A Comissão da Verdade, o Estado palestino e os ventos da Guerra Fria
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- Francisco Bicudo
- 28/09/2011
A aprovação, pela Câmara dos Deputados do Brasil, de uma Comissão da Verdade abençoada e legitimada até mesmo pelo DEM (o líder do partido, ACM Neto, subiu à tribuna do Parlamento para elogiar a iniciativa), e o anunciado e prometido veto do Império estadunidense ao reconhecimento do Estado palestino pela Organização das Nações Unidas sugerem que, lá, como cá, os ventos conservadores gestados durante o período da Guerra Fria continuam a soprar com relativa significância, impactos e intensidade.
A ditadura que tomou de assalto o poder no Brasil, por meio de um golpe militar-civil concretizado em 1 de abril (o dia da mentira...) de 1964, foi tipicamente um produto da paranóica tese de combate ao comunismo a qualquer custo, disseminada pelos EUA depois do final da II Guerra Mundial. O aparato repressor instalado em nosso país perseguiu, censurou, exilou, torturou, matou, sumiu com os corpos de dezenas de militantes que foram assassinados por resistirem bravamente e por combaterem a tirania.
Após a "transição lenta, gradual e segura" do general Golbery do Couto e Silva, que resultou numa redemocratização pactuada e que procurava ignorar as feridas do passado, o país vislumbrava, com a eleição da presidenta Dilma Rousseff, ter finalmente alcançado a possibilidade de acertar as contas com sua memória histórica (as frustrações e decepções com outros governos democráticos foram imensas, incluindo os oito anos de Lula, que mais fez acomodar e conciliar com os militares do que efetivamente avançar nas buscas dos desaparecidos e na abertura dos arquivos). A presidenta, afinal, foi vítima direta da intolerância dos militares, tendo sido presa e torturada nos porões da ditadura.
O projeto de Comissão da Verdade aprovado pelos deputados e agora encaminhado ao Senado, no entanto, embora seja preciso reconhecer que se trata de um avanço em relação aos governos anteriores, deixa no ar um sentimento híbrido de alívio e de frustração, de que Dilma fez o que Lula não fez, mas que era possível ter feito mais. Não é por acaso que só foi levado à votação em plenário depois de ter recebido o sinal verde das Forças Armadas e após também contemplar emendas e alterações impostas pelos partidos conservadores. Sim, as portas estão agora mais abertas para o esclarecimento dos crimes e violações de direitos humanos cometidos durante a ditadura. Não penso mesmo que fosse tarefa da Comissão estabelecer punições, papel que cabe ao Judiciário. Em entrevista ao meu blog, em janeiro último, a presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, Cecília Coimbra, dizia que "não estamos pedindo punição. Queremos investigação, publicização e responsabilização. O que vão fazer com essas pessoas é problema da Justiça".
Reconheço honestamente que lacunas históricas relevantes deverão ser preenchidas. Mas não deixa de incomodar o fato de, no projeto aprovado pela Câmara, o período das investigações ter sido conscientemente ampliado (1946-1988), abarcando outros momentos históricos, para propositalmente desviar o foco, causar confusões e diluir os efeitos da repressão efetivamente acontecida durante a ditadura. Além disso, o prazo para atuação da Comissão é relativamente curto - apenas dois anos, e dela farão parte apenas sete membros e 14 assessores, muito pouco para dar conta de um desafio bastante complexo -, sem contar o orçamento irrisório destinado ao trabalho. "Ocorre que a Comissão Nacional da Verdade — na configuração em que foi aprovada e caso o Senado mantenha inalterado o texto do projeto — tende a resultar em mero embuste, um simulacro de investigação, tais as limitações que lhe foram impostas", avalia o jornalista Pedro Pomar, em artigo reproduzido pelo blog do também jornalista Rodrigo Vianna.
Como ele mesmo destaca, "será preciso enorme pressão dos movimentos sociais para que ela represente qualquer avanço em relação ao que já se sabe dos crimes cometidos pela Ditadura Militar, e, particularmente, para que obtenha qualquer progresso em matéria de punição dos autores intelectuais e materiais das atrocidades praticadas pelos órgãos de repressão política". Sem mobilização, participação e acompanhamento muito próximo dos trabalhos da Comissão por parte da sociedade, dos militantes das esquerdas e dos grupos defensores dos direitos humanos, pode ser mesmo que o Brasil perca mais uma chance preciosa de permitir às novas gerações que conheçam de fato o que aconteceu em nosso país durante os anos de chumbo. Obviamente que falamos de cenários distintos - porém, mais uma vez, impõe-se a necessidade de organização e acúmulo de forças para enfrentar o conservadorismo dos militares e seus aliados, para que a agenda progressista possa pautar o andamento dos trabalhos da Comissão.
O fantasma da Guerra Fria parece também ter influenciado de forma decisiva o discurso patético e ameaçador feito pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama (cada vez mais o mais republicano dos democratas...), na Assembléia Geral da ONU. A fala de Obama deu a nítida impressão que de que ainda estamos vivendo nos anos 1960/70. Disse ele que "os palestinos merecem um Estado para viver, mas essa paz só poderá acontecer entre israelenses e palestinos quando houver acordo entre eles. E a paz ainda não alcançou seus resultados. Estou convencido que não há atalho para resolver esse conflito que dure muito tempo. Paz é muito difícil de conseguir. E não se consegue simplesmente pedindo para entrar na ONU".
O que o mandatário do Império faz é enrolar, empurrar com a barriga, protelar o que não é mais, sob qualquer ângulo da análise, possível de ser adiado: a criação do Estado palestino nas fronteiras anteriores a 1967, única saída razoável capaz de estabelecer justiça histórica e cumprimento do direito internacional. Enquanto usa sua retórica e insiste nas promessas vazias, a exemplo de antecessores, o Império ignora solenemente a resolução 181 da ONU, que determinou, em 1947, a partilha da Palestina e a criação de dois Estados, um árabe, outro israelense. Pactua ainda com ações imperialistas e colonizadoras patrocinadas pelo governo de Israel nos territórios ocupados, com os palestinos obrigados a viver em guetos, marginalizados nas terras que lhes pertencem, a exemplo do que acontecia com os negros durante o regime de apartheid sul-africano.
Até aqui, e lá se vão mais de seis décadas de conflito, conversas e negociações significaram apenas a manutenção da ordem americana e da vontade de Israel. É essa a paz que Obama pretende estimular? Em artigo (disponível para assinantes do UOL) publicado na última terça-feira, 20 de setembro, na Folha de São Paulo, Ibrahim M. K. Alzeben, embaixador da Palestina no Brasil, lembrou com muita propriedade que "a negociação com Israel, desde a conferência de Madri (1991) até hoje, resultou na quadruplicação do número de assentamentos e colonos em terras palestinas, na criação do muro da vergonha, no assassinato de milhares de líderes e cidadãos, na judaização de Jerusalém, capital ocupada do Estado da Palestina, no bloqueio de Gaza e em milhares de presos políticos".
Durante a Guerra Fria, Israel foi ponta de lança para os interesses estratégicos estadunidenses no Oriente Médio, uma nação aliada numa potencial área de influência da antiga União Soviética comunista. O inimigo mudou (e os EUA sempre precisam dele...), é agora encarnado pela ameaça do "fundamentalismo islâmico", por isso o apoio incondicional ao governo israelense continua. Sem contar que, mesmo com o fim da "Era dos Extremos", como o historiador britânico Eric Hobsbawm chama o período de conflito ideológico entre capitalismo e socialismo, por lá ainda estão a Rússia, sempre a lembrar os tempos remotos da polarização, e a China, adversária de muitos dos interesses dos estadunidenses. E, a depender dos rumos da Primavera Árabe, talvez Israel passe mesmo a representar o parceiro único dos EUA na região.
No mesmo artigo citado acima, o embaixador da Palestina no Brasil destacou também que "o mundo está mudando. É preciso fazer uma leitura correta das primaveras populares. Os povos estão mais conscientes e participativos". Nesse sentido, é bastante inteligente a estratégia palestina de levar a discussão e a exigência de manifestação à ONU. Ainda que os resultados possam não ser práticos ou imediatos, o que se anuncia é uma vitória política importante, que vai escancarar para o mundo e a comunidade internacional o isolamento - e a intransigência - de Estados Unidos e de Israel.
Lá, como cá, é preciso com urgência deixar para trás os ventos carcomidos e ultrapassados da Guerra Fria. Já superamos a primeira década do século XXI. Os tempos são outros. E, como já escrevi, "o passado é uma roupa que não nos serve mais".
Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação Social.
http://oblogdochico.blogspot.com/2011/09/comissao-da-verdade-o-estado-palestino.html
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