Regeneração da 'alma partidária' é necessária
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- Mateus Alves e Valéria Nader
- 02/08/2007
É incontestável o momento de profunda decepção da nação com os seus mandatários e com um processo político que não se mostra capaz de exercer uma autêntica interlocução entre os cidadãos e os poderes constituídos. Talvez pior que a decepção sejam algumas evidências de indiferença e apatia.
Este é o terreno fértil em que costumam germinar movimentos que, contando com a “simpatia” da mídia, exploram oportunisticamente a descrença da população com “slogans” que nada acrescentam à democracia e à defesa da República.
Síndromes persecutórias dos governantes, que nesses movimentos acabam por enxergar propósitos golpistas, acabam por reverberá-los ainda mais, conformando uma briga política que também nada contribui com a nação.
Para qualificar a discussão em um momento em que se corre sério risco de empobrecê-la, o Correio conversou com um autêntico combatente pela democracia, o jurista Fábio Konder Comparato, professor da Escola de Direito da Universidade de São Paulo e diretor da Escola de Governo. Em entrevista exclusiva, Konder manifesta sua preocupação com as sérias ameaças ao futuro do Brasil, debate as suas propostas de “reconstrução” do Estado nacional – algumas delas já em trâmite nas Casas legislativas - e traça as linhas gerais de uma reforma política efetiva para nossa nação.
O professor ainda comenta o movimento “Cansei”, sendo atualmente promovido por empresários paulistanos e pela OAB/SP: segundo Comparato, trata-se de uma “iniciativa infeliz”.
Leia abaixo a entrevista.
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Correio da Cidadania: Qual seriam os eixos de uma reforma política efetiva para o Brasil?
Fábio Konder Comparato: Em relação à reforma política, há três eixos principais. Primeiro, a ampliação e o aprofundamento dos mecanismos de democracia direta e participativa. Segundo, a reforma do sistema eleitoral para que o Congresso nacional seja efetivamente representativo do povo brasileiro, fazendo com que os eleitos respondam perante os eleitores pelo cumprimento de seus mandatos.
O terceiro eixo é a reestruturação do Estado brasileiro para que ele possa cumprir o mandamento constitucional de garantir o desenvolvimento nacional, como posto no artigo 3º, inciso 2º da Constituição Federal.
CC: Quais seriam os instrumentos primordiais para o aprofundamento da democracia participativa?
FKC: Há três deles, declarados no artigo 14 da Constituição: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. A iniciativa popular hoje existente é apenas legislativa, não a de emendas constitucionais; por isso, entre as propostas que estão sendo discutidas pelo conselho federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), está a sua ampliação também em relação às emendas constitucionais.
Nós pensamos também na legalização dos orçamentos participativos, que até agora se realizam à margem da lei. Outro ponto é a multiplicação das ouvidorias populares, não-vinculadas ao Poder Executivo.
Outra proposta é a multiplicação de ações populares, ou seja, ações judiciais que o cidadão, em nome próprio, pode propor para defender interesses comuns do povo. Nesse sentido, já existe um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, oriundo da OAB, que cria a ação popular em matéria de improbidade administrativa. Iremos discutir isso na próxima comissão de defesa da República e da democracia do conselho federal da OAB, partindo de uma proposta minha para a criação de uma ação popular criminal contra agentes públicos que hajam cometido delitos nessa qualidade.
CC: O senhor acredita que o Estado brasileiro não é eficaz o suficiente contra a improbidade?
FKC: O que acontece é que, hoje, só o Ministério Público ou o órgão público lesado podem propor uma ação de improbidade administrativa. Isto deixa de lado um bom número de casos em que, a nosso ver, cabe a denúncia.
Além disso, a ação popular tem um efeito pedagógico muito importante: o povo toma consciência que ele é soberano. A criação de ações populares faz com que o povo passe a acompanhar mais de perto a ação dos servidores do povo, que são todos aqueles, eleitos ou não, que exercem funções públicas.
CC: O que poderia ser feito em prol da legalização dos orçamentos participativos?
FKC: O que se pode fazer, e isto mesmo sem mudança constitucional, é as cidades, os municípios, os estados e a União federal, por lei, exigirem que, no processo de orçamento, haja uma consulta popular obrigatória. Ou seja, a decisão final é do Legislativo, mas o Poder não pode tomar essa decisão sem consultar o povo.
Quanto ao desbloqueio do plebiscito, do referendo e do reforço da iniciativa popular legislativa há também um projeto de lei oriundo da OAB, o PL 7418/2004, que até hoje não foi apreciado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.
CC: O senhor acredita que o Senado irá aprovar os projetos relacionados ao referendo revogatório de mandatos de governantes, também conhecido como o recall?
FKC: A proposta que está em tramitação no Senado é uma proposta de Emenda Constitucional datada de 2005 e oferecida aos senadores Pedro Simon e Eduardo Suplicy pela OAB. Não tenho nenhuma certeza de que possa ser aprovada; estou é convencido de que todas essas iniciativas vão acabar sendo derrubadas no Congresso nacional, pois elas significam uma redução do poder dos parlamentares - e ninguém no mundo político abre mão de poder sem muita pressão.
É por isso que entendo que é a hora de se organizar um movimento amplo de reforma constitucional por meio de instituições que tenham prestígio e grande capilaridade nacional, como a OAB e a CNBB.
CC: Qual a sua opinião sobre o movimento “Cansei”, realizado pela OAB/SP e por empresários paulistanos?
FKC: Isso não tem nada a ver com a defesa da República e da democracia. Foi uma iniciativa muito infeliz da OAB/SP.
CC: O “Cansei”, apesar de ser considerado “apolítico”, tem como organizadores empresários ligados ao PSDB e um tom permanente de “Fora Lula”. Seria um indício golpista, como tem sido clamado por setores governistas, ou estão estes imaginando um irreal clima conspiratório?
FKC: Há aí uma briga de dentro do meio político, que não tem nenhum interesse para o povo e para o futuro da nação brasileira. O governo Lula está cheio de pecados, mas não é por isso que devemos ceder às pressões tucanas.
O importante é construir o futuro do país, e o Brasil tem cada vez mais o seu futuro ameaçado.
CC: Além das entidades já mencionadas, quais seriam os principais atores que precisariam se envolver nessa construção do futuro brasileiro?
FKC: Para algumas propostas, como a criação do Poder de Planejamento independente do Poder Executivo, com participação da sociedade civil, eu tenho fundada esperança de obter o apoio do meio industrial brasileiro, que foi o mais prejudicado pela hegemonia do capital financeiro.
Nesse sentido, venho mantendo conversa com organismos representativos da indústria. No Paraná, a federação das indústrias do estado tem uma posição muito lúcida, por meio de seu presidente, Rodrigo Rocha Loures, a quem rendo minhas homenagens.
CC: Há alguma indicação de apoio por parte da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo)?
FKC: Estamos tentando, agora, manter um contato mais assíduo, sobretudo com o setor de pequenas e médias indústrias.
CC: Qual a sua opinião sobre a mobilização social no Brasil, de uma maneira geral? Estamos vendo em 2007 uma ruptura com a inércia dos anos anteriores?
FKC: Não tenho essa opinião. Entendo que estamos, agora, descobrindo o caráter profundamente oligárquico dos partidos políticos e dos sindicatos. Precisamos encontrar uma outra expressão de defesa dos direitos populares.
CC: Qual expressão seria essa?
FKC: De um modo geral, seria a reformulação – ou melhor, a regeneração – da alma partidária, para que o partido servisse de agente de liderança, esclarecimento e de formação do povo organizado, a fim de que ele possa exercer efetivamente, e não apenas de modo retórico, o poder soberano no Estado brasileiro.
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