‘ALBA mediterrânea’ é a saída dos países europeus subjugados pela crise (2)
- Detalhes
- Achille Lollo, de Roma para o Correio da Cidadania
- 23/10/2015
Analisando as questões geopolíticas e geoestratégicas europeias, resulta evidente a existência de um processo competitivo entre Estados Unidos e a União Europeia, no que diz respeito à tecnologia, políticas industriais e serviços financeiros. Uma competição que Barack Obama tentou definir no passado mês de junho ao forçar os países da União Europeia a aceitarem a implementação do TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento). Um tratado de livre comércio, semelhante ao defunto ALCA, onde o principal beneficiário seria o conjunto das transnacionais estadunidenses e algumas europeias. Confira aqui a segunda parte da entrevista com Luciano Vasapollo, economista e professor da Universidade La Sapienza, em Roma.
Ao mesmo tempo, a partir de 2013, com muita frequência e extrema preocupação, vários analistas falaram no renascimento de um imperialismo teutônico, apesar de a Alemanha não dispor de uma estrutura militar adequada. Um medo que, na realidade, tem muito a ver com a existência do processo de formação de um polo imperialista europeu, integrado no complexo e articulado processo de afirmação do bloco multi-institucional da União Europeia.
Processos que adotaram uma nova morfologia política e que não são mais os da Guerra Fria, quando o elemento determinante para um país ser considerado imperialista era a capacidade de destruição em massa e o número de guerras expansionistas e agressões militares realizadas.
Correio da Cidadania: Após a debacle da Grécia reapareceu o argumento do novo imperialismo alemão. Acha correta essa definição?
Luciano Vasapollo: Lênin em seu livro sobre o imperialismo, escrito há quase 100 anos, quando pretendia esquematizar a ascensão imperialista de um país, apresentava cinco condições, uma das quais era o potencial militar efetivo e a estrutura da indústria bélica. Ao mesmo tempo, lembrava que “o imperialismo não é somente uma construção político-militar; é, sobretudo, uma construção econômica”. Infelizmente, muitos cometem o erro de identificar um Estado imperialista avaliando apenas a capacidade e a potencialidade agressiva militar.
Nesse sentido, não podemos falar de imperialismo alemão. Aliás, em termos políticos essa terminologia é errada, inclusive por desviar a identificação do verdadeiro inimigo, que é o polo imperialista europeu coordenado pela França e a Alemanha. De fato, mesmo sem a União Europeia ter um exército próprio e não manifesta claramente a expressão violenta do tradicional imperialismo militar, ela está formando um polo imperialista.
É um projeto que podemos averiguar ao analisarmos a evolução da União Europeia durante quinze anos. Trata-se de período em que foram criadas as condições para definir as características estratégicas desse polo imperialista europeu, que responde aos interesses da burguesia transnacional europeia e hoje exerce o peso de um imperialismo econômico e político.
Correio da Cidadania: O euro foi um “super-marco” imposto aos europeus, sem o qual nunca teria sido possível transformar a Europa em um bloco institucional geoestrategicamente controlado pela França e a Alemanha?
Luciano Vasapollo: A Alemanha, em função da Guerra Fria, se tornou um sujeito político de extrema importância no xadrez das relações internacionais, que então dependiam da evolução do conflito Leste/Oeste. Por isso a burguesia alemã, logo depois de ter concluído a reconstrução do país em 1950, enredou o modelo exportador, se diferenciando do modelo estadunidense. Para colocar-se em uma dimensão internacional privilegiada, o capitalismo renano procurou o consenso dos sindicatos – em sua maioria socialdemocratas – oferecendo-lhes a cogestão e salários nos moldes de aristocracia operária. Em troca, os sindicatos garantiram altos níveis de produtividade e ao mesmo tempo o fim, ou quase, do conflito de classe.
Desta forma, a Alemanha se tornou um país com uma elevada industrialização exportadora apoiada pelo poder público, que para tornar efetivo e constante seu desenvolvimento precisava: 1º) definir uma área comercial com poucos concorrentes, onde o potencial produtivo alemão tinha à disposição uma periferia europeia com baixos níveis de industrialização, faixas de pobreza e a presença dos bancos teutônicos; 2º) ter o consenso político na Alemanha; 3º) visualizar uma liderança política forte para impor as leis funcionais e complementares ao modelo exportador; 4º) ter uma moeda forte reconhecida em todo o continente europeu.
Por isso a União Europeia nasceu com a perspectiva de ser ampliada, sobretudo no leste e no sul mediterrâneo, e com vista a garantir lucro às economias de poucos países, entre as quais a Alemanha, que, além da potencialidade industrial, possuía também um poderoso sistema bancário.
Um contexto que em 2002 concretizou a necessidade de se ter uma moeda forte, impondo em toda a Europa o euro, cuja característica era uma taxa de câmbio considerada artificial, que na realidade favoreceu somente o marco alemão. Lembro que na época o câmbio lira/marco era de 950 liras. Porém, em 2002 o câmbio liras/euro disparou para 1936 liras. Uma operação que deu origem a tenebrosas ondas inflacionistas que gradualmente destruíram a autonomia da economia dos PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha), do momento em que o euro conseguiu quebrar o poder de compras dos salários. Um contexto que garantiu aos banqueiros franceses e alemães lucros fabulosos nos países membros da União Europeia, que se endividaram cada vez mais, até terem de depositar no mercado seus títulos soberanos.
Correio da Cidadania: Portanto, volto a questionar: o inimigo é a Alemanha?
Luciano Vasapollo: Não, em absoluto. E reafirmo o não porque a Alemanha, sozinha, não representa os interesses de uma nova burguesia transnacional que, com a implementação do sistema monetário do eurogrupo, não deseja mais a volta autoritária do imperialismo teutônico. As excelências de Bruxelas querem a criação de um polo imperialista europeu, partilhado e aceito por todos os países da União Europeia e sabiamente representado in primis com o entendimento franco-alemão. A novidade é que a Alemanha em função de seu potencial político, econômico e financeiro exerce a liderança juntamente à França, que por sua vez detém um complexo potencial militar e uma capacidade nuclear autônoma aos Estados Unidos.
Por isso os países que se tornaram membros da União Europeia tiveram de aceitar o hiperpoder industrial exportador alemão e respeitar a função militar da França. Uma dupla vitória que a burguesia transnacional europeia, agora, pretende utilizar na competição global interimperialista. Sem querer voltar muitos anos atrás, é suficiente lembrar que foi o presidente Sarkozy que tomou a iniciativa expansionista de acabar com o regime de Kadafi, para garantir às transnacionais francesas e alemães as reservas de gás e de petróleo da Líbia, a menos de 1.200km de suas fronteiras. Um potencial que Kadafi havia garantido à China!
As ondas de migrantes africanos e árabes que procuram alcançar o “bem-estar europeu” são cada vez mais numerosas, muito por conta de o neocolonialismo e depois o neoliberalismo quebrarem os equilíbrios tradicionais das sociedades africanas e árabes, em particular as do Magreb. Temos, em seguida, as migrações das regiões flageladas pelas guerras onde as cidades ficaram praticamente despovoadas, enquanto os campos se transformam em solitários desertos, onde o uso das armas mais letais virou normalidade. Por isso é melhor ser mendigo em Paris ou limpa-vidros em Roma do que morrer de fome ou ser executado por quem diz ser um “combatente de Deus”.
De fato, o problema não é o migrante, mas a conjuntura que determinou seu status, isto é, as políticas de rapina que as potências ocidentais praticaram nos países do Terceiro Mundo, primeiro com o colonialismo, depois com o neocolonialismo e agora com os programas de austeridade neoliberal.
Durante meio século, o Oriente Médio, a África do Norte e o Sahel, a África Central e a Austral, sofreram o drama das guerras civis, enquanto se desenvolviam as monoculturas das transnacionais (eucaliptos, palmeiras, ananás, algodão, milho, amendoim etc.). Além de secarem os terrenos de inteiras regiões, determinaram a destruição programada da agricultura de subsistência e da pequena propriedade agrícola familiar, empurrando milhões de camponeses para as favelas das metrópoles africanas.
Mais complexa se tornou, portanto, a conjuntura nos países do Oriente Médio, do momento que os mesmos foram transformados em um eterno campo de batalha para legitimar a afirmação do sionismo. Assim, as guerras civis, as ditaduras e os massacres étnicos serviram para justificar a presença militar dos Estados Unidos e o controle por parte das transnacionais ocidentais de todas as áreas de produção de gás e petróleo.
Correio da Cidadania: Nesses dias, os governos da Alemanha, Finlândia, Polônia, Países Baixos e Dinamarca operaram um recuo político, dizendo que vão receber e integrar os migrantes. Por que se deu esse recuo?
Luciano Vasapollo: Angela Merkel e Juha Sipila, primeiro-ministro finlandês, trocaram a posição negacionista que anteriormente haviam manifestado para com os imigrantes. Consequentemente, os outros países europeus que haviam publicamente rejeitado os migrantes, tais como a Grã Bretanha e a Dinamarca, começaram a falar em solidariedade, de cotas de imigrantes por cada país e de ajuda humanitária. Somente na Hungria os batalhões de choque da polícia permanecem em alerta máxima. Uma mudança que não aconteceu por Merkel e Sipila se lembrarem do que o papa Francisco falou nos últimos dois anos. O problema é outro e tem a ver com a qualidade e a oportunidade de como poder enquadrar uma parte dos imigrantes.
Portanto, temos um fluxo migratório que parte da Líbia e reúne migrantes pobres e com baixos níveis de instrução, em sua maioria africanos e árabes magrebinos. Temos outro fluxo que parte das costas da Turquia para entrar na Grécia, mas, sobretudo, na Sérvia e na Macedônia, formado por cidadãos da Síria, do Iraque do Afeganistão e do Paquistão. Migrantes que, diferentemente dos africanos e dos árabes magrebinos, são indivíduos com uma boa formação. Muitos deles falam até três línguas (árabe, inglês e francês) e o nível de instrução em geral é universitário e sem distinção de sexo. Muitos deles eram comerciantes, pequenos empresários, técnicos com uma especialização acadêmica, muitas vezes realizada nas universidades britânicas, russas ou francesas.
Digamos que um grande número deles fez o doutorado nas universidades de Beirute ou de Amã! Esta é gente que não pode ficar nos campos de refugiados, deve ser logo aproveitada. E para entender esse processo lembro o que aconteceu na Itália logo após a queda do Muro, quando chegaram cerca de 3 milhões de migrantes dos países do Leste.
De fato, hoje a maior parte dos carpinteiros, dos técnicos hidráulicos, dos soldadores, dos operadores das máquinas para a construção civil, da indústria alimentar, saneamento, é de albaneses, romenos, poloneses ou ucranianos. Se depois vamos ao Triveneto, onde existe o famoso triângulo industrial de eletrodomésticos, todos os pintores, encarregados da limpeza das linhas de montagem ou do armazenamento são eslovenos, sérvios ou croatas.
Quer dizer, esses migrantes foram utilizados para integrar-se na sociedade italiana com o objetivo de substituir a mão-de-obra italiana, recebendo salários menores apesar de serem operários com a mesma especialização. Por outro lado, quero lembrar que é mais fácil chantagear um trabalhador migrante que um italiano, o que permitiu a muitos empresários impor condições de trabalho mais exigentes, perigosas e sem as devidas medidas de seguridade.
Por isso, na Itália a quase totalidade dos imigrantes registrados trabalha com falsos contratos temporários, que permitem aos empresários e, principalmente, aos comerciantes empregadores enganar a fiscalização. Porém, o grande lucro é com os clandestinos, que aceitam qualquer tipo de salário e qualquer trabalho!
Correio da Cidadania: Portanto, a solidariedade da Merkel e de Juma Sipila é uma farsa, do momento que os migrantes sírios, os iraquianos e até os paquistaneses, na realidade, foram aceitos por serem uma massa de trabalhadores especializados que deverá ocupar os lugares dos operários ‘nacionais’ que começam a se aposentar.
Luciano Vasapollo: Exato! Hoje, nas fábricas da Alemanha e da Europa do norte começou a troca de gerações de operários e de técnicos. Porém, o problema é que um jovem operário especializado alemão, finlandês, dinamarquês ou holandês, como também um técnico em eletrônica, ou em informática, uma enfermeira da UTI ou um motorista caminhões ou grandes tratores, custa entre 3.000 e 5.000 euros ao mês.
Além do mais, devemos considerar que o empregador deve pagar os bônus de produtividade, as contribuições para a reforma, o 13º e 14º salários, a contribuição para a moradia e tantos outros benefícios que para a maioria dos trabalhadores italianos ainda são um sonho.
Porém, empregando o refugiado por motivos humanitários, vindo da Síria por exemplo, o empresário, em geral, paga um salário de não mais que 1.000 euros! E não devemos esquecer que os refugiados são sempre submetidos ao controle dos “assistentes sociais da polícia”. Por isso, uma vez empregados em uma fábrica nunca participarão nas greves ou manifestações sindicais. Nunca irão fazer críticas aos seus “benfeitores”! Nunca irão dizer que são superexplorados e chantageados por serem migrantes vindo de países onde os Estados Unidos criaram perigosos teatros de guerra e a palavra “fim” não existe.
Correio da Cidadania: Ao analisar o que está acontecendo na África, na Ásia e sobretudo no Oriente Médio, seria uma provocação perguntar se o ciclo do poder imperial dos Estados Unidos está chegando na sua fase final?
Luciano Vasapollo: É evidente que hoje no xadrez das relações internacionais se vive uma conjuntura confusa, seguida de momentos de equilíbrio, em que os contendentes ficam preparando o xeque-mate final. Praticamente, estamos sempre esperando que algo aconteça, do momento que os Estados Unidos não detêm mais o comando unipolar do mundo como aconteceu no passado. Hoje, as decisões da Casa Branca são incertas e contraditórias, porque o poder econômico e financeiro dos Estados Unidos deve enfrentar seus homólogos da área do euro. Deve ajustar contas com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que são potências emergentes com interesses políticos totalmente divergentes aos da União Europeia e dos Estados Unidos.
Deve, também, ajustar as contas com a China que, em 2014, superou os EUA no volume de produtos exportados e em 2015 sofreu uma crise financeira evidenciada nas últimas semanas nas Bolsas de Valores chinesas, outro efeito da crise sistêmica global. O império estadunidense deve ajustar as contas também com as novas alianças da ALBA, que na América Latina procuram novas alternativas na transição socialista, tornando-se, assim, uma referência mundial para a efetiva libertação política e econômica do imperialismo e do capitalismo. Portanto, não tendo mais a liderança mundial, os Estados Unidos devem assumir decisões estratégicas que, mesmo em contradição com o passado, servem para justificar o que deverá ser realizado no futuro.
Por exemplo, hoje, as excelências da Casa Branca pretendem finalizar um acordo com Cuba para agradar alguns setores da “burguesia iluminada” do Partido Democrata, e mostrar que Barack Obama quer acabar com a dúplice vergonha histórica dos Estados Unidos, isto é, Guantánamo e o bloqueio econômico a Cuba. Ao mesmo tempo, as mesmas excelências do Partido Democrata dão carta branca à CIA para desferrar um ataque sem precedentes contra a Venezuela revolucionária, bolivariana e chavista.
Consequentemente, nos últimos nove meses se multiplicaram as agressões armadas ao longo das fronteiras, enquanto os ataques armados das “guarimbas” se repetem em algumas cidades venezuelanas. Uma atividade subversiva que o exército venezuelano está controlando com facilidade, enquanto a complexidade da guerra econômica está criando uma situação difícil para o governo revolucionário do presidente Maduro. Inclusive porque esta conjuntura é manipulada pela mídia no âmbito da chamada guerra psicológica.
Quero então lembrar que os efeitos da guerra econômica não seriam tão letais se as “antenas” da CIA não tivessem se beneficiado da colaboração dos responsáveis locais do DEA (Departamento de Combate às Drogas), que permitiram aos grupos de paramilitares colombianos exercerem o papel de “pretorianos do comércio fronteiriço”, encobrindo e protegendo militarmente os narcotraficantes que, agora, se reciclaram para realizar as lucrativas atividades do contrabando ao longo da fronteira colombiana com a Venezuela.
Correio da Cidadania: Por qual motivo o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, correu o risco de congelar as relações com Israel ao concluir o acordo nuclear com o Irã?
Luciano Vasapollo: Quando os EUA eram os donos do mundo, seguiam um caminho unívoco que era até mais fácil interpretar. Por exemplo, em 1983 o governo de Granada decidiu construir um grande aeroporto utilizando para isso a cooperação cubana. Em resposta, Ronald Reagan sancionou um “blitz” militar, mobilizando 7.000 marines que invadiram a pequena ilha das Caraíbas. Em 1987, o presidente de Burkina Faso, Tomas Sankara, depois de ter apresentado um revolucionário programa de reformas estruturais, foi vítima de um nojento golpe de Estado promovido pela CIA e o SDECE francês. Enfim, para entender melhor as atividades do poder imperial queria lembrar que entre 1960 e 1980, excluindo Costa Rica e o México, todos os países da América Latina e Central sofreram golpes de Estado planejados e realizados pelas “antenas” da CIA.
No Oriente Médio, a opção geopolítica e estratégica do imperialismo estadunidense promoveu o espírito arrogante e beligerante do Estado sionista de Israel, com o objetivo de romper os frágeis equilíbrios criados na região após a aventura franco-britânica em Suez, em 1957. Uma arrogância que foi eternamente justificada pela Casa Branca e pelas excelências de Wall Street.
A este propósito, queria lembrar que quando o Mossad sionista comunicou ao Pentágono que Saddam Hussein tinha um projeto para construir um protótipo para resfriar o urânio, imediatamente os generais da Casa Branca autorizaram o “raid” da Força Aérea Israelense para destruir todos os laboratórios militares do exército iraquiano. “Dulcis in fundo” o general Colin Powell foi à Assembleia das Nações Unidas confundir a opinião pública mundial com a falsa tese de que o Iraque de Saddam possuía "armas químicas proibidas que ameaçavam o mundo”. E todos acreditaram nessa fábula!
Hoje, os Estados Unidos, depois do êxito ridículo no Iraque, no Líbano, no Afeganistão e na Síria, devem, aparentemente, diminuir o apoio incondicional a Israel, do momento que têm outras incumbências geoestratégicas, em função das quais o acordo nuclear com o Irã virou prioridade máxima. De fato, no momento em que o Secretário de Estado, John Kerry, concedeu ao Irã o poder de construir centrais nucleares apenas para a produção de energia, em troca recebeu a afirmativa de o governo iraniano empenhar-se em aumentar até o máximo nível a extração e a exportação de petróleo e de gás. É evidente que com a chegada no mercado de enormes quantidades de petróleo iraniano o preço do barril vai baixar ainda mais, golpeando perigosamente os produtores (Rússia e Venezuela) que rivalizam com os EUA.
Uma operação que com a colaboração da Arábia Saudita poderá estabilizar o preço do barril de petróleo até os 30 dólares. Os sionistas de Telavive não haviam percebido que o acordo nuclear com o Irã é de extrema importância para os EUA do momento que com o preço do barril rebaixado em quase 68%, todos os projetos de cooperação e de desenvolvimento dos BRICS deverão parar e ser reformulados em 2018, o que para a Venezuela dificulta, ainda mais, os programas do governo revolucionário...
Correio da Cidadania: Portanto, teremos mais cenários conflitantes no próximo futuro?
Luciano Vasapollo: Não há dúvida, do momento que a União Europeia e os Estados Unidos estão tentando alcançar a liderança do capitalismo mundial e do imperialismo para os próximos 30 anos. Portanto, será nessa ótica que teremos uma série de modificações geopolíticas e geoeconômicas, que hoje podem resultar até num paradoxo. Na realidade, as futuras mudanças, inclusive territoriais, serão motivadas pelos elementos conjunturais do novo contexto geoestratégico, cuja realização vai acontecer no âmbito do conflito interimperialista que a chamada competição global determina em dois níveis:
a) no nível macro, a competição cresce e vai comparar a potencialidade das áreas econômicas, das financeiras e monetárias, das comerciais, da pesquisa tecnológica e a capacidade de controle institucional;
b) no nível micro, a competição global já se manifesta diretamente entre as multinacionais e as empresas com maior nível tecnológico. Entretanto, o cenário conflitante que mais me preocupa é o dos países de capitalismo maduro, onde as diferentes faixas de proletariado ainda não estão devidamente organizadas para enfrentar os múltiplos ataques do que hoje chamamos de guerra social. Uma guerra que em um país como a Itália, que, mesmo sendo a oitava ou a nona potência mundial, tem um desemprego que alcançou 12,7% da população ativa, sendo que 44% desse contingente são jovens entre 18 e 30 anos. Por sua parte, o desemprego no sul da Itália já alcança 75% da população juvenil!
Também me preocupa o cenário latino-americano, porque será na frente venezuelana – onde está em curso uma guerra econômica, subversiva, psicológica, contrarrevolucionária sem precedentes contra o governo bolivariano a partir da Colômbia e da Guiana – que está em jogo a afirmação da autonomia, da soberania e do direito à autodeterminação não só do povo venezuelano, mas também de todos os povos da América Latina.
Correio da Cidadania: Como explica a explosão violenta do fundamentalismo islâmico através da afirmação dos partidos da Irmandade Muçulmana e das seitas salafistas e jihadistas, chegando à ação beligerante da Frente Al Nusra, Boko Haram, Al Qaeda e o chamado Estado Islâmico (ISIS)?
Luciano Vasapollo: Hoje o ISIS de Al Bagdhadi, como também Al Qaeda e os outros grupos armados do fundamentalismo islâmico, foram e continuam sendo elementos funcionais na estratégia das guerras imperialistas provocadas nos diferentes países do Oriente Médio. Guerras que se tornaram o objeto preferido dos processos de manipulação midiática, tanto a mais retórica quanto a mais violenta. Na realidade, somos vítimas de variado terrorismo midiático, quando os vídeos das execuções exemplares, ou das destruições de monumentos históricos e patrimônios da humanidade, ajudam as excelências dos governos ocidentais e árabes a dizerem que agora temos somente Guerras Religiosas e, consequentemente, Guerras de Civilização.
Na realidade, as guerras religiosas não existem e as chamadas Guerras de Civilização são um artefato semântico e midiático do Pentágono e da OTAN. De fato, quando os Estados Unidos, a União Europeia e os generais da OTAN declaram “devemos exportar a democracia ao mundo”, estão revelando que pretendem exercer o controle absoluto dos mercados e das diferentes reservas de minerais energéticos (gás, petróleo e urânio), dos minerais preciosos (ouro, platina e diamantes) e dos minerais estratégicos (lítio, titânio, cádmio, molibdênio, nióbio, cobalto, tântalo e magnésio) e das reservas aquíferas, visto que as próximas guerras serão para a posse das reservas de água.
Em termos conjunturais, o fundamentalismo islâmico, mas também o cristão e o judaico, são elementos complementares dos conflitos expansionistas interimperialistas que servem para ludibriar o olhar crítico da opinião pública quando se fala de guerra.
As dificuldades na definição de uma forma de desenvolvimento econômico e social equilibrado nos países da Europa mediterrânea aumentaram logo após os tecnocratas de Bruxelas definirem que a União Europeia deveria ser a estrutura básica do futuro polo imperialista, coordenado pela França e a Alemanha. Por isso, após ter analisado e avaliado a experiência política e institucional da ALBA (Aliança Bolivariana dos Povos da Nossa América), foi publicado na Itália o manifesto político “Il risveglio dei maiali” (Jaka Book), que retomava uma proposta política de 2010 e que somente agora começa a ser levada em consideração na Itália e na Europa.
Nesse manifesto era lançada a proposta de constituir a ALBA Mediterrânea para promover a autodeterminação política e a libertação dos povos de Portugal, Itália, Grécia e Espanha (PIGS) e, consequentemente, romper a opressão econômica e financeira imposta pelos tecnocratas da União Europeia. Além disso, o manifesto rejeitava as regras e os tratados subscritos pelos chefes de governos sem o consenso popular. Iniciava assim um longo e lento caminho para construir um processo de libertação antiimperialista e anticapitalista que, hoje, começa a ser debatido pelos diferentes componentes políticos que lutam contra a arrogância e o poder absoluto da Troika. Na Itália, o Movimento Cinco Estrelas – que é o principal partido de oposição – apoia a ideia e a necessidade da construção de uma ALBA Mediterrânea.
Correio da Cidadania: Por que o manifesto denuncia que os PIGS foram as vítimas predestinadas do chamado polo imperialista europeu?
Luciano Vasapollo: Atenção, também outros economistas e analistas disseram e demonstraram que Portugal, Itália, Grécia e Espanha, e depois também a Irlanda, foram os países que sofreram um ataque direto, indireto e diferenciado sobre o valor de seus salários. Uma operação necessária para determinar um rol de dependência das economias do sul da Europa para com as do norte. De fato, o polo imperialista europeu, liderado pela Alemanha, conseguiu se firmar em virtude do aprofundamento das diferenças salariais entre norte e sul da Europa. Diferenças que por um lado interferem no custo do trabalho e, portanto, na definição do lucro e, por outro, penalizaram fortemente os direitos dos trabalhadores.
Em seguida e sempre para favorecer o modelo exportador alemão, foi a vez da desindustrialização, realizada com a transferência das fábricas do sul para o leste europeu. Um processo que está levando à pobreza absoluta numerosas regiões dos PIGS. A situação da Grécia nos ensinou que na União Europeia há povos que pagaram demasiado e povos que devem continuar a pagar cada vez mais, visto que nessa presumida aliança de países europeus não existe solidariedade, nem complementaridade econômica e produtiva, para oferecer um futuro certo e digno aos jovens da área mediterrânea, que hoje representam 30% do desemprego da União Europeia. Portanto, se falamos de ALBA Mediterrânea, devemos falar, inclusive, de solidariedade, de integração e de cooperação.
Correio da Cidadania: Como nasceu a ideia de mobilizar os povos do sul europeu para formar uma ALBA Mediterrânea?
Luciano Vasapollo: Antes de tudo é um produto de uma inteligência coletiva, a mesma com a qual definimos e realizamos as atividades de nossas organizações. Assim, cinco anos atrás, em 2010, formulamos a proposta da ALBA mediterrânea que para alguns era uma provocação teórica e que, naqueles anos, poucos entenderam o profundo significado político e as questões econômicas e sociais apontadas. Havia quem a criticava dizendo que naquele momento as relações de forças eram desfavoráveis e, portanto, era um argumento inútil, etiquetado entre a insanidade e a utopia! Depois, houve quem, estupidamente, chegou a dizer que estávamos quebrando a unidade de classe na Europa, isto é, com os trabalhadores alemães, suecos, holandeses e dinamarqueses, que recebem ótimos salários e têm condições de trabalho e um tipo de vida completamente diferente de nós. Por último, vieram os ataques dos eurocêntricos e os eurorreformistas, segundo os quais a União Europeia é algo de sagrado e intocável.
Hoje, essa proposta começa a ter um importante consenso porque não depende das características geográficas. Ela é uma proposta política que se relaciona com a autodeterminação daqueles povos que foram prejudicados com a criação do eurogrupo. Uma proposta que revela uma nova concepção de vida e que pretende ser uma alternativa válida para promover a aliança anticapitalista, econômica e produtiva nos países da região mediterrânea que, além disso, sofrem os efeitos do imperialismo estadunidense.
A proposta partiu também da consideração que falar de unidade da classe operária europeia é uma mera retórica. Hoje, o proletário italiano, o português, o espanhol, o grego, bem como o tunisiano, o argelino, o egípcio e o marroquino, têm interesses e condições de vida completamente diferentes dos operários da Europa do norte, que ganham muito mais e vivem em condições estáveis. Outro problema é que os europeus mediterrâneos, como também os do leste, na Europa do norte são considerados “proletários migrantes”, isto é, são concorrentes daquelas classes operárias bem abastadas, para as quais o migrante é também um concorrente que pode reduzir seu nível de vida.
Por isso, na Europa do norte o racismo e a xenofobia são muitos difundidos, sobretudo quando o sujeito em questão é árabe ou africano. É preciso sublinhar que nesses quinze anos de União Europeia não houve nenhum tipo de encorpadura entre os setores operários ou proletários da Europa do norte com os do sul. Aliás, se multiplicaram as diferenças não só de âmbito salarial, mas também no que diz respeito aos direitos fundamentais.
Por isso, a proposta da ALBA Mediterrânea é uma forma para por termo ao massacre social e impedir que os interesses da burguesia transnacional enforquem, definitivamente, os PIGS com mais programas de austeridade e a exploração da dívida, que se está tornando impagável. A este propósito, lembro o que disse nosso amigo, o presidente Evo Morales, segundo o qual “a solidariedade humana deve ser complementada por uma solidariedade econômica, monetária e produtiva”. Não foi por acaso que os países da ALBA criaram uma própria moeda, o Sucre, para desenvolver suas relações de troca e promover a complementação na economia industrial.
Correio da Cidadania: Se a ALBA Mediterrânea é um válido instrumento para sanear as áreas de pobreza absoluta no sul da Europa, seu crescimento poderia reduzir a degradação e o subdesenvolvimento existente nos países africanos mediterrâneos e assim frear as migrações?
Luciano Vasapollo: Sim, porque a degradação e a pobreza, limitada ou absoluta, como também a explosão do racismo, são elementos da conjuntura socioeconômica que integram a reconstrução e a reestruturação capitalista dos países do bloco europeu e que reencontramos a cada momento do conflito capital-trabalho. Quando o capital em crise procura um caminho para operar um processo de reestruturação e dar uma nova dinâmica ao ciclo da acumulação, o faz destruindo forças produtivas. Destruindo capitais nas bolsas. Destruindo fábricas e empresas especializadas com o processo de fusão ou com as incorporações.
Na prática, destrói força de trabalho e amplia o desemprego e a precariedade. Nesse âmbito, temos também as ondas migratórias com numerosas pessoas, todas jovens, que morrem na tentativa de atravessar o mar Mediterrâneo, em contêineres de caminhões ou debaixo dos vagões.
Um contexto que demostra que agora frente ao sul temos outro sul, com indivíduos que não têm nenhuma defesa e nenhuma colocação na nova divisão internacional da economia e do trabalho. Por isso temos pensado que o projeto da ALBA Mediterrânea vai desenvolver processos de luta e de agregação, onde o elemento determinante deverá ser a nova democracia, de base e participativa. Deverá favorecer um novo internacionalismo proletário e de classe que permitirá a saída da União Europeia, a saída do eurogrupo, para depois construir a hipótese de uma política de construção da ALBA Mediterrânea.
Quer dizer, através de um processo de reapropriação da economia, com a nacionalização dos bancos, a fim de zerar a dívida e operar o controle público nos setores estratégicos, como os transportes, as telecomunicações e as empresas energéticas. Na prática, realizar um processo geral de redistribuição da riqueza, na perspectiva de construir as condições para uma transição ao socialismo.
Correio da Cidadania: Quem apoia a proposta da ALBA Mediterrânea?
Luciano Vasapollo: A provocação que lançamos em 2010 hoje é um argumento de debate político em diferentes países. Em particular, a ALBA Mediterrânea está sendo analisada por muitos importante setores do movimento popular grego, que hoje representa a dissidência do partido Syriza. Juntamente aos gregos, há outros setores espanhóis, como a Izquierda Unida e grande parte dos movimentos sociais e vários grupos que integram o Podemos.
Em Portugal, registramos um notável interesse, sobretudo nos componentes dos movimentos antagônicos juvenis e grupos do Bloco de Esquerda. Na Itália, para além do sindicalismo independente e classista ligado a USB (União dos Sindicatos de Base), todos os movimentos sociais apoiam a proposta da ALBA Mediterrânea. Não podia concluir sem citar o posicionamento do deputado do partido Movimento 5 Estrelas, que já tentou promover um debate político no Parlamento em favor de ALBA Mediterrânea.
Leia a primeira parte da entrevista:
“A esquerda europeia representada pelos partidos reformistas e revisionistas está acabada” (1)
Conhecendo Luciano Vasapollo:
Com 60 anos, hoje é professor de Análise dos Dados da Economia Aplicada na Universidade de Roma “La Sapienza”, onde desempenha, também, a função de Delegado do Reitor para as Relações Internacionais com os países da ALBA. É professor em Cuba nas universidades de La Habana (Cuba) e de Pinar del Rio. É “Miembro de Honra” do Conselho Acadêmico do Centro de Pesquisa do Ministério da Economia e do Planejamento da República de Cuba. Grande estudioso do marxismo, hoje é considerado um dos principais analistas europeus da revolução bolivariana e do respectivo processo de transição ao socialismo do Século 21.
Juntamente a Atílio Boron (Argentina), Ricardo Antunes (Brasil) e James Petras (EUA), é considerado um dos poucos teóricos marxistas que enfrentaram o problema da modernidade revolucionaria do marxismo. Por isso, os quatro foram convidados por Fidel Castro e Hugo Chávez para identificar o potencial político da ALBA.
Na juventude, foi militante do grupo Potere Operaio, em Roma. Depois integrou o movimento participando em todas as lutas dos sindicatos de base, contribuindo, em 2010, na fundação da União Sindical de Base (USB), a confederação sindical independente que “ainda resiste ao ataque do neoliberalismo”.
Com Rita Martufi, dirige o CESTES (Centro de Estudos da USB) e as revistas “Proteo” e “Nuestra América”.
Desempenha a atividade de Advisory Board na revista “Historical Materialism” e a de Editor nos Comitês, Conselhos editoriais e nas Comissões redacionais de muitas revistas internacionais, entre elas a “Revista de Ciências Sociais, Política e Trabalho” da Universidade Federal da Paraíba (Brasil), a “Revista Outubro” do Instituto de Estudos Socialistas de São Paulo (Brasil); a revista “Sociedade Brasileira de Economia Política”; a “Revista Labirinto de Filosofia, Política e Economia”, da Universidade de Málaga (Espanha). É também conselheiro editorial da editora Jaca Book de Milão (Itália) para a área “Macroeconomia e estatística econômica”.
Até agora, tem 18 livros publicados, sendo coautor de outros 32. Com a colaboração de Rita Martufi, em 2012 publicou “O despertar dos Porcos (PIIGS) – Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha”, editado pela Jaca Book e depois traduzido ao castelhano. Mais recentemente, saiu “A ALBA por uma futura humanidade, dez anos da Aliança Bolivariana dos Povos de Nossa América”, em italiano, com a colaboração de Efrain Echevarria, Gloria Martinez Gonzalez, Rita Martufi e Alejandro Valle.
Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália, editor do programa TV “Quadrante Informativo”, colunista do "Correio da Cidadania, colaborador de “ALBA Informazione”, do “L’Antidiplomatico” e da revista “Nuestra América”.