Sinais de fumaça no ar do Brasil!
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- Maria Orlanda Pinassi
- 28/04/2015
Na era atual, sob o capitalismo monopolista, já se aprendeu ‘o que era útil sobre o fascismo’, os riscos que se devem evitar e como operar uma fascistização silenciosa e dissimulada, mas altamente ‘racional’ e ‘eficaz’, além de compatibilizável com a democracia forte.
Notas sobre o fascismo na América Latina. Florestan Fernandes.
No último mês de março assistimos a duas manifestações correlatas – uma no dia 13, outra no dia 15 -, revitalizando a suposta polarização da campanha eleitoral de 2014. De um lado, sindicatos e movimentos sociais umbilicalmente ligados ao PT saíram às ruas com uma missão no mínimo contraditória: defender Dilma (dos rumores de impeachment), a Petrobrás (dos rumores de privatização), a reforma política (no combate à corrupção, com um congresso quase todo ele implicado em alguma negociata, além do caráter francamente reacionário de seus deputados e senadores). E ainda protestar contra os golpes que esse mesmo governo que defende despeja sobre a classe trabalhadora a título de um “necessário ajuste fiscal”. O destaque foi dado às MP’s 664/665, que redefinem, em detrimento dos trabalhadores, as regras do seguro-desemprego e ao FIES, cujo acesso, dificultado pelo MEC, testou a paciência e a credulidade de milhares de jovens de baixa renda que, nos anos anteriores, foram aliciados, mediante sistema de crédito, ao ingresso no ensino superior privado.
De outro lado, uma manifestação chamada pela direita jovem-oportunista dos “Vem pra rua”, Movimento Brasil Livre (MBL), entre outros, e por uma minoritária, mas ruidosa, extrema-direita (5% dos manifestantes do dia 15). De verde/amarelo, juntos e misturados a muitos outros simplesmente insatisfeitos com as medidas econômicas, e desiludidos com a crise política instaurada pelas denúncias do Mensalão e da Operação Lava Jato, gritavam palavras de ordem contra a corrupção. Mais ou menos conscientes, mais ou menos raivosos, racistas, homofóbicos, machistas, o perfil levantado dos participantes mostra que compõem, em sua maioria, a flexível classe média brasileira, a mesma que, ironicamente, o PT se ufanou de inflar nos primeiros 13 anos de governança.
Falsa polarização
Desde junho de 2013, a base aliada do governo federal apela para a formação de uma frente de “esquerda” como forma de conter as ameaças de golpe. Forja no medo e nos “riscos” de isolamento político uma polarização ideológica. Isso aconteceu quando a direita tomou as ruas de assalto para despolitizar a luta pela catraca livre. Surgia ali o bordão da anticorrupção que fez despencar os índices de popularidade até então confortáveis que Dilma herdou de Lula. Naquele momento, a presidente mostrou sua incultura política ao fazer tábula rasa das reivindicações populares, para contemplar justamente os anti-petistas com a promessa de um dispositivo moral: a reforma política.
Há muito tempo, porém, a “polarização” se realiza numa falsa alternativa – ou PT ou PSDB -, para o que afirmo ser um mesmo partido neoliberal com duas alas de direita. Pois ambos puseram em marcha um padrão de desenvolvimento nefasto do ponto de vista social e ambiental. Pelos serviços prestados ao capital, disputam as polpudas propinas das empreiteiras escolhidas para realizar as obras faraônicas do PAC, dos megaeventos esportivos, da especulação imobiliária etc. O PT está em seu 4º mandato porque foi bem mais eficiente com sua política de consenso (o lulismo), que conseguiu assegurar lucros astronômicos para as burguesias internas e externas e, numa obra de engenharia política exitosa, domesticou sindicatos e movimentos sociais outrora combativos.
A aparente novidade dos fatos é que a direita saiu da caserna para criar, com a ajuda da mídia, um clima de fascistização similar ao que se assistiu durante o regime civil-militar. Sem pretender minimizar os riscos que de fato corremos com toda essa movimentação sinistra, lembro que o processo pode ser a cereja de um bolo que se assa já há algum tempo. Por exemplo, para as populações pobres de maioria negra das periferias das cidades brasileiras, que sofrem cotidianamente forte criminalização seguida de pesada militarização de seus territórios, essa novidade já é sua velha conhecida.
Militarização, reforma agrária, trabalho escravo, questão indígena
Pelo andar da carruagem, imagina-se que o agravamento social dado pelo aumento da inflação e pelo crescimento das taxas de desemprego resultantes do endurecimento da nova gestão, intensifique ainda mais a necessidade de ativos militarizados pelo país. Uma movimentação vem se verificando no Planalto neste sentido, pois, até o final do ano, Dilma deve enviar ao Congresso uma proposta de emenda à Constituição (PEC) para que a União divida com os estados a responsabilidade pelas políticas de segurança, que atualmente é uma atribuição dos estados da nação (1).
Nada disso, no entanto, é capaz de evitar, se é que não agrava ainda mais o quadro apresentado pela Anistia Internacional: o Brasil mata 82 jovens por dia. “Eles foram vítimas de 30 mil assassinatos em 2012; do total de mortes, 77% eram negros, o que denuncia um genocídio silenciado de jovens negros”. Além disso, entre os anos de 2004 e 2007, “matou-se mais no Brasil do que nas doze maiores zonas de guerra do mundo (...) quando192 mil brasileiros foram mortos, contra 170 mil espalhados em países como Iraque, Sudão e Afeganistão”.
Importante registro dos fatos é que, com vistas a um assento no Conselho de Segurança da ONU, o governo Lula, assim como outros governos “progressistas” da América Latina, incentiva uma ofensiva no Haiti - a Minustah, uma intervenção repressiva denominada de “ajuda humanitária” pelo governo petista, fortemente rejeitada pela população local.
A democracia brasileira dos últimos anos pode ser questionada ainda pelo silêncio prolongado em relação à reforma agrária, bem como à onda de violência no campo. De acordo com informações do Centro de Documentação da CPT, Dom Tomás Balduíno, em 2014 já foram registrados 23 assassinatos em conflitos no campo, sendo que mais 3 estão sob averiguação.
Do mesmo modo, exemplificamos o aumento das denúncias de trabalho escravo pelo país afora. Para se ter uma ideia, o interior de São Paulo, estado mais moderno do país, registra um crescimento de 76% das ocorrências no ano de 2014. E ainda, o que dizer das condições subumanas a que são submetidos milhares de indígenas das mais diferentes etnias em todo o Brasil? Quando não morrem à míngua em reservas favelizadas ou nos barracos armados nas beiras de estradas, são assassinados por jagunços do agronegócio interessado em suas terras. Nestes casos todos, o governo atual, ao nomear Katia Abreu, sua ministra da agricultura, um nome que, nos quesitos truculência, trabalho escravo e devastação ambiental, dispensa maiores apresentações, se coloca como agente imediato do flagelo que atinge as populações pobres e vulneráveis do campo.
Esgotamento do atual padrão de desenvolvimento e a onda de contestação
Não, a polarização não aconteceu entre os dias 13 e 15 março. Ela é bem outra e remete ao esgotamento do padrão de desenvolvimento aplicado nos últimos 13 anos e cuja característica mais importante a ser ressaltada foi a competência de legislar contra a classe trabalhadora e obter, pela oferta de políticas compensatórias, sua adesão. Tudo indica que esse modelo está com os dias contados.
Prova disso é o fortalecimento de um país que não frequenta a mídia - quando frequenta é sob pesada censura – e que vem recompondo uma onda rebelde com aporte na luta de classes. Esse país também se revela nas ruas, mas, mais do que isso, ele se apresenta nas periferias, nos canteiros de obras, pátios de fábricas, garagens de ônibus, nas rodovias, por uma massa crescente de atingidos pelas políticas de desenvolvimento promovidas pelo aliancismo petista. Essa massa se empenha em lutas populares e contingentes, sem protagonismos, em lutas que se abrem para o enfrentamento direto em função de carências sociais crescentes e limites das mediações burocratizadas da democracia burguesa.
Neste quadro, predomina o papel desempenhado pela atual explosão de greves deflagradas – das 446 greves, em 2010, saltou-se para mais de 900, em 2013, e ainda para 1900, em 2014. Em alguns casos, as greves acontecem à revelia dos seus sindicatos pelegos - por trabalhadores dos setores públicos e privados, muitos dos quais terceirizados, precarizados. Ressalto o movimento articulado por garis e professores da rede pública do Rio de Janeiro, Paraná, São Paulo, pelos metroviários paulistas (neste caso, organizados por um sindicato combativo), por motoristas e cobradores em várias cidades brasileiras, pelos milhares de trabalhadores que frequentemente paralisam obras da magnitude das hidrelétricas de Belo Monte (PA) e de Jirau (RO), do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro - COMPERJ, dos megaeventos esportivos e culturais.
Revela-se o Movimento Passe Livre em luta pelo “transporte gratuito de verdade” e pela mobilidade urbana. Somente nestes primeiros dias de 2015 conseguiu realizar manifestações massivas pelo Brasil, com destaque para São Paulo, com a presença de mais de 10 mil pessoas. Ressalto o papel dos movimentos de luta por moradia e ocupação contra as violentas remoções e os enormes gastos públicos para atender aos interesses das empresas privadas envolvidas com o PAC, a COPA da FIFA, as Olimpíadas e com a especulação imobiliária, dentre os quais ganham relevo no último período o Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST) e a Articulação Nacional dos Comitês Populares da COPA (ANCOP). Ressalto também os movimentos de denúncia da violência policial sobre as populações pobres das periferias, com destaque para as Mães de Maio, o Tribunal Popular – o Estado no Banco dos Réus, o Movimento Periferia Viva. Obviamente que as lutas do movimento estudantil fazem a diferença no combate à privatização velada que corrói a autonomia da universidade pública brasileira.
Massas mais politizadas, Estado mais militarizado
Localizados por vezes fora das vistas e do controle do Estado, esses movimentos, mais ou menos conscientemente, desencadeiam um efetivo processo de politização das massas, o que há tempos as formas tradicionais, institucionalizadas, ao adotarem a linha de menor resistência, abandonaram. Em alguns casos, atuam sem as mediações controladas pelo capital, e costumam remeter-se diretamente aos motes causais (econômicos) de seus infortúnios: salários, condições de trabalho, dos serviços de transporte, saúde, educação, moradia e terra são alguns dos seus alvos. Caso emblemático dessa ofensiva é o da luta dos indígenas pela autodemarcação de terras (2).
A crise da água e da energia atinge, sobretudo, a população de baixa renda das cidades médias e grandes da região sudeste, constituindo uma questão de enorme gravidade, provocando manifestações vigorosas contra o racionamento, o fornecimento de água de qualidade duvidosa e os tarifaços praticados pelos órgãos incompetentes. A Revolta de Itu, cidade do interior do Estado de São Paulo, surge exatamente desse processo.
Se não se comportam como movimentos anticapitalistas, seu maior trunfo é que, dessa maneira, pouco ortodoxa, desnudam os limites cada vez mais estreitos do capital que, na atualidade problemática do governo Dilma, não pode, nem pretende atender às reivindicações populares mais elementares.
Por isso, mesmo esses movimentos tendem a se radicalizar e ser alvos de repressão policial ostensiva, de criminalização permanente, e seus manifestantes submetidos a condenações sumárias. Só pela violência a democracia vem tentando controlar as lutas. E para isso uma ditadura nos moldes de 64 não tem se mostrado assim tão necessária, pois, para grande parte da população brasileira, sobretudo se ela for pobre, negra, trabalhadora, inconformada, a violência do Estado, seja ele petista, peessedebista, não é ameaça, é uma realidade.
Sim, Florestan, na epígrafe que abre essa análise, tinha absoluta razão.
Notas :
(2) Ver sobre a luta dos Mundurukus por suas terras ameaçadas pela construção da hidrelétrica de São Luiz na região Norte do país. http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/A-luta-dos-Mundurukus-contra-a-invisibilidade-/
Maria Orlanda Pinassi é professora do departamento Sociologia FCL/UNESP Araraquara. Membro suplente da ADUNESP Central.