Acordo nuclear: rendição do Irã e a reação russa na Síria
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- Ramez Philippe Maalouf
- 10/11/2015
Em 14 de julho de 2015, Irã e EUA assinaram um acordo nuclear na capital austríaca Viena. Os cinco demais participantes do acordo, China, França, Reino Unido, Alemanha e União Europeia (UE) eram apenas meros espectadores. Há quem diga que as negociações entre ianques e iranianos tiveram começo em 2013, por intermédio do sultanato de Omã, uma petromonarquia árabe conservadora, porém, de maioria muçulmana ibadita, um ramo minoritário do islã. Muito provavelmente, a questão nuclear foi tratada, exclusivamente, a partir daquela data. O acordo envolve, porém, questões que vão além meramente do programa nuclear e, neste aspecto, a República Islâmica do Irã e os EUA jamais cessaram o diálogo mesmo após a declaração de independência do país persa com a Revolução de 1979, deslanchada por forças esquerdistas (comunistas e islamo-marxistas), mas que se converteu em islâmica, conservadora e sectária em decorrência da feroz repressão empreendida após a ascensão ao poder do aiatolá Ruhhollah Khomeini.
Há fortes indícios de que o aiatolá Khomeini tenha sido levado ao Irã, em 1979, com aprovação no mínimo tácita dos EUA, para esmagar a esquerda iraniana e promover a guerra contra o Iraque, a fim de derrubar o governo ba’athista iraquiano. É preciso lembrar que, durante todo o mandato presidencial de Richard Nixon (1968-74), o Irã, sob o regime do xá Reza Pahlevi, foi armado pelos EUA, de modo que se converteu na maior potência militar do Oriente Médio (OM) e uma das maiores potências militares do mundo com o objetivo de neutralizar a influência regional do governo socialista e pró-soviético do Ba’ath iraquiano, liderado por Saddam Hussein, no momento em que a Inglaterra se retirava do Golfo Árabe-Pérsico.
Para complementar o “superarmamento” do Irã no projeto de desestabilização/neutralização do Iraque, Nixon autorizou a continuidade da guerra dos curdos soranis iraquianos contra a autoridade de Bagdá, iniciada em 1961, quando os latifundiários soranis pegaram em armas contra a reforma agrária empreendida pelo líder revolucionário, o coronel Abdul Karim Kassem. Irã e Israel, com o auxílio extra da Inglaterra (a partir de 1972), forneceram armas, dinheiro e treinamento aos soranis contra o governo de Bagdá, com o beneplácito dos EUA.
Relações perigosas
Quando o xá do Irã assinou um acordo de paz com o Iraque, em 1975, sem consultar os EUA, enfureceu o governo Gerald Ford, que passou a ver o regime do xá como “aliado não confiável”, o equivalente a um decreto de “sentença de morte” política. O Irã havia assinado um acordo com o maior inimigo dos EUA no Golfo Árabe-Pérsico poucos anos após a retirada militar britânica da região e no momento em que o Afeganistão promovia sua revolução socialista. Portanto, o xá iraniano não poderia continuar no poder.
Durante a Guerra Irã-Iraque (1980-88), Khomeini rejeitou sete propostas de cessar-fogo feitas por Saddam Hussein, que estava reconhecendo implicitamente a sua derrota. O líder iraniano xiita exigia a queda do governo do Ba’ath como pré-condição para a paz, não escondendo o desejo de impor uma república islâmica, aos moldes do Irã, no Iraque, mesmo sabendo que grande parte da população iraquiana, laicizada e secularizada, não era xiita e muito menos religiosa praticante. Isto levou o Iraque a uma radicalização, que incluiu até mesmo uma tensa e breve aproximação com os EUA, apesar de ter informações que o governo de Ronald Reagan vendia armas para o Irã, seja diretamente ou por intermédio da Argentina e de Israel.
Paradoxalmente, apesar da retórica antiamericana da república islâmica e da retórica anti-iraniana do governo Reagan, Irã e EUA continuavam a ter bons contatos, geralmente mediados por Israel, arqui-inimigo declarado do Iraque. Esta relação triangular foi revelada para o grande público – embora a imprensa ocidental já a denunciasse timidamente desde o início da guerra Irã-Iraque –, com o “Escândalo Irã-Contras” (1986-87), que quase derrubou Ronald Reagan da presidência. Foi o então presidente sírio Hafez al-Assad, quando entrou em choque com a milícia libanesa pró-iraniana Hizbollah na Guerra do Líbano (1975-90), quem autorizou um jornal libanês nacionalista árabe e pró-Síria a denunciar o esquema triangular de venda de armas dos EUA ao Irã. Naquele momento, Hafez se aproximou de Saddam Hussein e quase cortou relações com o Irã.
Foi neste período de aliança não declarada e não escrita entre iranianos e ianques, na guerra contra o Iraque, que surgiu um grupo de ex-diplomatas iranianos na ONU, chamado “círculo de Nova Iorque”, que inclui até hoje o atual presidente Hassan Rouhani, seu irmão, Hussein Fereydoun, o embaixador Mohammad Jafad Zarif, além do ex-embaixador iraniano na França Sadegh Kharrazi e do ex-chanceler Kamal Kharrazi, que serviam de intermediários entre o governo de Teerã e Washington D.C. no comércio de armas.
Porteira aberta
Com o fim da URSS (União Soviética) e a “neutralização” do Iraque em 1991, cessaram de existir as barreiras geopolíticas para os EUA reaverem a suserania sobre o Irã, perdida em 1979. Sem a presença dissuasória soviética em suas fronteiras e sob pesadas sanções econômicas impostas pelo Ocidente, o regime dos aiatolás moderou o tom de sua retórica antiamericana para evitar um choque frontal com Washington D.C., embora mantivesse a oposição aos Acordos de Oslo (1993), nos quais a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) legitimava oficialmente a invasão e a ocupação militar israelense dos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Como demonstração desta oposição, o Irã passou a armar e financiar, por intermédio da Síria, o grupo de resistência islâmica palestina Hamas, embora este defendesse um sectarismo religioso sunita.
Nada disto impediu, no entanto, que o Irã armasse o Azerbaijão, uma ex-república soviética de maioria xiita, aliada de Israel e dos EUA, na guerra contra a ex-república soviética da Armênia, que mantinha aliança com Moscou e distanciamento do Ocidente, entre 1988 e 1991. Armênios e azeris, embora em guerra nas suas respectivas pátrias, são duas grandes comunidades que convivem e coexistem dentro do Irã há séculos, como é o caso do atual Líder Supremo do Irã, o azeri Ali Khamenei. O apoio iraniano ao governo pró-israelense do Azerbaijão na guerra contra a Armênia, visando uma acomodação com o Ocidente, foi uma manobra de alto risco que poderia ter gerado uma guerra civil dentro do Irã.
Ainda como forma de negociar sua soberania e sobrevivência com os EUA, o Irã enviou sua Guarda Revolucionária, em apoio ao Ocidente na guerra contra a Iugoslávia, para lutar ao lado dos sectários e ultradireitistas bósnios-herzegovinos contra os sérvios. Estes últimos queriam manter a integridade territorial e étnico-confessional da Iugoslávia, entre 1991 e 2006.
Reorganização pós-2001
Por fim, em outubro de 2001, o regime islâmico iraniano invadiu o Afeganistão, ao lado dos EUA, na guerra contra o regime extremista dos talibãs (termo em árabe que significa “estudantes”, numa referência aos estudantes do Corão, livro sagrado do Islã), acusado, pelo governo ditatorial de George W. Bush, de dar abrigo ao grupo terrorista al-Qaeda.
Este último teve origem entre os remanescentes dos diversos grupos terroristas criados pelos EUA, formados por extremistas ditos “islâmicos” na guerra promovida contra os governos revolucionários pró-soviéticos do Afeganistão nos anos 1970 e a intervenção soviética para defender os seus aliados afegãos. Grande parte dos integrantes do governo talibã é de origem pashtun, um povo de origem iraniana que vive numa área que compreende vastas porções dos territórios paquistanês e afegão.
Estas atitudes conciliatórias do Irã com os EUA, visando sua sobrevivência, ao longo da década de 1990, que se refletiram inclusive nas eleições de dois presidentes abertamente pró-Ocidentais Hashemi Ali Rafsanjani (1989-1997) e de Mohammad Ali Khamenei (1997-2005), contrastava com a firme e resoluta resistência do Iraque, sob o governo de Saddam Hussein, em não ceder diante do embargo imposto pela ONU em 1991, sob o jugo dos EUA.
Este embargo causou o extermínio de mais de 500 mil crianças iraquianas, além dos outros 500 mil iraquianos mortos decorrentes do bloqueio que incluía alimentos e remédios. Mesmo sendo sabotado internamente pelos clientes do Irã em território iraquiano, incluindo a ultradireita liberal curda sorani, Saddam Hussein se recusou a se aliar a Israel e aos EUA contra o Irã, a Síria, o Hamas e o Hizbollah.
Certamente, esta firme atitude de resistência contribuiu decisivamente para que o presidente sírio Hafez al-Assad voltasse a se aproximar do Iraque, quando Turquia e Israel estavam unindo esforços para um ataque em conjunto contra a Síria, em meados de 1997. A aproximação se intensificou e, no final dos anos 1990, a Síria já havia levantado unilateralmente bloqueio contra o Iraque, furando o embargo imposto pelos EUA, via ONU.
Certamente, esta aproximação sírio-iraquiana acionou os alarmes nos EUA e deve ter contribuído muito para os planos de destruição definitiva do Iraque e da Síria elaborado pelos neoconservadores ianque-israelo-sionistas, ainda sob o governo de “Bill” Clinton. O tímido ataque ianque, para os padrões neoconservadores-sionistas, ao Iraque, em 1998, decretou a “sentença de morte” para o governo Clinton.
George W. Bush foi nomeado presidente pela Suprema Corte dos EUA, num golpe de Estado em dezembro de 2000, com a missão de destruir definitivamente o Iraque, a Síria, o Irã e até mesmo a Coreia do Norte. Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA forneceram o álibi necessário para impor uma ditadura de facto sobre o território ianque e também para instalar uma cunha na Ásia Central, no Afeganistão, de maneira a permitir às forças armadas ianques um raio de ação sobre todo o continente asiático.
Rendendo o Irã
Com tal controle sobre esta região estratégica, os EUA visavam impedir qualquer forma de integração do espaço asiático, desconectando geograficamente Irã, Índia, China e Rússia. A invasão do Afeganistão pela coalizão formada pelos EUA, OTAN e Irã, no final de 2001, foi complementada pela segunda grande invasão anglo-americana do Iraque em 20 de março de 2003, que causou o extermínio de mais de 1,5 milhão de iraquianos.
A aparente facilidade com que os EUA derrubaram o governo iraquiano, enfraquecido por longos doze anos de bloqueio de armas, alimentos e remédios, provocou desespero ao governo iraniano. Segundo o historiador iraniano Trita Parsi (2007), o regime dos aiatolás ofereceu uma oferta irrecusável, por intermédio do “círculo de Nova Iorque”, ao governo dos EUA, logo após W. Bush declarar “missão cumprida” a bordo do USS Abraham Lincoln, em 1º de maio de 2003.
Nesta oferta, com o pleno conhecimento e consentimento do Líder Supremo Ali Khamenei, os iranianos, temendo serem os próximos alvos da ofensiva ianque depois do ataque ao Iraque, resolveram colocar na mesa de negociações todos os contenciosos entre os dois países.
A saber, os pontos de negociação eram: a ocupação israelense da Palestina, o apoio financeiro e militar ao Hizbollah (libanês), Hamas (palestino) e Jihad Islâmica (palestino), a colaboração à ocupação ianque do Iraque e até mesmo o programa nuclear iraniano. No que se refere ao Hizbollah, quase o “braço direito” do Irã no mundo árabe, o regime ofereceu aos EUA o desarmamento da milícia e pressão para o fim das ações militares contra Israel.
Quanto ao Hamas e Jihad Islâmica, o Irã prometeu acabar com todo o apoio a estes grupos, assim como pressioná-los para cessarem as ações militares contra Israel. O regime dos aiatolás, para grande surpresa até mesmo de muitos membros do governo iraniano, prometeu reconhecer o Estado de Israel nos termos definidos pela proposta de paz feita, por iniciativa saudita, na cúpula da Liga Árabe em Beirute, em 2002.
Outra questão muito sensível ofertada pelo Irã para negociação era o seu programa nuclear, que seria aberto a inspeções internacionais intrusivas, além da assinatura do Protocolo Adicional do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), abrindo ao extensivo envolvimento ianque no programa.
Sobre o Iraque, naquele momento martelado pelas bombas ianques, os iranianos se comprometeriam a apoiar os EUA na “estabilização política” (sic), no estabelecimento de “instituições democráticas” (sic) e de um governo não religioso (como Khomeini sempre sonhara). O historiador Parsi afirma que W. Bush ficou embriagado pela aparente vitória fácil sobre o Iraque e que, por isto, ele teria rejeitado a “oferta irrecusável” iraniana. No entanto, os acontecimentos posteriores que culminaram na assinatura do atual acordo nuclear de 2015 nos sugerem um entendimento oposto ao do acadêmico iraniano.
Os EUA impuseram verdadeiramente um governo não-religioso, embora sectário, além de instituições liberais no Iraque com o apoio do Irã. A cooperação iraniana com a invasão e ocupação militar anglo-americana do Iraque também impediu a formação de uma resistência nacional iraquiana unificada. Pressionando as milícias iraquianas clientes, de caráter confessional sectário, a república islâmica não autorizou que elas atacassem abertamente as forças de ocupação, o que causou uma profunda cisão na resistência. Isto ocorrera no momento em que as tropas anglo-americanas se encontravam na defensiva, encurraladas pela resistência iraquiana entre os anos de 2006 e 2007, quando a média de soldados invasores mortos alcançou a cifra de 100 por mês.
Por este motivo, o feroz contra-ataque da resistência iraquiana, entre 2006 e 2007, não apenas foi contido, mas, também, neutralizado na medida em que um governo fantoche, formado exclusivamente por estrangeiros, se consolidava, fazendo com que o sectarismo religioso se disseminasse por todo o tecido social e político de uma maneira até então desconhecida no país mesopotâmico. Para aprofundar este sectarismo, as forças de ocupação fomentaram uma guerra civil entre “xiitas” e “sunitas”. Estão aí as raízes do surgimento do esquadrão da morte chamado “Estado Islâmico do Iraque e do Levante” (sic) celebrado pelas respectivas siglas em árabe, inglês e português DAESH/ISIS/ISIL/EIIL/EIIS.
A cooperação iraniana na ocupação anglo-americana do Iraque, dividindo a resistência, foi uma estratégia totalmente oposta àquela empregada na Guerra do Líbano (1975-90). Neste conflito, o Irã apoiou o Hizbollah, numa guerra civil intra-xiita, contra a milícia Amal, apoiada pela Síria, para salvar os palestinos e a população sul libanesa e expulsar as tropas invasoras israelenses. Ao fazer isto, o Irã não fez qualquer objeção ao Hizbollah se aliar à OLP, armada e financiada, sobretudo, pelo governo ba’athista iraquiano de Saddam Hussein, o ultranacionalista laico Partido Social Nacionalista Sírio (PSNS), a mais antiga força de resistência antissionista, e até mesmo com seus antigos inimigos, os comunistas.
O inimigo era a ocupação israelense, encerrada após ser expulsa do Líbano em maio de 2000. Quando a Intifada (levante) eclodiu nos territórios palestinos ocupados pelos israelenses, no final de 1987, o Irã enviou armas e dinheiro para as resistências armadas palestinas confessionais e sectárias sunitas como o Hamas e a Jihad Islâmica. Esta cooperação fez do Irã uma força progressista no Levante, o que não ocorrera na invasão do Iraque em 2003.
Embora esta mudança de postura do Irã fosse decorrência da tentativa de acomodação das elites iranianas com os EUA, não podemos descartar a existência de ameaças de ataques militares (inclusive nucleares) ianques à república islâmica, veladas ou explícitas. A partir da década de 1990, os EUA, juntamente com Israel, passaram a acusar o programa nuclear iraniano de não ser pacífico. Esta acusação era uma forma de se criar na opinião pública ocidental, sobretudo, ianque, a ideia de que o Irã não apenas queria fabricar armas nucleares, mas também usá-las, sobretudo contra Israel e os EUA.
Isto daria legitimidade a um ataque ianque, até mesmo preventivo e nuclear contra o Irã. Estas ameaças visam pressionar a república islâmica para se obter um mínimo de cooperação. Isto explica a recusa iraniana num envolvimento direto para impedir e repelir os ataques israelenses contra o Líbano em 2006, rechaçado pela resistência árabe, e contra a Faixa de Gaza, a partir de 2006 até o presente momento.
Peças importantes da nova multipolaridade
Um mínimo de cooperação iraniana é necessária, pois os ressurgimentos da Rússia e da China como outras duas grandes potências no espaço eurasiático, no final da década de 1990, constituem-se nos maiores desafios estratégicos aos EUA desde o fim da URSS. Assim sendo, na Eurásia, o Irã é um país chave tanto para os EUA quanto para Rússia e China, pois é acesso para o Crescente Fértil, a Ásia Central, a Índia, o Cáucaso e a Anatólia. Por ter se recusado a ser um vassalo dos EUA até o presente momento, embora agisse como um aliado de facto, como visto anteriormente, em vários momentos, a república islâmica tem estabelecido alianças com Rússia e China, contrariando os interesses ianques.
A nova abordagem estratégica de Barack Obama colocou o Irã novamente como peça-chave na região, pois com a conquista ianque do Iraque, todo o Crescente Fértil, a área core do OM, ficou sob controle dos EUA, à exceção da Síria, que é aliada do regime dos aiatolás e do Hizbollah e serve de base naval para a Rússia.
Estabelecer um acordo com o Irã, baixo ameaças de ataques israelense ao país persa, certamente foi uma importante estratégia para isolar ainda mais a Síria e, por tabela, a Rússia na região.
A invasão da Síria, patrocinada pelos EUA, a partir de 2011, por esquadrões da morte/grupos de extermínio jihadistas, seguindo os moldes das “guerras civis” (sic) na América Central e no Afeganistão, entre as décadas de 1970 e 1980, tem o propósito destruir este último baluarte do nacionalismo árabe, enfraquecer Rússia e China, assim como forçar o Irã a negociar e ceder permanentemente. Isto acabou ocorrendo em 2013, mesmo com a Rússia impedindo uma invasão ianque direta da Síria, que quase eclodiu uma III Guerra Mundial.
No entanto, o veto russo foi neutralizado pelo ataque ianque à Ucrânia, que provocou a dissolução de facto do Estado ucraniano em 2014, na fronteira com a Rússia. Como tímida resposta, os russos promoveram a unificação com a Criméia, a pedido da população local. Isto colocou de novo a Síria sob intensa pressão dos EUA, culminando na ofensiva do ISIS, que ocupou quase a metade do seu território, além de um terço do território iraquiano, cortando a ligação terrestre entre Irã e Síria, em julho de 2014. Estes acontecimentos demonstraram as limitações dos poderes russo e chinês e deixaram claro, mais uma vez, que eles não tinham condições de garantir a segurança do Irã em caso de ataque ianque.
As negociações foram iniciadas em 2013 e entabuladas pelo secretário de Estado ianque John Kerry e o grupo de diplomatas iranianos radicados no Ocidente, o “círculo de Nova Iorque”. As negociações finalizaram com a assinatura do Acordo em julho deste ano, classificado por muitos analistas, tais como Tony Cartalucci (2015) e Akbar E. Torbat (2015), como uma rendição do Irã. As cláusulas do Acordo tornam praticamente o programa nuclear iraniano inútil.
Os termos da rendição
O acordo exige o desmantelamento da principal instalação de enriquecimento em Fordow, eliminando cerca de 98% dos estoques de urânio enriquecido, proibindo o enriquecimento acima de 3,75%. Também deve ser destruído o reator de água pesada de Arak. Somente a usina de Natanz terá autorização para continuar funcionando com 6 mil centrífugas velhas. Os EUA também obrigaram o Irã a aceitar as inspeções da Agência de Energia Nuclear da ONU (AIEA) em todas as usinas do programa nuclear. Assim sendo, a AIEA terá acesso a todas as fases do programa nuclear e até mesmo às instalações militares para monitorar possíveis “desvios” para fins militares das atividades nucleares iranianas.
Desta forma, o Irã deve permitir a AIEA entrevistar cientistas e militares, sem quaisquer obstáculos. A destruição das instalações nucleares iranianas deve ser verificada e confirmada por uma junta de governantes e deverá ser reportada ao Conselho de Segurança da ONU (CSONU) por um diretor-geral da Agência.
As sanções impostas pela ONU contra as capacidades militares do Irã continuarão a existir. No entanto, o professor Akbar E. Torbat afirma que as restrições impostas pelo Acordo vão além do programa nuclear. O Irã não poderá fabricar e nem testar mísseis balísticos por oito anos e nem exportar armas por cinco anos. E muito menos os iranianos poderão fabricar e vender mísseis capazes de carregar armas nucleares. São tantas restrições que impossibilitam, de facto, o Irã até de enviar satélites para o espaço. Caso a república islâmica não cumpra o Acordo, bastará que apenas um único membro das Seis Potências proteste para que as sanções voltem a ser aplicadas sem qualquer possibilidade de veto no CSONU.
O Acordo é visivelmente hostil ao Irã, criando severas restrições à capacidade de defesa do país. Mais ainda, ele abre a possibilidade muito real de os inimigos do Irã terem acesso aos segredos militares do país, assim como identificar suas estruturas estratégicas. Pois como é sabido, Iraque e Líbia também foram submetidos às inspeções bastante intrusivas da mesma Agência e logo depois foram varridos do mapa pelos EUA e seus vassalos europeus.
Apesar da oposição da Guarda Revolucionária Iraniana (GRI), o líder Ali Khamenei e o presidente Hassan Rouhani deram amplo apoio ao Acordo, assim como estão pressionando para que seja aprovado pelo parlamento. A GRI é um importante setor da burguesia iraniana, seu corpo de oficiais é proprietário de fábricas, terras e de outros estabelecimentos comerciais e financeiros.
Porém, há outros setores da burguesia iraniana favoráveis ao Acordo, como é o caso da tradicional alta burguesia urbana de Teerã, liberal, laica, visceralmente antiárabe, pró-Ocidente, que tinha profundos laços com o regime do xá, mas que se acomodou com o regime dos aiatolás. A estes se somam a elite clerical, que também faz parte da alta burguesia iraniana. Há uma forte tendência para o regime, por meio do parlamento, de aprovar este Acordo, que representa uma capitulação que pode comprometer a futura existência do país.
Não podemos esquecer que, como contrapartida ao Acordo, há a promessa ianque de descongelar mais US$ 100 bilhões de fundos iranianos “sequestrados” pelo Ocidente desde a Revolução de 1979. Este dinheiro, que representa um quinto do Produto Interno Bruto iraniano, é necessário para o país sair da crise econômica, também resultante das sanções impostas pelo Ocidente.
O descongelamento dos fundos iranianos pelo Ocidente e o pleno retorno do Irã ao mercado energético são os “cantos de sereia” dos EUA para seduzir iranianos, assim como obter aceitação pelos russos e chineses, ao acordo de capitulação. Os russos, que sofrem pesadas sanções econômicas do Ocidente, por terem se unificado com a Crimeia, após o golpe de Estado nazista-liberal na Ucrânia em fevereiro de 2014, estão ávidos para entrarem no mercado iraniano, com seus expressivos 70 milhões de habitantes, assim como os chineses, cujo crescimento econômico, mais tímido do que em épocas passadas, ainda demanda gás e petróleo em grandes quantias.
Conclusão
Os EUA são, no entanto, os grandes vencedores deste acordo. As vantagens são ao mesmo tempo econômicas e geoestratégicas. O retorno do gás iraniano ao mercado internacional é importante para substituir o de origem russa, especialmente no mercado europeu, e, quem sabe, provocar uma rivalidade entre russos e iranianos, estremecendo as relações entre ambos. Além disto, Washington D.C., por ter trazido o Irã de volta ao mercado internacional, espera que, certamente, as empresas ianques tenham privilégios não declarados dentro do mercado iraniano como gestos de gratidão por parte do governo de Teerã, mesmo não havendo relações diplomáticas plenas entre os dois países.
Os ganhos geoestratégicos dos EUA com a rendição iraniana são ainda maiores e mais expressivos. Certamente, o Acordo foi uma derrota para Rússia e a China, que demonstraram graves limitações na capacidade de garantirem a sobrevivência do Irã e de dissuadirem um ataque ianque ao país persa. Ao assinar este acordo, o Irã se comprometeu implicitamente a não se engajar numa ofensiva aberta e direta contra os vassalos dos EUA e Israel na região.
A Casa Branca, primeiramente, garantiu que nenhum de seus vassalos regionais, formais (Turquia, Jordânia, Arábia Saudita, Catar e Emirados Árabes Unidos) e não formais (terroristas da al-Qaeda/Frente al-Nusra, ISIS, PYG), fossem prejudicados. Assim, enquanto as negociações ocorriam em Viena, Síria e os rebeldes houthis iemenitas, aliados do Irã e da Rússia, continuaram sendo atacados incessantemente pelos vassalos locais e regionais dos EUA.
E, além disto, a ocupação israelense dos territórios palestinos não deu qualquer sinal de fadiga, muito pelo contrário, a intensificação da invasão e ocupação sionista de Jerusalém oriental, predominantemente árabe palestina, aprofunda-se sem qualquer sinal de retrocesso. Tudo isto após o grande massacre promovido pelos israelenses na Faixa de Gaza em 2014, que exterminou mais de 2 mil palestinos em 50 dias.
Como se não bastasse, um acordo informal entre Rússia e Irã com o Ocidente fez com que os houthis fossem praticamente abandonados em troca da garantia de que os ocidentais permitiriam a permanência do governo ba’athista no poder na Síria. Esta última cláusula não foi acatada por Washington D.C., uma vez que a burguesia wasppp (branca anglo-saxã protestante e pós-protestante) é messiânica e qualquer proposta de negociação é tida como sinal de fraqueza de quem propõe.
Na verdade, o Acordo Nuclear com o Irã consolida o poder ianque no OM. Praticamente, toda a região está sob sua suserania: Egito, petromonarquias árabes do Golfo, Etiópia, Sudão do Sul, Jordânia, Israel, Iraque, Turquia, governo libanês, Azerbaijão, Geórgia. Os que lhes escapam ao controle estão sob cerco e ou ataque: Somália, Eritreia, Armênia, Síria, territórios palestinos ocupados por Israel (Cisjordânia e Faixa de Gaza), sul do Líbano sob o controle do Hizbollah; ou sob “normalização”/neutralização, como o Irã.
Estes territórios “rebeldes”, refratários ao poder ianque, estão desconectados uns dos outros, não formam um contínuo geográfico e, por isso, sofrem cerco. É o caso do governo ba’athista de Bashar al-Assad, uma vez que ele se encontra sitiado a oeste pelo Líbano; ao sul por Israel, os terroristas da Frente al-Nusra (al-Qaeda) e a Jordânia, ao norte pela Turquia e os esquadrões da morte ISIS, Frente al-Nusra (al-Qaeda), Exército da Síria Livre (leia-se Irmandade Muçulmana); a leste pelo ISIS; e a nordeste pelo grupo terrorista curdo kurmanji YPG (dissidentes sírios do PKK – Partido dos Trabalhadores Curdos kurmanjis).
Devemos acrescentar: a República do Iraque, sob impopular governo fantoche iraniano-americano liberal (portanto, ditatorial, sectário, corrupto, confessional) oferece de facto retaguarda às ações do ISIS na Síria. Todos estes grupos de extermínio, esquadrões da morte, terroristas e gangues promovem, deliberadamente ou não, a geoestratégia ianque de fragmentação territorial dos países do OM, recebendo, por isso, armas e financiamento do Ocidente.
Foi neste sentido que a assinatura do Acordo trouxe a ameaça real e concreta do Irã de abandonar a Síria e o seu aliado mais fiel, o Hizbollah, como ocorrera em 2003. Há uma grande possibilidade de a ofensiva russa na Síria, iniciada em outubro deste ano, ser uma resposta ao Acordo iraniano-americano, numa tentativa de romper o cerco às forças governamentais sírias e de também pressionar o regime dos aiatolás a manter o engajamento com Bashar al-Assad. Vamos aguardar os desdobramentos da ofensiva russa em território sírio.
A única conclusão a que podemos chegar é que o Acordo Nuclear Irã-EUA forneceu a justificativa legal para Washington D.C. atacar Teerã, impossibilitando, também legalmente, qualquer reação por parte da Rússia ou da China ou de qualquer outra potência, caso o regime dos aiatolás descumpra uma das cláusulas do acordo. Definitivamente, isto não é uma boa notícia.
Referências:
CARTALUCCI, Tony. Warning: nuclear deal with Iran prelude to war, not “breaktrough”. Global Reseach. 14 de julho de 2015.
COOLEY, John K. An alliance against Babylon: the U.S., Israel, and Iraque. London: Ann Arbor, MI: Pluto Press, 2005.
PARSI, Trita. Treacherous alliance: the secret dealings of Israel, Iran and the U.S. Yale: Yale University Press, 2007.
TORBAT, Akbar E. Soft coup in Iran: western allies coerce Iran into capitulating its nuclear program. Global Research. 19 de agosto de 2015.
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Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana pela USP.