A razão última da transposição
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- Roberto Malvezzi
- 16/07/2007
Ainda na década de 80, um grupo de jovens empresários e políticos chegou ao poder no Ceará, capitaneado por Ciro Gomes e Tasso Jereissati. Eles tinham derrubado velhas e atrasadas oligarquias cearenses incrustadas no poder.
Ao chegarem ao poder concebem, ao seu modo, um modelo de desenvolvimento moderno, projetando a indústria do turismo para as belas praias cearenses e um pólo econômico que inserisse o Ceará na economia globalizada. O projeto econômico por eles concebido baseava-se na posição geopolítica do Ceará, muito mais próximo dos Estados Unidos e da Europa. Nessa lógica, os produtos por ali exportados chegariam mais baratos ao mercado consumidor do chamado primeiro mundo.
Para tal era preciso ter um porto no Ceará de grande porte. Foi feito o porto de Peçém. Para drenar os produtos de exportação era necessária uma malha ferroviária que trouxesse grãos, frutas e demais produtos até o porto. Foi pensada a ferrovia Transnordestina. No porto foi pensado um complexo industrial com uma siderúrgica, numa costura com empresas nacionais e transnacionais do aço. Para funcionar a siderúrgica era necessário trazer o gás, em debate esses dias com a Petrobrás por causa do preço. Finalmente, para movimentar todo esse projeto – indústria, irrigação, siderurgia, depois surgiu o camarão – era preciso água. O Ceará então fez a integração de várias de suas bacias e construiu o Castanhão para receber as águas do São Francisco. Projetou a firme decisão de realizar a transposição, já que temem a falta de água para consumo humano caso todo esse uso econômico seja efetivado. A água era a peça que faltava. Portanto, sem a transposição, o quebra cabeça econômico não se fecha.
Para implementar esse projeto o grupo desenhou a conquista do poder político. Era necessário manter o poder no Ceará. Então, no melhor estilo dos antigos coronéis, o grupo se dividiu pelos vários partidos políticos – a exemplo dos Coelhos em Petrolina - de forma que sempre é alguém do grupo que controla o partido, portanto, sempre alguém do grupo chega ao poder. Um velho coronel do sertão nordestino definiu assim essa tática: “ou dá na cabeça, ou na cabeça dá”.
Dessa forma, o grupo controla alternadamente o poder no Ceará há vinte anos. Para ter apoio regional, chamou a Paraíba e Rio Grande do Norte para também receberem água da transposição. Mais tarde o Pernambuco será incorporado, ao cobrar sua cota por ser estado doador e atravessado pelos canais.
Mas não bastava o Ceará e a região, era preciso ter base política no governo central. A tática escolhida foi de estarem sempre próximos do governo eleito, ocupando um ministério que fosse o responsável pela obra. Dessa forma o grupo controlou o Ministério da Integração por quase vinte anos. Só agora perdeu, em parte, para a Bahia, mas no sentido de quebrar as resistências baianas ao projeto.
A grande chance de materializar o projeto surgiu na eleição de 2002. Ciro foi candidato à presidência e perdeu para Lula e Serra no primeiro turno, mas foi muito bem votado. Então, no segundo turno, costurou uma aliança política com Lula, isto é, apoio eleitoral em troca do apoio ao projeto econômico do Ceará. Lula, que sempre questionara a transposição, aceitou. Venceu a eleição e nomeou Ciro ministro da Integração. O resultado nós temos diante de nossos olhos.
Não há problema que uma região tenha seu projeto econômico, pelo contrário, é até legítimo. O inaceitável é mistificar o projeto em nome da sede humana, quando seu interesse é abertamente econômico. Para resolver o problema da sede temos soluções muitos melhores, baratas e eficientes, caso do Atlas do Nordeste para o meio urbano e das obras da ASA para o meio rural. Porém, discutir a transposição na ótica do econômico é discutir uma outra lógica, isto é, qual a prioridade do uso da água e quais atividades econômicas são realmente sustentáveis em termos hídricos no Nordeste.
Se a elite cearense - que comanda o projeto - e o governo Lula tivessem aberto o jogo desde o início, talvez o próprio Nordeste teria se beneficiado melhor do debate. Acontece que o porto de Pecém apresenta problemas de calado para receber grandes navios, a Petrobrás foi obrigada a subsidiar o gás por determinação de Lula, há resistências sérias à transposição de águas do São Francisco e o pólo siderúrgico tem sido questionado publicamente como inviável. Portanto, sem uma visão de conjunto e sem um debate claro sobre o objetivo econômico da transposição, estaremos debatendo apenas as fantasias postas pelo governo na mídia, mas não a razão última da transposição.
Roberto Malvezzi, o Gogó, é coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
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