Cerca de Miseráveis
- Detalhes
- Otto Filgueiras
- 22/03/2011
Parida à noite no gabinete do prefeito de Osasco, Emídio de Souza, do Partido dos Trabalhadores (PT), aprovada na Câmara de Vereadores da cidade e sancionada pelo mesmo prefeito no final do ano passado, a Lei dos Bolsões Residenciais é inconstitucional, não foi debatida democraticamente com a comunidade pobre que constitui a grande maioria da população de 718.646 habitantes do município, mas é comemorada com entusiasmo pela elite local: Associação dos Lojistas, Associação de Condomínios, associações de bairros com imóveis de padrão mais elevado, especuladores imobiliários e empresas de segurança privada.
Paralelamente, em fevereiro passado, a televisão Record exibiu reportagem sobre o funcionamento ilegal de bingos e caça-níqueis no município, demonstrando que quadrilhas legais e ilegais atuam em Osasco há muitos anos e com proteção da polícia, confundindo-se com o crime organizado.
Na região do Novo Osasco, os caça-níqueis funcionam clandestinamente ou abertamente e com proteção policial em muitos estabelecimentos comerciais. Até o ano passado, o presidente da Câmara de Vereadores da cidade, Osvaldo Virgínio, um ex-PM envolvido em acusação de assalto a banco, era aliado do prefeito Emídio de Souza e corre de boca em boca que o vereador também estaria enrolado em atividades econômicas escusas. Na última eleição federal ele fez campanha para o PT, se candidatou a deputado por um partido aliado, mas não conseguiu se eleger.
Em meio aos interesses econômicos das quadrilhas legais e ilegais está o bairro City Bussocaba, um loteamento com 800 casas de padrão mais elevado e localizado próximo da Avenida Nova Osasco. Até 2005, o lugar era relativamente pacato, com algumas ocorrências de furtos e assaltos a mão armada, a exemplo do que acontece nas grandes cidades brasileiras. A partir de então, os assaltos a residências se multiplicaram e o bairro passou a ser alvo da cobiça das administradoras de condomínios, de empresas de segurança privada vinculadas a policiais e da Sociedade de Amigos da City Bussocaba (Sacity), que pressionam os moradores no sentido de pagarem a segurança privada da AGEM e as mensalidades da Sacity, cujo número de associados é reduzido e não totaliza nem 2% do total da população do bairro.
Ainda assim, no final do ano passado, a Sacity conseguiu do prefeito Emídio de Souza a consolidação da doação em comodato de um terreno da prefeitura para construção de sua sede social no bairro, onde máquinas da Secretaria de Obras Municipal fizeram a terraplenagem.
Por pressão da Associação de Condomínios, Associação de Lojistas, sociedades de bairros com imóveis de padrão mais elevado e manipuladas por especuladores imobiliários, o prefeito Emídio de Souza também elaborou no ano passado a Lei dos Bolsões Residenciais ou a "Cerca de Miseráreis", como já é chamada ironicamente pela população pobre, permitindo assim que alguns bairros possam ser "fechados" e se tornem ilegalmente falsos condomínios, nos quais a prefeitura, a PM e o poder público deixam de ter responsabilidades e os moradores arcam com quase todos os serviços do lugar, incluindo a segurança privada.
No caso de Osasco, a Lei dos Bolsões Residenciais permite o fechamento completo de bairros e ruas, portarias com guaritas e cancelas impedindo o acesso de pessoas que não residem no local. Diferente, portanto, de bolsões de outras cidades, nos quais a lei é mais amena e aparentemente visa reduzir o fluxo de veículos nos bairros residenciais.
Além de apoiar a venda de proteção de empresas de segurança privada para a comunidade que pode ou é obrigada a pagar, a exemplo da prática exercida pela máfia na Chicago (EUA) de 1930, a Lei dos Bolsões de Osasco estabelece que os moradores do bairro ofereçam como garantia seu imóvel.
Em 2007, a Casa Civil do governo de José Serra foi alertada para os problemas, incluindo assaltos a mão armada nas residências, cujos moradores ficavam e ficam literalmente rendidos e seqüestrados nas próprias casas. Foi relatado também que alguns dos assaltantes tinham corte de cabelo igual ao de policiais, que o policiamento preventivo da PM fora reduzido e que imediatamente após a onda de assaltos a diretoria da Sacity passou a distribuir boletins, alarmando mais ainda os moradores, exagerando o tamanho do problema, fazendo terrorismo, dizendo que a solução seria o "fechamento" do bairro e exigindo que todos assinassem contratos com a empresa de segurança privada AGEM, controlada por policiais.
Depois disso, a Corregedoria da PM abriu inquérito para apurar a participação de policiais nos assaltos e investigar a informação de que coronéis da PM eram donos de empresas de segurança privada. Na ocasião, alguns moradores foram chamados a depor e não se tem notícia de nenhuma providência, a não ser que esses moradores ficaram visados. Um deles foi abordado por policiais da PM no quintal de sua própria casa, confundido pelos soldados como "ladrão". O incidente foi relatado à Casa Civil do governo de José Serra, que foi informado também de que viaturas da PM estavam passando com mais freqüência pelo bairro, mas os policiais abordando seus moradores de forma truculenta e com armas em punho, obrigando-os a colocar a mão na cabeça para revistá-los.
Na época, a Ouvidoria da Prefeitura de Osasco teve conhecimento dos fatos, o ouvidor e funcionário público José Pedro da Silva, hoje chefe de gabinete do prefeito Emídio de Souza, foi alertado sobre as quadrilhas legais e ilegais que atuavam e atuam no bairro, sobre a segurança privada AGEM, sobre a Sacity e o seu plano de conseguir junto à prefeitura a aprovação do projeto dos bolsões residenciais. Também foram procurados os vereadores Mario Guide, do PSB, e Sônia Rainho, do PT, e informados detalhadamente de todos os problemas.
Na ocasião, o deputado federal Cândido Vacarezza foi informado pessoalmente dos graves problemas em Osasco e do envolvimento da administração municipal. Foi solicitado ao deputado que comunicasse ao governo federal a gravidade dos problemas, para analisar a possibilidade de investigação pela Polícia Federal.
Mas tanto o ouvidor da prefeitura de Osasco quanto os vereadores e o deputado citados não tomaram qualquer providência e, de roldão, o prefeito Emídio de Souza elaborou, aprovou e sancionou no ano passado a Lei dos Bolsões Residenciais, a "Cerca de Miseráveis".
Há um mês, um jovem morador de nome Luciano, do Jardim Belmonte, na Olaria do Nino, bairro pobre próximo à City Bussocaba, ficou desaparecido depois de ter sido espancado no loteamento Terra Nobre por seguranças da AGEM, sob a suspeita de que o garoto era "bandido". Uma semana depois o rapaz apareceu morto, com as pernas quebradas num terreno baldio. Desde 2008 também circula a notícia de que seguranças da AGEM distribuem cocaína no bairro; e, em 2009, um de seus seguranças matou outro a tiros.
Paralelamente, a Sacity convocou uma "assembléia de moradores" para aprovar o fechamento e a implantação do "bolsão" no bairro City Bussocaba. Apenas 30 pessoas compareceram, a maioria das quais eram "diretores" da Sacity.
Mas o bairro City Bussocaba tem 800 casas construídas, população de quatro mil pessoas e está localizado próximo ao Parque Municipal Chico Mendes, freqüentado pelos moradores da região que, na sua grande maioria, vivem precariamente em residências pobres e favelas.
Fica claro que o problema dos caça-níqueis, com acobertamento policial, a atuação de empresas de segurança privada ligadas a policiais, grupos de extermínio, Sacity, associações de condomínios, interesses da especulação imobiliária e a Lei dos Bolsões Residenciais fazem parte da mesma dinâmica em Osasco, agora com apoio da prefeitura, que autorizou a privatização do espaço público e o cerco contra os pobres que não podem pagar proteção, contrariando assim a promessa da presidente da República, Dilma Rousseff, de erradicar a pobreza no Brasil.
Mas é preciso destacar que a atuação das "quadrilhas legais" nas sociedades de amigos de bairros na região metropolitana paulista é antiga: fecham o bairro, apoderam-se de bens públicos, como ruas e praças, e obrigam os moradores a pagar mensalidades; quem não paga é processado e corre o risco de perder o imóvel, a exemplo do que acontece no município de Cotia e em vários outros lugares no estado de São Paulo, conforme tem denunciado a Associação das Vítimas de Condomínios - AVILESP (http://www.avilesp.org.br/).
Assim, tanto em São Paulo quanto em outras regiões metropolitanas do Brasil, a exemplo do Rio de Janeiro e Salvador, a omissão do Estado nas esferas municipais, estaduais e federal permite a apropriação do espaço público por grupos privados, deixa alguns policiais civis e militares vender serviço à comunidade que pode ou é obrigada a pagar a proteção das empresas de segurança, facilita o envolvimento de políticos com o crime organizado e com grupos de extermínio de meninos pobres "assaltantes".
No caso paulista, o problema se repete em vários municípios da região metropolitana. Um exemplo: dois jovens apareceram mortos na Rua Ouro Preto, nos limites dos bairros São João, Santo Antonio e Chácara de La Rocca, em Carapicuíba. Um terceiro jovem, entretanto, conseguiu escapar da chacina e, posteriormente, denunciou à polícia o indivíduo Francisco Marinho de Morais, dono da Actual Vigia, como o autor dos disparos que mataram os rapazes, conforme o relato de uma moradora da região. Consta que o indivíduo é ex-policial militar, ex-integrante da Rota e teria uma extensa ficha corrida de envolvimento em crimes e assassinatos. Nesse caso, ele chegou a ser preso, mas depois de alguns meses foi solto e tem sido visto na guarita construída junto à cancela da Rua Mariluz, na Chácara São João, em Carapicuíba.
A "Cerca de Miseráveis", parida à noite, se estende com volúpia por bairros da região metropolitana paulista, quer cercar tudo e lembra a cena narrada no livro "Bom dia para os defuntos", ou "Redoble Por Rancas", do escritor peruano Manuel Scorza, falecido em 1983, que retrata a luta dos camponeses e índios para a criação do primeiro sindicato rural e contra a companhia de mineração norte-americana Cerra de Pasco Corporation, no Peru:
"Uma cerca, a lagarta de arame, parida pela noite, em uma das paredes do cemitério do vilarejo de Yanacancha, vizinho de Rancas, se detém, medita, se divide, rasteja, pernoita; não acaba, quer cercar o mundo; não parece coisa de gente, teria vida própria. Às seis da tarde tinha uma idade de cinco quilômetros..."
Afinal, as atuais quadrilhas "legais" e ilegais que atuam em Osasco e na região metropolitana paulista são parceiras da espoliação capitalista que explora e avilta mulheres, homens e são iguais à "cerca" a que Manuel Scorza se refere no livro, num tempo em que a simples idéia de criar um sindicato de trabalhadores era punida com a morte:
O coronel Migdonio se dignou a sair à varanda.
"Então, vocês querem criar um sindicato?"
"Se o patrão permitir", respondeu Félix.
"Quantos estão de acordo?"
"Treze, senhor."
"Vá buscá-los. Quero falar com todos."
Na vastidão da memória, ninguém se lembrava de que peão algum tivesse penetrado na casa grande. Cobertos por seus ponchos, os camponeses sentiam que se excediam, mas não tiveram remédio senão entrar.
"Que desejam, meus filhos?", perguntou Don Migdonio afavelmente.
Silêncio.
"Não se constranjam. Não me oponho ao sindicato. Não, não me oponho. Pelo contrário, eu os felicito. Vivemos uma época de mudanças. Todos queremos o progresso. Brindemos ao sindicato!"
A um sinal do fazendeiro, um criado entrou na sala com uma garrafa e copos para todos.
"Vou brindar com o copo vazio. É que ontem me excedi. Saúde, rapazes!", bradou jovialmente Dom Migdonio.
Jaramillo foi o primeiro a desabar. Tombaram outros três fulminados e os demais revolveram-se na agonia de um retorcimento de tripas.
"Filho da puta", conseguiu dizer Félix antes de borrar-se com as tripas queimadas pelo veneno.
O juiz, doutor Francisco Montenegro, e o sargento Cabrera chegaram às seis horas da tarde escoltados por um piquete de guardas-civis.
Fecharam-se no escritório com Don Migdonio. O que o juiz, o fazendeiro e o sargento discutiram permanece até hoje em mistério.
Para desmentir testemunhas que naquele distante ano de 1903 juraram ter visto os três saírem abraçados, rindo, os historiadores oficiais exibem uma prova irrefutável: um comunicado oficial das autoridades, informando que os catorze camponeses tinham sido fulminados por um "enfarte coletivo".
(Trecho do livro "Bom dia para os Defuntos", de Manuel Scorza).
Com um a mais do número 13, que consagrou o Partido dos Trabalhadores (PT) na luta pela redemocratização do Brasil, os 14 camponeses assassinados no Peru tombaram com honra, vermelha. Enquanto isso, em Osasco, e em vários outros municípios paulistas com administrações ditas populares e democráticas, prevalece a desonra das lutas heróicas do passado, se renega a democratização do poder municipal na defesa dos interesses de certos grupos econômicos locais: os miseráveis, no sentido infame do termo, que continuam enriquecendo à custa da exploração do trabalhador brasileiro.
Otto Filgueiras é jornalista.
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