Três crises... Falta uma
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- Mauro Luis Iasi
- 17/08/2015
Na conjuntura brasileira se entrelaçam duas crises: uma crise econômica e uma política. Falta uma crise, aquela que costuma ser decisiva e que marca momentos de ruptura histórica: a crise do Estado.
Direta ou indiretamente, toda crise em uma sociedade capitalista se associa a uma crise econômica, mas os nexos entre as dimensões políticas e econômicas de uma crise nem sempre são claros. Como sabemos, a crise é inerente ao processo de acumulação, mas há momentos em que esta crise se torna mais visível e o paradoxo da superacumulação explode na queima de capitais, na destruição das forças produtivas, com todos os efeitos por nós conhecidos sobre os trabalhadores. Já a crise política, depende da coexistência das frações da classe dominante e dos acordos políticos para formar o bloco dominante, assim como, em grande medida, da forma política que historicamente se estabeleceu e dentro da qual tal coexistência se tornou possível.
A crise do Estado, no entanto, é algo mais profundo. É sinal de que a contradição foi além dos limites que a ordem burguesa pode conter. Emerge para primeiro plano a luta de classes, ameaçando não apenas um ou outro segmento das classes dominantes, mas a própria ordem burguesa. É uma crise que, apesar de se expressar em uma conjuntura determinada marcada por um governo de uma ou outra facção do bloco dominante, é, ao mesmo tempo, uma crise do Estado Burguês.
A crise econômica
A grande ilusão do período conjuntural mais recente foi a crença no mito do desenvolvimento capitalista “sustentável” – como se fosse possível evitar as crises com a administração dos investimentos, controle fiscal e monetário, do consumo, dos gastos públicos e todos estes e outros elementos da chamada “macroeconomia”. Como Mészáros já nos alertava há muito tempo, esta é uma vã tentativa de controle de um “sociometabolismo incontrolável”.
A tal “sustentabilidade” significa em poucas palavras, um equilíbrio entre a demanda crescente impulsionada pelo consumo e um crescente aumento da produção, que por sua vez geraria mais empregos e, por via de consequência, mais consumo e assim por diante. Bastaria que o Estado garantisse boas condições para que os capitalistas investissem para que a economia crescesse, a arrecadação aumentasse e o governo tivesse mais recursos para investir – seja em infraestrutura, impulsionando a continuidade do ciclo econômico virtuoso, seja com políticas compensatórias destinadas a diminuir os efeitos mais visíveis da miséria absoluta.
A raiz da atual crise é a comprovação da incontrolabilidade do capital. O capital acumula de forma desigual entre os componentes que o constituem, cada vez proporcionalmente mais em capital constante (máquinas, tecnologia, instalações etc.) do que em capital variável (força de trabalho), gerando o que Marx denominou de uma tendência à queda da taxa de lucro.
Nesta aproximação, o que gera a crise não é a ausência de condições para o crescimento da acumulação, mas o próprio crescimento que gera uma superacumulação na qual os capitais não conseguem voltar ao ciclo de sua reprodução ampliada com taxas de lucro aceitáveis.
O Estado burguês é o principal protagonista das medidas necessárias, seja para colocar em práticas as contratendências à queda da taxa de lucro, seja para gerir a crise cíclica e periódica inevitável. O autor d’O capital listou seis contratendências. Notem como podemos identificá-las claramente na ação econômica conjuntural dos governos burgueses:
1) Intensificação da exploração dos trabalhadores;
2) Redução dos salários;
3) Aumento da superpopulação relativa (expropriar muito mais do que será utilizado pelo capital em sua esfera produtiva);
4) Redução dos custos do capital constante (subsídios, novas matérias primas, infraestrutura, etc.);
5) Ampliação de mercados, seja para escoar a superprodução de mercadorias, encontrar novas fontes de matérias primas ou máquinas etc., seja, na fase atual do capitalismo, exportar capitais;
6) Autonomização da esfera bancária, buscando compensar com juros pagos por títulos da dívida pública, ou outras formas, a queda na taxa de lucro.
Tais medidas, que evidenciam a essencialidade do Estado no funcionamento da economia capitalista, desmontando assim a premissa liberal, não evitam a crise, nem impedem a queda tendencial da taxa de lucro, mas impõem ao movimento da economia seu caráter cíclico, isto é, momentos de crescimento da acumulação, auge, crise, recessão e assim por diante.
O que vemos hoje é um momento em que se paga o preço pelo crescimento capitalista impulsionado anteriormente como sendo virtuoso. Segundo o Boletim de acompanhamento da conjuntura (www.criticadaeconomia.com.br):
“No confronto com igual mês do ano passado, a produção industrial apresentou recuo de 3,2%, com o índice mensal de junho de 2015 apontando o décimo sexto resultado negativo. Na comparação semestral, o total da indústria recuou 6,3% nos seis primeiros meses de 2015, redução mais elevada desde o primeiro semestre de 2009 (-13,0%), no auge da última crise global de 2008/2009. Mais alarmante ainda são os números da derrocada dos principais setores industriais. Eles já desativaram grande parte da produção de bens de capital (máquinas, equipamentos, instalações), que continuou desabando de -11,2% no segundo semestre do ano passado para -20,0% nos seis primeiros meses de 2015. O estratégico setor de bens de consumo duráveis é outro que também apresenta ritmo de sucateamento, passando de -10,1% no segundo semestre de 2014 para -14,6% nos seis primeiros meses deste ano.”
O desespero do governo, nestes momentos, é que os mecanismos que antes funcionavam para incentivar o investimento e o crescimento econômico, parecem agora jogar a economia no buraco.
Da crise econômica à crise política
É neste contexto de crise da acumulação e necessidade de queima de capitais que a irracionalidade da racionalidade capitalista se revela. O chamado “ajuste” implantado pelo governo Dilma através de seu funcionário Levy (afinal, dizer que apoia a Dilma, mas é contra o Levy equivale a dizer que gosta dos Rolling Stones, mas não do Mick Jagger) responde aos interesses do capital, mas se choca com interesses dos capitalistas. Explico. Aqui se expressa, mais uma vez, a velha contradição própria da sociabilidade burguesa entre o interesse geral e os interesses particulares.
A necessidade do capital é de queimar forças produtivas, frear a produção e o consumo, devastar mercados, destruir o poder de compra da moeda, rebaixar salários e demitir em massa para recriar as condições favoráveis à retomada dos investimentos com taxas de lucro aceitáveis. No entanto, se todos concordam que esse é o remédio, não podemos esperar que cada capitalista em particular se disponha a sacrificar-se para o bem comum da acumulação queimando suas forças produtivas e destruindo sua capacidade produtiva.
Como nos explica Mandel, seguindo as pistas de Marx, é exatamente por isso que a eclosão da crise se dá de maneira catastrófica, porque paradoxalmente, no momento que a antecede, os capitalistas, ao contrário de frear, intensificam a produção.
Sem outras mediações, uma crise desta natureza colocaria em risco a ordem do capital, como ocorreu no início do século 20, nas duas grandes guerras mundiais e, neste contexto, a eclosão das revoluções socialistas na Rússia, na China e, depois, em outras partes do globo. É o Estado que entra aqui mais uma vez para garantir a ordem burguesa. É fundamental transformar a crise da economia capitalista em uma crise de todos, da sociedade, exigindo os sacrifícios compartilhados para voltar ao mítico crescimento que beneficiará a todos.
No entanto, as diferentes facções que compõem o bloco de poder (que em nosso momento histórico significa os setores que compõem o grande capital monopolista), como é natural supor, nem sempre se entendem sobre a forma de administrar a crise, buscando com sua proximidade a um governo de plantão, salvar seu setor, garantir seus investimentos e, se possível, arrasar seus concorrentes. O único consenso no bloco dominante, é que o peso maior da crise recairá sobre a classe trabalhadora, mas mesmo aí há problemas, pois a sobrevivência política de uma ou outra facção burguesa pressupõe não se identificar com as medidas draconianas que são impostas contra o conjunto da população para salvar o capital.
Neste momento, a conjuntura política pode ficar confusa ao observador desavisado. Isso porque, nos conflitos internos da burguesia monopolista e suas expressões políticas, as frações em luta acabam se valendo da crise como acerto de contas contra o arranjo de forças políticas anterior, visando ocupar o lugar central na administração do Estado burguês e seu governo.
Os sinais aparecem trocados, assim como historicamente vimos em nosso continente na luta entre conservadores e liberais, de forma que os liberais no governo agem como conservadores e os conservadores na oposição viram liberais. Trata-se de jogar o ônus da crise no bloco político de governo, para assumir em seu lugar, beneficiando-se do ciclo de crescimento que se segue quando as taxas de lucro, graças ao massacre dos salários e empregos, da destruição das forças produtivas e da capacidade de consumo.
O PT se beneficiou desta forma cíclica, culpou o bloco PSDB/DEM/PMDB pela crise, alcançou a condição de governo, reconstruiu o bloco de alianças numa nova governabilidade com seu protagonismo – PT/PCdoB/PSB – e, lógico, PMDB. Agora, na nova emergência da crise e suas consequências, a oposição tenta inverter o jogo, atrair o PMDB para a formação de um novo bloco e seguir a alternância tão saudável à continuidade da acumulação de capitais e seus ciclos.
O fato é que, neste âmbito, a crise econômica se expressa, ainda, apenas numa crise política que pode culminar na mudança do bloco de poder no governo. As mesmas expressões de classe, isto é, os diversos segmentos do grande capital monopolista (industrial, agrário, financeiro, exportador, comercial etc.) que se acomodavam através do bloco governista seguem agora na busca de uma alternativa. Na verdade, jogam nos dois lados e apoiarão aquele que vencer a disputa.
Há uma ausência importante neste cenário e tal ausência é determinante para o impasse político atual: os trabalhadores. O transformismo do PT e sua opção por um governo de conciliação de classes desarmou a classe trabalhadora para o cenário previsível de acirramento da luta de classes. A posição rebaixada e defensiva de um “reformismo de baixa intensidade” como diz André Singer (eu acredito que não chegou a ser nem isso), colocou o centro do governo na dependência econômica do mítico crescimento “sustentado” e politicamente refém da aliança com o PMDB.
O zeloso compromisso com o ajuste “necessário” para garantir a continuidade da acumulação capitalista, precondição expressa para que o plano de governo petista se desenvolvesse adequadamente, produz o ingrediente que o bloco de oposição necessita: um governo que se apresenta como de “esquerda” operando o ajuste brutal contra os trabalhadores para salvar os lucros dos grandes monopólios.
A crise gera, assim, dois dividendos para o bloco de oposição conservador. A situação econômica, a quebra do consumo via endividamento, o desemprego, a inflação e a corrosão dos salários, o desmonte do Estado e das precárias políticas semi-públicas de acesso a bens e serviços essenciais (como educação e saúde), tudo isso gera o clima para a tese do descontrole, coroada pelas denúncias de corrupção. Um cenário no qual uma operação política (agora não na cúpula do poder, mas na base social) se torna viável: afastar os segmentos médios do governo e ganhá-los para a oposição.
O segundo dividendo é, para nós, o mais sério e perigoso. Trata-se do empenho do governo em salvar o capital atacando os trabalhadores: afastam a própria base social originária da esquerda e a colocam sob influência do discurso político da direita. A eficiente manipulação que identifica “petismo” com “comunismo” permite ao bloco de oposição atacar o bloco atual de governo do Estado burguês, não por aquilo que ele realmente opera (até porque neste campo há a concordância da vontade geral da ordem burguesa), mas pelo preconceito contra a esquerda.
O moralismo da cruzada contra a corrupção serve, desta forma, tanto para angariar apoio nos setores médios, como atacar as bases das classes trabalhadoras, oferecendo a explicação da corrupção como cortina de fumaça que encobre a dinâmica da exploração capitalista.
A crise que falta
Apesar da dramaticidade da crise (em parte inflada por interesse da oposição conservadora), a ordem está garantida, por ora. Seja pelo bloco que tenta se manter no poder, seja pela possível alternância por um outro arranjo político das forças burguesas mais conservadoras.
Isso revela que o Estado burguês não foi atingido pela crise, ou, em outras palavras, que a crise política se restringe a uma disputa, nos termos e na forma da ordem burguesa.
A classe trabalhadora, derrotada e dividida, reage como pode. Recusa o pacote de garantia das empresas contra os trabalhadores, faz greves (muitas), procura manter vivos os movimentos sociais que lutam por suas demandas específicas (pela terra, em defesa da saúde pública, em defesa da universidade pública e da educação, contra a ordem urbana expropriadora, contra a violência policial etc.). No entanto, isso não encontra uma expressão política para deslocar a crise política para uma crise do Estado burguês.
É comum colocar a culpa na esquerda e em sua incapacidade crônica de se unir. Mas, essa é mais uma perversidade da crise atual. O grande problema da unidade da esquerda (necessária e urgente) é que um segmento considerável está enredado num paradoxo que alimenta a crise política da classe trabalhadora. Este paradoxo é a necessidade de tais setores recuperarem o apoio de suas bases sociais (e nesta direção é uma boa notícia, porque criticam a linha geral da política econômica e os ataques aos trabalhadores) sem deixar de apoiar o governo que decidiu atacar os trabalhadores para salvar sua governabilidade à direita.
O paradoxo deste setor governista é que precisa mobilizar os segmentos brutalmente atingidos pelo governo que precisa ser defendido. Quer o apoio dos operários, mas seu governo impõe uma redução de jornada com redução de salários; quer apoio dos funcionários públicos, mas os trata como inimigos numa greve na qual a categoria quer apenas repor perdas e garantia de direitos que estão sendo atacados; quer apoio dos professores universitários, mas desmonta a universidade pública enquanto descarrega milhares de reais para as universidades privadas; quer o apoio dos movimentos de luta pela terra e prioriza com bilhões o agronegócio e enterra a reforma agrária.
Uma verdadeira unificação destes segmentos das classes trabalhadoras e sua entrada decidida em cena em defesa de suas demandas próprias reconfiguraria os blocos políticos e colocaria em primeiro plano a luta de classes entre os interesses dos trabalhadores e os das classes dominantes (parece ser nesta direção que a esquerda, assim como o que restou de esquerda dentro do PT e parte de movimentos socais significativos, apontam).
Ocorre que isso desencadearia a crise do Estado e colocaria em risco a ordem burguesa, colocando a perspectiva da ruptura em primeiro plano, enterrando de vez as chances de recomposição do atual bloco de governo nos termos em que está estabelecido e com eles a possibilidade de uma continuidade via vitória eleitoral em 2018.
Não nos parece que o núcleo dirigente do PT tem qualquer interesse nesta direção e aposta numa retomada da economia que normalize as coisas, traga de volta o PMBD para o ninho governista, acreditando que neste cenário a velha chantagem do risco (que é real, considerável e hoje o mais provável) de um bloco mais conservador assumir o governo seja o passaporte para a continuidade do ciclo petista.
A esquerda reformista do PT e os movimentos sociais não têm forças para reverter isso dentro do PT e não podem abandoná-lo, a esquerda revolucionária resiste ao lado dos trabalhadores, mas, está longe de ser, mesmo unida, uma alternativa política para o curto prazo, eis o paradoxo.
Por vezes, o politicismo das análises levam muitos a crer que o que falta é vontade política, uma boa reunião e a disposição ao diálogo e tudo se resolveria. Infelizmente, não é assim. O que falta é o desenlace da crise econômica numa dimensão que transborde os limites da crise política e se transforme numa crise do Estado burguês.* Esta é a boa (e a má) notícia... Isto pode, em breve, não faltar mais.
* “Na verdade estas hesitações, e até incertezas, são um sintoma de crise da sociedade burguesa. Enquanto produto do capitalismo, o proletariado está submetido às formas de existência de seu produtor. Estas formas de existência são a desumanidade, a reificação. O proletariado é, pela sua existência, a crítica, a negação destas formas de vida. Mas, até que a crise objetiva do capitalismo esteja consumada, até que o próprio proletariado tenha conseguido discernir completamente esta crise da reificação, e como tal, apenas negativamente ascende acima de uma parte do que nega. Quando a crítica não ultrapassa a simples negação de uma parte, quando pelo menos ela não tende para a totalidade, então não pode ultrapassar o que nega, como por exemplo nos mostra o caráter pequeno-burguês da maior parte dos sindicalistas.” (György Lukács, História e consciência de classe. Porto: Escorpião, 1974, p 91-92).
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.
Publicado originalmente no Blog da Boitempo.
Comentários
Seu artigo me impressionou pelas sólidas bases teóricas nas quais sustenta seu percurso reflexivo acerca da realidade brasileira. Fico feliz por saber que nossa rede universitária pode contar com seu brilhantismo e lucidez intelectual.
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