Correio da Cidadania

Aliança maldita deu no que deu

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O povo brasileiro está pagando caro, agora, o preço de uma aventura política e eleitoral iniciada em 2002 quando a principal liderança do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, conduziu o partido a uma aliança com as forças tradicionais do empresariado e do conservadorismo nacional. Desde então, o que se viu foi o ataque paulatino às esquerdas, dentro e fora do PT, a completa domesticação dos sindicatos e movimentos sociais mais combativos na área de influência petista, a despolitização da luta de classes e uma escalada ainda incompleta de concessões ao capital, à direita e aos postulados do neoliberalismo.

 

Anteriormente, os governos de Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso já haviam bombardeado as atribuições do Estado, desmantelado a Constituição de 1988, retirado direitos dos trabalhadores e escancarado o país aos interesses mais mesquinhos e predadores dos capitais nacional e internacional. Vivemos o pior dos horrores de 1990 a 2002, com a liquidação do patrimônio público nos leilões das privatizações, com a “flexibilização” das leis trabalhistas e a entrega das atividades essenciais, entre as quais saúde e educação, ao jogo dos mercados.

 

Mas, até então, amplos setores populares e a maioria das organizações sociais e de esquerda formavam as mais diferentes trincheiras da oposição. Os campos de delimitação entre esquerda e direita, progressistas e conservadores, defensores da soberania nacional e entreguistas, defensores do Estado prestador de serviços públicos e privatistas, ambientalistas e predadores dos recursos naturais, defensores dos direitos humanos e apoiadores da truculência punitiva contra os mais pobres e excluídos, estavam bem mais claros e definidos, sem a confusão de uma geleia geral.

 

No entanto, a guinada iniciada pelo PT em 2002, com vistas exclusivamente às eleições e ao seu projeto particular de poder, contribuiu decisivamente para que, nos últimos 13 anos, não só boa parte do PT aderisse ao ideário do pensamento dominante, como também – ao não fazer o devido combate político pela esquerda – possibilitou que os setores carcomidos da direita, cautelosos desde o fim do regime militar, voltassem a ganhar desenvoltura e nova energia no seio das classes médias e dos assalariados em geral.

 

Erros e desvios

 

Qualquer análise honesta da conjuntura atual precisa obrigatoriamente considerar os graves erros e desvios políticos cometidos pela cúpula dirigente do PT, que, ao longo de anos, foi responsável pela metamorfose vivida pelo partido, a começar pelos abraços dados nos antigos inimigos dos trabalhadores, o abandono das bandeiras e das lutas socializantes, até assumir sem escrúpulo ou vergonha o papel de gestores da burguesia e operadores do aparelho de repressão do sistema. Ou alguém ainda tem dúvida de que o PT não seja um partido da ordem capitalista?

 

Durante algum tempo – já no controle do governo federal –, os discursos e as práticas a favor do modelo político-econômico foram dourados com benesses sociais na direção de atendimento das parcelas mais miseráveis da população, na recuperação do salário mínimo, na redução da secular e gritante desigualdade. Tais programas evidentemente foram bem recebidos e conquistaram levas de agradecidos e apoiadores, enfim, uma base social a reconhecer os méritos da situação diante do descaso explícito dos governos anteriores.

 

A economia chinesa ajudou, as relações sul-sul contribuíram e o consumo mantido artificialmente criou a sensação generalizada de que o Brasil era uma ilha de prosperidade num mundo destroçado pela crise do próprio sistema neoliberal. Vivemos entre 2008 e 2013, nos governos do PT, a grande ilusão do paraíso terrestre em que toda a sociedade e todos os brasileiros estavam ganhando: os pobres ganharam o Bolsa-Família, o Prouni, o FIES, o novo cálculo do salário mínimo baseado em PIB crescente; e os ricos ganharam nos impostos desonerados, nas obras e serviços superfaturados, nos empréstimos com juros subsidiados, no superávit primário garantido, na especulação imobiliária e na brutal transferência de renda possibilitada pelo juro elevado e o crédito incentivado.

 

No final das contas, a tal política lulista, segundo a qual todos ganham, na verdade, dava aos pobres menos do que a décima parte do que era dado aos ricos. Por isso mesmo foram os ricos que quebraram o Estado brasileiro, que sugaram até o último tostão as reservas do BNDES, os repasses do Tesouro e os fundos que deveriam ter destinação exclusivamente social – entre eles o FAT e FGTS -, mas que foram destinados para tentar segurar a debandada do empresariado no momento em que a sangria dos recursos públicos chegou ao esgotamento. O colapso já estava evidente no início de 2014, mas em ano eleitoral o governo e a direção do PT optaram sem pestanejar pelo estelionato e deixaram a verdade sobre a crise para depois das eleições.

 

Discurso e prática

 

Entre o Dilma-1 e o Dilma-2, ficou evidenciado que o discurso dourado do PT para enganar os trabalhadores e os pobres estava sendo desmascarado pela prática – mais precisamente, pelas medidas do chamado “Ajuste Fiscal”, que nada mais fez do que cortar investimentos e programas da área social e vitaminar o superávit primário, com a elevação dos juros, que é o mecanismo que permite rápida transferência de renda da maioria da população e dos recursos públicos para os que especulam com o dinheiro, em especial o setor financeiro e os rentistas detentores dos títulos do Tesouro Nacional.

 

Enquanto cortava verbas do FIES, restringia o Prouni com novas regras para o Enem e reduzia a 1/3 (um terço) os recursos do Pronatec, o governo anunciava novas linhas de crédito aos empresários pelo BNDES, Banco do Brasil e Caixa Federal. Enquanto deixava as universidades federais sem recursos nem mesmo para o pagamento dos serviços de limpeza, o governo anunciava pacote de privatização de portos, aeroportos, rodovias e ferrovias, com financiamento público. Enquanto negociava ajuda para os grupos empresariais envolvidos no esquema de corrupção da Petrobras, o governo editava medidas provisórias para cortar seguro-desemprego, auxílio-doença e pensão por morte.

 

Ao mesmo tempo em que trataram de alimentar sua aliança econômica com os banqueiros e os empresários, com inúmeros danos para os trabalhadores (perda de direitos trabalhistas, rebaixamento da massa salarial, informalidade e precarização no trabalho e, agora, aumento do desemprego), os governos do PT também priorizaram as suas alianças políticas com os partidos tradicionais, a começar do PMDB, mais PR, PRB, PP, PTB e outras siglas menores.

 

Por isso mesmo não se pode dizer que tenha ocorrido alguma contradição entre a vitória de Dilma, em 2014, e o aumento das forças conservadoras no Congresso Nacional – dominado pelo reacionarismo evangélico, pelos ruralistas e pelas bancadas da truculência punitiva e policial contra qualquer avanço no campo dos direitos humanos, da cultura e do comportamento.

 

A direção do Partido dos Trabalhadores, pelas opções que fez, pelo caminho que escolheu e pela aliança maldita com os donos do capital, é sim a grande responsável pela difícil conjuntura do país, com grave crise econômica e política e com acelerado agravamento da situação social. Só mesmo a mobilização e a articulação das organizações sociais combativas, dos setores populares e assalariados, dos sindicatos e partidos de esquerda, possibilitará a constituição de uma frente capaz de retomar o processo por uma sociedade justa, igualitária, livre e soberana.

 

O Brasil precisa de projetos coletivos, inclusivos e voltados para a maioria do povo. Precisa de reformas estruturais, e não de meros paliativos que alimentam as ilusões efêmeras.

 

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Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.

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