital e venderiam suas ações. Para entender mais desse assunto leia “Fraude no episódio que mudou a face do futebol mundial”.
Obviamente, já se imaginava que em pouco tempo todos os clubes acabariam por ter um acionista majoritário e, por que não dizer, um dono. O problema principal é que a grande maioria desses donos são figuras cuja origem da riqueza é, se não questionável, praticamente inaceitável. Como listado acima, praticamente todos os clubes ingleses são bancados por mecenas estrangeiros que praticamente não se importam com futebol, mas têm naquelas agremiações centenárias uma boa oportunidade de se inserirem no mercado britânico ou mesmo para lavar parte da grana que adquirem em atividades suspeitas.
Quando o modelo passou a se espalhar pela Europa, atingindo Espanha, França e mais recentemente a Itália, parecia que seria inevitável a Alemanha ceder. Talvez por manter uma certa tradição de reconhecer o papel do Estado na economia ou por prezar pelas suas entidades civis e o papel social que essas cumprem, a Alemanha adotou a lei de 50+1%. Os clubes poderão, sim, vender ações, mas o controle majoritário está – assegurado por lei – nas mãos de seus torcedores associados. Entenda mais em “’50+1 muss bleiben’, e a Luta pela Autonomia”, de Fred Elesbão.
O nome disso é bem simples: “mecanismo de controle”. Além da regra que mantém os clubes vivos enquanto associações – numa conjuntura totalmente adversa – a regra os viabiliza financeiramente. Os alemães também estão ampliando as regras referentes ao fair-play financeiro. Não se pode gastar mais do que se ganha e as punições podem ser grandes para quem descumpre a regra.
Alemanha 4 x 0 Brasil – Formação de atletas e treinadores
Mesmo sendo rica – portanto capaz de ser uma força importadora de atletas – a Bundesliga mantém uma média de renovação de seus jogadores. Desde 2010, os clubes alemães mantêm um número de atletas oriundos da divisão de base dos clubes – com idade abaixo dos 23 anos – próximo a 15%.
Como a proposta é apenas condensar todos esses pontos num só texto, sendo sintético, cito aqui o texto de José Antonio Lima no Esporte Fino – que traz, entre outras ótimas informações, dicas de textos para entender o que significou “o 7 a 1”. Algumas ressalvas devem ser feitas no texto, mas cabe destacar o trecho abaixo:
“Ultrapassada por outros países no futebol, a federação alemã passou a educar futuros jogadores e técnicos, em um trabalho espalhado pelo país, que conta com 366 centros de treinamento, campeonatos nacionais ao longo do ano para garotos dos 15 aos 21 anos, uma filosofia única em todas as categorias de base e na seleção principal. Os clubes são parte integral do projeto e atuam em parceria com a federação e escolas para formar as crianças. O objetivo final é jogar bem e cuidar do futebol, não ganhar títulos”. Veja na íntegra o texto “O 7 a 1 não vai reformar o futebol brasileiro”.
Os pontos destacados por Lima são confirmados numa entrevista de Paul Breitner na ESPN ainda em 2012. Depois do vice de 2002 a Alemanha reconheceu que estava defasada e passou a trabalhar a longo prazo. A pragmática alemã, aliada à boa vontade e seriedade de seus comandantes, está vendo seus resultados assim.
Alemanha 5 x 0 Brasil – Superioridade tática
Atletas são formados com compreensão tática assim como profissionais de comissões técnicas são preparados independentemente de um dia terem sido atletas profissionais. O que aconteceu na semifinal entre Brasil e Alemanha, é importante frisar sempre, “não foi um apagão”, foi um vareio tático. O texto “Futebol é tática, aceitem”, de Eduardo Cecconi, é uma aula para entendê-lo.
Como afirma o autor do texto, em acordo com tantos outros comentaristas sérios, a comissão técnica brasileira composta por Scolari e Parreira (dois últimos campeões mundiais com o Brasil) estava totalmente defasada teoricamente. Os quatro gols saíram consecutivamente porque Felipão não sabia o que estava acontecendo.
Alguém me falou no Facebook que se não fosse Felipão, não haveria ninguém. E é verdade. Caso a renovação anunciada passe por Muricy Ramalho ou Tite, como tem sido anunciado recentemente, provavelmente passaremos mais algumas Copas no vale da perdição tática.
Ou continuaremos esperando milagres saindo de pés talentosos, que estão ficando cada vez mais raros, e mesmo que surjam aos montes, já não são venenos tão letais como em outros tempos. O mundo inteiro aprimorou antídotos defensivos contra jogadas individuais. O futebol vem sofrendo uma “coletivização forçada” nos últimos anos e só o Brasil – a mais individualista das escolas – não percebeu?
Alemanha 6 x 0 Brasil – Liga > Confederação
A Seleção Alemã é menor do que a Bundesliga. Ler uma frase solta assim pode parecer estranho, até porque essa é uma lógica pouco compreendida no Brasil. Vale ler o texto de “Nossa preocupação é com a seleção. Essa é a nossa prioridade”, de Anderson Santos sobre o assunto, o qual tento sintetizar abaixo.
Entende-se, ao se analisar a estrutura financeira dos principais países do futebol, que o Brasil é o único caso no mundo em que a Seleção tem maior relevância do que a liga interna. É prioridade de investimentos numa realidade em que o futebol brasileiro passa por dificuldades financeiras e desequilíbrio de gestão. Clubes gastam como querem e como não podem, o Governo Federal oferece sucessivos socorros e a principal financiadora do futebol brasileiro – a Rede Globo de Comunicação – assiste a tudo isso na posição de quem sabe que quanto pior, melhor.
A escolha de Felipão e Parreira – uma dupla já campeã e, supunha-se, inquestionável – é a cara da cartolagem mumística representada por José Maria Marin e Marco Polo Del Nero. Não é possível afirmar que não, mas uma opção tão obviamente equivocada como essa não seria aceita em qualquer outro país.
Alemanha 7 x 0 Brasil – Torcedores organizados
Sim, eles têm organizações de torcedores como a nossa, também curtem umas brigas, mas não são marginalizados e tratados como criminosos como acontece no Brasil. Os torcedores são parte fundamental da própria sociedade alemã, não apenas do futebol.
Anualmente realizam diversos atos públicos e se posicionam, tal qual uma categoria de trabalhadores, sobre diversos temas que envolvem o esporte, o acesso aos estádios, ao lazer e ao próprio papel deles enquanto torcedores.
Não foi à toa que a Alemanha se notabilizou por reservar tribunas exclusivas para torcedores de perfil festivo. Foi fruto de luta e de resistência das organizações que pautam a “fanculture”. São eles também os responsáveis pela manutenção da regra de 50+1%, que nos últimos anos sofreu alguns ataques. Vale a pena ler ““’Erhalt der Fankultur’ – Passeata geral dos Torcedores da Chucrutelan”, de Fred Elesbão.
Alemanha 7 x 1 Brasil – Gol de consolação
Ainda vai demorar pra eles chegarem ao penta. Ou não. Pelo andar da carruagem, e caso tenha sucesso na projeção de novos talentos nas temporadas mais recentes, a Alemanha volta a 2018 com um timaço como o desse ano. Preparado fisicamente, disciplinado, ciente de suas capacidades, com postura coletiva e com um aprimoramento técnico incrível.
O Brasil não precisa imitar o modelo alemão, muito pelo contrário. Durante anos se propôs todo tipo de projeto, inspirado na Inglaterra, na Espanha e até nos Estados Unidos. Esquecemos o futebol como jogo quando colocamos na cabeça – e demos demasiado espaço a duas dúzias de espertos – que o futebol era um grande negócio e tratá-lo como tal seria o suficiente. Os alemães provam que largar tudo ao bom humor dos investimentos é um grande equívoco.
Como falado no texto citado acima, no item do quarto gol, a mudança que se supõe aqui é muito pouco provável. A expectativa é de que Marco Polo Del Nero aplique em nível nacional o que fez com muito sucesso no futebol paulista: um aglomerado de clubes-empresa sem história, sem torcida e que migram de cidade sem o menor pudor. Puro business e jogos ruins de se ver, às custas do sumiço de diversos clubes tradicionais.
Por fim, deixo o vídeo com a opinião de Paulo Calçade, comentarista da ESPN, que de certa forma sintetiza o que foi colocado aqui.
Que se tenha como lição. Até 2018!
Irlan Simões é jornalista e editor da Revista Rever, onde este texto foi originalmente publicado.