O velho e o novo latifúndio
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- Osvaldo Russo
- 03/05/2012
O Brasil é um país de origem colonial-escravista e que adotou desde o início do seu descobrimento o regime das capitanias hereditárias como forma de apropriação do seu território. A Lei Áurea foi assinada e a República proclamada, mas a terra não foi distribuída aos escravos. Hoje, o Brasil possui elevada concentração fundiária em todas as regiões do país e, apesar dos recentes avanços nas políticas sociais, principalmente do aumento real do salário mínimo e da transferência de renda aos mais pobres, ainda há imensos bolsões de extrema pobreza no campo e nas cidades (16 milhões de pessoas, das quais quase a metade residindo na zona rural). Tem razão o presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), Márcio Pochmann, quando afirma que as reformas agrária e tributária são necessárias para garantir sustentabilidade ao Plano Brasil Sem Miséria.
O Censo Agropecuário 2006 revela que as pequenas propriedades (com menos de 10 hectares) ocupam apenas 2,7% da área ocupada por estabelecimentos rurais. Já as grandes propriedades (com mais de mil hectares) ocupam 43% da área total. Mas, em quantidade, as pequenas propriedades representam 47% do total de estabelecimentos rurais no país, enquanto os latifúndios correspondem a apenas 0,9% desse total. A soja, produto símbolo do agronegócio, foi a cultura que mais se expandiu no país na última década. No período entre 1995, quando foi realizado o levantamento anterior, e o censo de 2006, a soja apresentou um aumento de 88,8% na produção.
Entre 1995 e 2006, houve muita luta social no campo, mas mesmo assim aumentou a concentração. A concentração escandalosa de terras no Brasil é o retrato da nossa herança colonial e escravista. Em 1995, deu-se o Massacre de Corumbiara (RO). Em 1996, ano do Massacre de Eldorado dos Carajás (PA). Em 1997, deu-se a Marcha dos 100 Mil (Marcha do MST) que ganhou grande destaque nacional e internacional. A mobilização social foi intensa a partir de 1993, quando foram promulgadas a Lei Agrária e a Lei do Rito Sumário, que regulamentaram o capítulo da reforma agrária da Constituição de 1988. Entre 1995 e 2002, no entanto, apesar dos assentamentos realizados, foi grande a criminalização dos movimentos sociais, em especial do MST.
Ficou provado que a pequena propriedade emprega e produz muito mais que o latifúndio. O Censo Agropecuário de 2006 confirma aquilo que pesquisadores e ativistas vêm dizendo: apesar de representar pouco mais de 30% do total das áreas, os pequenos estabelecimentos respondem por mais de 84% das pessoas empregadas. Os dados também mostram que esses trabalhadores fazem parte da agricultura familiar, cujos 12,8 milhões de produtores representam 77% do total de pessoas ocupadas. As informações do IBGE revelam ainda que a agricultura familiar é mais eficiente na utilização de suas terras, gerando um valor de produção de R$ 677 por hectare, enquanto que a não familiar gera um valor de R$ 358 por hectare.
Esses dados podem contribuir para que governo e sociedade mobilizem e acelerem as mudanças necessárias nas políticas para o campo, dando maior ênfase à reforma agrária e à agricultura familiar e camponesa. Isso deve ser expresso em maiores recursos orçamentários e financeiros para o setor e na adoção de novos índices de produtividade para a reforma agrária, já que os atuais estão defasados 37 anos.
Os serviços públicos de extensão rural e assistência técnica foram desestruturados especialmente na década de 1990. A extinta Embrater estava aglutinando, como em geral e historicamente as empresas públicas e estatais, uma cultura de política pública de Estado voltada para os interesses nacionais e da maioria do povo brasileiro. O sucateamento da assistência técnica e da extensão rural fez parte da política neoliberal de liquidação do Estado promovida nos governos Collor e FHC. Além disso, a desestruturação da assistência aos pequenos agricultores favoreceu ao agronegócio.
A expansão da monocultura da soja (63,9% em área), da pecuária extensiva e do agronegócio, ao lado da ação criminosa de grileiros e madeireiros na Amazônia e no Centro-Oeste, é responsável pelo crescimento do desmatamento e pela concentração de terras na região. O cultivo da cana-de-açúcar ganhou escala preocupante em São Paulo e em outros estados, o que pode vir a competir com a produção de alimentos internamente se não houver uma regulação, sem o que haverá danos para a nossa soberania alimentar.
De um lado, o modelo agrícola hegemonizado pelo agronegócio, com uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, é responsável pelo envenenamento da agricultura brasileira. De outro, a ausência de educação ambiental, desde as escolas até a mídia, cria um vazio na conscientização da sociedade, onde o lucro e a ganância prevalecem em detrimento das necessidades de uma alimentação saudável da população brasileira.
O quadro de concentração fundiária é endêmico na história brasileira. O censo do IBGE mostra que em 2.600 municípios a concentração diminuiu, mas nem por isso ela deixou de ser elevada e de crescer nacionalmente. Os dados revelam a concentração tanto na década de 1990 quanto nesta metade dos anos 2000, ainda que um milhão de famílias tenham sido assentadas no Brasil desde a criação do Incra em 1970 (mais de 60% de 2003 para cá), e de o Pronaf ter crescido quase 8 vezes (de pouco mais de R$ 2 bilhões, na safra 2002-2003, para R$ 16 bilhões previstos para a safra 2011/2012).
A aprovação do novo projeto de Código Florestal pela Câmara dos Deputados – não só ambientalistas e trabalhadores rurais, mas a sociedade brasileira espera que a presidenta Dilma use o seu poder constitucional de veto - mostra a conexão entre o velho e o novo latifúndio predador. É preocupante a articulação de interesses entre o agronegócio, as grandes empresas multinacionais de insumos e alimentos e os bancos, o que anula qualquer esforço de distribuição da terra e de apoio à agricultura sustentável no Brasil.
Osvaldo Russo é ex-presidente do Incra e diretor de Estudos e Políticas Sociais da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).