‘O caso Rafael Braga revela de forma patente a seletividade do sistema penal’
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- Gabriel Brito e Paulo Silva Junior, da Redação
- 12/07/2015
Um dos casos mais emblemáticos dentre todas as prisões políticas presenciadas pela sociedade brasileira a partir das manifestações de junho de 2013 é o de Rafael Braga, preso no Rio de Janeiro por portar um frasco de pinho sol enquanto vagava pelas ruas da cidade em um dos dias de manifestação popular. Talvez o único preso sem vinculo político com os protestos, Rafael recebeu a maior condenação, 5 anos de reclusão. Agora que seu caso chegou ao STF, entrevistamos João Henrique Tristão, advogado da ONG Defensores dos Direitos Humanos, que defende Rafael.
“Malgrado à atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima do material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre”, explicou Tristão.
Em sua visão, o caso de Rafael Braga simboliza bem como o Estado brasileiro “adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo”, o que explica como as reivindicações de caráter social que marcaram diversos protestos são bloqueadas por todas as instâncias de poder constituído.
“Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras”, criticou.
A entrevista com João Henrique Tristão, realizada nos estúdios da webrádio Central3, pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Além dos ativistas de diversos locais processados pelas instituições de Estado após as históricas manifestações de junho de 2013, chamou atenção o caso de Rafael Braga, preso por portar pinho sol próximo a uma manifestação no Rio de Janeiro. O que você tem a contar do caso e o que espera do STF, que agora tem o processo em mãos?
João Henrique Tristão: O caso do Rafael Braga é um dos que revelam de forma patente a seletividade sob a qual atua o sistema penal e como é a política criminal, em especial o judiciário, o Ministério Público e todas as agências de poder constituídas. O Rafael, como todos sabem, é um jovem negro, pobre, que na época de sua prisão estava em situação de rua. Foi preso num dos dias das manifestações das jornadas de junho, próximo da avenida Presidente Vargas e da Central do Brasil, perto de onde se recolhia. Portava materiais de limpeza, pinho sol e outro desinfetante, e foi pinçado pela polícia que patrulhava a região. Pegaram-no e aduziram que estava causando tumultuando, conduzindo-o à delegacia de forma arbitrária. Posteriormente, segundo o próprio Rafael Braga relatou, apareceu um material já manejado, depois de sua prisão, que foi introduzido no sentido de qualificar aquilo como possível artefato explosivo, tudo à sua revelia.
Malgrado à atitude policial, podemos constatar, até pelo laudo, mesmo sob tal manipulação, que a perícia aferiu ofensividade mínima deste material, ou seja, forçaram a barra no sentido de ter alguém pra Cristo, digamos assim. Muito em virtude de sua fragilidade e vulnerabilidade, aliadas ao fato de ser negro, portanto, vulnerável ao sistema penal, Rafael foi selecionado por esse sistema nefasto. Por isso, foi processado pelo artigo 16 do Estatuto do Desarmamento, que se refere à posse de material explosivo, e condenado a 5 anos de reclusão, de forma totalmente arbitrária e insensível por parte da justiça. De acordo com a própria parte técnica não havia elemento pra embasar uma pena de tamanho calibre.
A pena, na época, foi majorada porque o juiz considerou que ele, por estar próximo a lugar de manifestação e concentração de gente, colocou em perigo a vida de muitas pessoas. Uma evidente incongruência, porque o próprio laudo atesta o mínimo de potencialidade do material. Tal aspecto foi objeto dos nossos recursos, mas a 3a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) negou nossa apelação, reduzindo a pena em somente quatro meses, ficando em 4 anos e 8 meses.
Entramos com recursos no STJ e STF. Todavia, é evidente que por má vontade política com o caso e todas as circunstâncias correlatas nosso recurso não foi admitido na 3a. Vice-presidência do TJ-RJ. Por isso, entramos com medidas cabíveis no STJ superar tal apreciação. Não conseguimos êxito e agora recorremos à última instância do judiciário, o STF. Atualmente, o ministro Luiz Fux é relator de um agravo que visa superar esse óbice da apreciação do recurso, para assim reconhecerem e apreciarem o mérito da causa do Rafael Braga.
Correio da Cidadania: Entre os que realmente participavam de atos políticos, há vários outros processados, como um militante da Federação Anarquista Gaúcha e outros 23 cariocas, a exemplo de Sininho, Igor Mendes e Eloisa Samy. Há também casos como o do fotógrafo paulista Sergio Silva, cegado de um olho por bala de borracha, cujo inquérito que investigava abuso policial acabou de ser arquivado. O que esses casos todos refletem pra você, a respeito da democracia brasileira?
João Henrique Tristão: Atualmente, vivemos uma conjuntura política muito obscura, à luz do que deveria ser um estado democrático de direito. Constatamos, a partir das jornadas de junho, em razão também de muitas outras manifestações, que temos um aparato policial coordenado por um Estado que reprime e oprime o direito de manifestação, em clara tentativa de criminalizar movimentos sociais que reivindicam pautas sociais, sobre desigualdades raciais, entre outras.
Isso mostra a clara tentativa estatal de sufocar e inibir quaisquer atitudes de reivindicação por parte da população. É lamentável, mas infelizmente se adota uma política fascista, que a todo momento e a qualquer preço visa a manutenção do status quo. Seja através da criminalização de movimentos sociais, seja de qualquer outra forma pela qual o Estado possa manter as coisas como estão.
Minha visão política do contexto é exatamente essa. Sobre os 23 ativistas cariocas processados também posso falar, pois o DDH atua no caso. É um processo estapafúrdio. O MP elaborou tudo na base de ilações e conjecturas, no sentido de que haveria vínculo estável e permanente entre todos os ativistas, o que sabemos não ser verdade. É uma clara tentativa de criminalizar movimentos sociais. Basta olhar a conjuntura, a forma de atuação do Estado e a truculência da polícia pra vermos como é clara a tentativa de sufocar qualquer suspiro em prol de um país melhor e mais justo.
Correio da Cidadania: Muitos desses protestos tiveram relação direta com a contestação aos megaeventos esportivos e seus gastos bilionários. Como fica o Rio de Janeiro em meio a isso, que, além da Copa do Mundo, encerrada há um ano, ainda tem uma Olimpíada pela frente? Como você analisa a propalada ideia do ‘legado’?
João Henrique Tristão: Sobre a Copa do Mundo se seguiu a lógica capitalista, que nos “contemplou” com a vinda dos megaeventos. Assim, não se pode falar muito de legado, ao menos a partir do momento em que se investiu e concederam isenções bilionárias a uma entidade privada que agora é alvo de investigações de corrupção, em detrimento de serviços básicos como saúde e educação, que vivem em petição de miséria, no Rio e nacionalmente.
Valorizou-se um evento concebido para uma determinada classe, a dominante, poder acompanhar e usufruir de perto o suposto legado. Isso à margem da maioria esmagadora da população, que vive sem acesso a serviços básicos e muitas vezes em situação deplorável.
No meu entendimento não se pode falar de quaisquer legados, nem mesmo a reforma do Maracanã. Tudo foi feito em detrimento da melhoria de outros serviços, algo ainda mais nefasto, e não trouxe nenhuma benesse para a população. Em relação às Olimpíadas, creio que seguimos a mesma lógica, com seletividade de público e somente pessoas de melhores condições tendo acesso aos eventos.
Pior: temos casos de remoções drásticas de populações que vivem há muito tempo no entorno de alguns palcos desses grandes eventos. Podemos citar a Vila Autódromo, marco de resistência de moradores pobres à beira de um dos locais onde teremos Olimpíada, em constante ameaça de remoções ilegais e arbitrárias da prefeitura. Não consigo constatar nenhum legado para a população.
Correio da Cidadania: Você acha que as instituições brasileiras absorveram algum recado deixado pelas ruas nesses últimos dois anos?
João Henrique Tristão: Infelizmente, acho que as oligarquias midiáticas, os grandes conglomerados corporativos de mídia, foram atores no processo, de maneira que alienaram e deturparam muitos acontecimentos e fatos, tanto das manifestações de junho como nas que se seguiram depois.
Creio que grande parte da população ainda não compreendeu a real essência do que tudo aquilo representou. Hoje vivemos uma conjuntura política conservadora no Congresso Nacional. Quero muito acreditar que nada tenha sido em vão, que muitas pessoas possam ter sido tocadas no sentido de que o poder realmente emana do povo, que o próprio poder constituinte originário nos outorga isso.
Malgrado todos os percalços, deturpados e dissimulados pela grande mídia, quero acreditar que muitas pessoas possam ter se sensibilizado e constatado algo positivo, em termos de sentimentos de protestos e mudança. Quero acreditar que muitas pessoas tenham se sensibilizado e desenvolvido uma nova concepção política dos fatos.
Correio da Cidadania: Como relaciona tudo o que foi aqui conversado com esse ano político, marcado por cortes do orçamento social, desemprego e greves? Acredita que estamos próximos de reviver manifestações similares às de 2013?
João Henrique Tristão: Infelizmente, tenho uma análise política bem específica. Consiste no fato de que vivemos um momento político bastante singular, pois elegemos uma composição ultraconservadora para o Congresso Nacional. Além disso, tivemos as notícias de corrupção envolvendo membros do governo atual. Tudo isso gerou um oportunismo político muito bem manipulado pela grande mídia, que acabou difundindo um sentimento em diversas pessoas – não aquelas que se revoltaram em 2013, mas talvez um pouco também. Tivemos em 2015 protesto mais conservador, que visa principalmente sua própria autotutela, sua própria manutenção. Em março, tal sentimento foi capitaneado pela população de média e alta classe média.
Creio que, analisando a conjuntura e o fenômeno, as manifestações deste ano não podem ser confundidas com aquelas que ficaram marcadas como jornadas de junho. Tem muito oportunismo envolvido e uma classe média manipulada de modo a servir a senhores políticos e senhores do próprio capital, pra tentar desvirtuar a linha de protesto inicialmente adotada, que clamava muito mais por aspectos sociais do que pela própria manutenção de tudo, como vimos em março desse ano, em protestos travestidos de revolta contra a corrupção, algo totalmente genérico e sem pauta.
Evidentemente, a conjuntura atual do país potencializou e de certa forma viabilizou a deturpação do que efetivamente ocorre, aliado, volto a ressaltar, a um oportunismo político muito forte e uma manipulação por parte das grandes oligarquias midiáticas.
Quanto à possibilidade de vermos retornar as pautas das jornadas de junho, espero muito que aconteça. Espero que os atos em prol das pautas realmente necessárias ao país – ou seja, sociais – voltem com força total, como naqueles dias de 2013.
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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.