Política em transe
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- Henrique Costa
- 27/11/2015
Responder a uma pergunta retórica convida o enunciador a um narcisismo sem freios. Pois nos últimos meses, certo governismo responde a pergunta que eles mesmos fizeram: vai ter golpe? E vem a resposta à questão formulada por mais ninguém além do militante autômato. Tratar-se-ia de golpe ou não, para a racionalidade política neoliberal, o nome importa muito menos que a arrumação para a qual se pretende a ação.
Para além do trauma democrático, a deposição de uma presidenta eleita sem indícios de crime significaria uma ruptura institucional, mas não sistêmica. Vive-se no país um momento de arrumação e de renegociação sobre quem vai gerir a paz social lucrativa pelos próximos anos. Os candidatos estão sendo avaliados e o RH da turma de cima já avalia se o perfil dos últimos gestores ainda é o mais qualificado para o serviço.
Para a esquerda, resta a autoanálise, pois os cadastros, as políticas públicas, as palavras de ordem da esquerda oficial já não parecem convencer mais ninguém. Pior: como sugere Christian Dunker, ela vai sendo analisada e patologizada socialmente como um desvio, como a encarnação do mau caráter brasileiro. Enquanto a realidade social diz uma coisa, a intelligentsia de esquerda diz outra, incapaz de dar respostas à verdadeira aflição social: de quem é a culpa? Como não há vácuo na política, a pergunta já foi respondida pelo outro lado.
Apoteose do lulismo
Havia um tempo em que, baseado na convicção na luta de classes, o patrão estava do outro lado da trincheira, que fosse só de uma mesa de negociação. Mesmo que a estratégia fosse a de fazer nossos empresários prosperarem para não queimar etapas, pegava mal ser amigo de banqueiro, usineiro, pecuarista, empreiteiro. Pelo menos se mantinham as aparências. Mas esse tempo passou.
Enquanto o petismo sonhava com a construção de uma sociedade salarial no Brasil, expresso em seu programa democrático-popular, o lulismo se afirmou sobre ele como uma proposta de gestão efetiva e eficaz do social substantivado e um modo de regulação apropriado ao regime de acumulação flexível, a realidade depois do sonho fordista. Para isso, o lulismo fez uso e reuso de um conservadorismo crescente entre os mais pobres, cujos desejos de consumo e ascensão econômica nunca foram tão estimulados.
Empresários viram amigos, emprestam imóveis e jatinhos, pagam reformas em triplex no Guarujá, entre outras idiossincrasias do patrimonialismo. A verdade é que Lula nunca fez nada de errado, do seu ponto de vista. Apenas cumpre e serve de exemplo da aspiração da classe trabalhadora organizada brasileira: o de ter um padrão de vida de classe média e tirar uma casquinha da riqueza apropriada pelo andar de cima e produzida pelo andar de baixo, a classe trabalhadora não organizada.
Comenta Paulo Okamoto, presidente do Instituto Lula, sobre a prolífica carreira do ex-presidente como palestrante: “Lula não tem como missão fazer palestra motivacional, de tudo quanto é tipo. As palestras dele eram para falar do Brasil, como ele vê a América Latina, a África. É uma palestra de uma pessoa de sucesso que tem visão do mundo e as pessoas querem saber como é que ele fez. Lula é muito agradável e quem vê a palestra dele gosta”.
Pois diz-se por aí que há um “cheiro de retrocesso” no nosso sofrido continente, quando descobrimos que o guerreiro do povo brasileiro estava a fazer lobby na Venezuela para empresas brasileiras afogadas na lama. Lula poderia aproveitar a oportunidade e explicar o que aconteceu com a marolinha que vai empurrando 3,3 milhões de famílias de volta às classes D e E, um “cheiro” de retrocesso.
E falando em retrocesso, o povo mineiro também sente o cheiro tóxico da lama da Samarco/Vale. Ainda estamos na fase da atribuição de culpas, além da óbvia, mas já se sabe que a fiscalização da segurança dos diques compete ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão federal que não tem capacidade operacional de controlar como deveria as barreiras de contenção. Além da falta de pessoal, o departamento teve cortes de verbas por conta do ajuste fiscal. Marolinha.
Exemplos não faltam. Para a ciência brasileira talvez não seja o caso de falar em retrocesso, já que nunca houve algo que mereça o título de avanço. De todo modo, é bom apertar os cintos, porque a verba das agências de fomento sumiu e os pesquisadores que se virem.
Acreditar na política
O momento atual da esquerda que orbita o PT se define basicamente a partir de uma crise moral, de quem entregou os anéis em 2003 e agora entrega os dedos, salvando Eduardo Cunha e quem mais for preciso para se manter como síndico do condomínio. E assim se renova a política, chamando os jovens para fazer dela “instrumento de transformação social”.
Não seria de se espantar que o surrado público deste circo continental respondesse a tamanho cinismo com um grande “que se vayan todos” inspirado em junho de 2013, o que ademais já vem acontecendo nas conversas de bar, nos ônibus e em precoces pesquisas de intenção de voto.
Com o descolamento aparentemente irreversível do mundo real, o PT se volta para sua narrativa trigenária de vitimização, empoeirada numa gaveta que Rui Falcão herdou de Dirceu. Já no andar de cima, que boceja para as diatribes do petismo, seguimos bem, obrigado, mas junho de 2013 acendeu o sinal amarelo: Lula e seu pacto conservador teriam perdido a capacidade de garantir os lucros e, ao mesmo tempo, gerir o sofrimento social brasileiro, tão bem administrado nos últimos anos, como agora demonstra a falência da paz armada patrocinada pelo consórcio PMDB-PT nos morros cariocas?
Essa certeza ninguém mais tem, mas entre uma ruptura institucional com cara de salto em direção ao precipício e a arrumação da casa oferecida por Dilma e Levy, a opção dos endinheirados parece óbvia. As evidências dizem que os donos do dinheiro grosso se guiam por racionalidade econômica e querem estabilidade para os seus negócios. Suspeito que esta racionalidade não é contra televisores, carros e passagens aéreas sendo desovados em praça pública para quanto mais gente quiser comprar.
Intervenção militar, antipetismo e afins pertencem à classe média e mais recentemente a uma parte da classe trabalhadora. Se os negócios vão bem, tanto faz quem governa e sob qual bandeira. Recentemente, soubemos que o lucro líquido da JBS disparou 215% no último trimestre de 2015, com o país em crise. O mesmo se pode dizer do Banco Itaú, cujo lucro líquido aumentou 10% no mesmo período. Mas a narrativa messiânica diz que os “poderosos” não aceitam o PT no governo, mesmo que o partido deva dobrar o tempo de estadia dos tucanos no Planalto.
Assim, a The Economist e o Financial Times, as famigeradas agências de risco, chefes de governo e economistas do mainstream global, publicações tupiniquins e os donos do poder já deram seu veredito. “Não há motivo para tirar Dilma do cargo”, disse Roberto Setúbal, capo do Itaú. E não há mesmo, como atestam os números acima e as alternativas absolutamente improváveis postas na mesa.
Para melhorar o quiproquó, Lula acha que falta em Brasília alguém que “traga esperança”, e insiste no seu mascate preferido, Henrique Meirelles. O ex-czar do BC, no entanto, quer carta branca, inclusive para nomear e demitir, o que nos faz perguntar para quem Meirelles venderia esperança. Levy, todos sabem, é um burocrata e fez carreira como subalterno, seja na Secretaria do Tesouro, seja no Banco Bradesco. Meirelles, pelo contrário, era o próprio banqueiro, e destucanou por conveniência. Tudo indica que dobraria a aposta na ortodoxia.
Em um país com tal desigualdade obscena, é verossímil a intuição de que o mau humor nacional é uma reação da elite. Contudo, uma análise que não se queira ideológica precisa ir além. Essas pessoas são privilegiadas, prevalecem no acesso ao capital cultural, mas não mandam no país, se ressentem disso e de não ter perspectivas de chegar ao topo.
Não foi o caso do último candidato a príncipe do Brasil. Foi com tom de tragicomédia que Eike Batista foi visto no aeroporto do Galeão tendo que pegar um avião comercial, impossibilitado agora de encher o tanque do seu jatinho – parece que o BNDES não cobre mais os gastos do companheiro.
Freio de arrumação
Fernando Collor não caiu por causa dos caras-pintadas ou do movimentos sociais, mas porque deixou de ser um gerente confiável para a burguesia. Dilma correu algum risco porque não consegue fazer a economia retomar o ciclo de crescimento, aí incluída a incapacidade política em negociar o ajuste fiscal dentro do arranjo institucional do lulismo, de resto improvável diante da torneira chinesa que fechou.
Vê-se a essência da ruptura com a presidenta eleita para além da aparência em declarações como a do banqueiro e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, de que o Brasil caminha para o “caos profundo” se continuar como está. Diz ele que o impeachment, “desde que dentro das regras”, seria uma solução para destravar a crise. “Chegou a hora. O PT fez essa lambança toda, imperdoável”.
Para acionar o freio de arrumação, Fraga defende uma nova liderança. “Pessoalmente, preferia que fosse o PSDB, mas pode ser qualquer outra”. E de fato, importa pouco o gestor, desde que faça o serviço. Fraga, afinal, faz parte do RH da turma de cima, mas representa a turma mais afoita.
Aparentemente, Dilma ainda não se tornou uma opção pior que as demais. Rubens Ometto, presidente do conselho de administração da Cosan, um dos maiores grupos econômicos do país, acha que Dilma está indo na direção certa e que o empresariado precisa “segurar sua ansiedade” por resultados concretos. Como no caso de Collor, a burguesia cogitou mais um freio de arrumação que, tudo indica, custaria mais do que um salto no escuro. Ser coxinha não basta para que Aécio seja amado incondicionalmente pela banca.
Made in USA
Mas a narrativa messiânica, quando em descrédito, sobrevive à revelia dos fatos. E isso em alguma medida se assemelha ao que vem acontecendo na política norte-americana, mas não exatamente na chave intuitiva. Se de direita ou de esquerda, não é política. É abismo.
Paul Krugman tem dito que na política estadunidense cada vez mais os dados empíricos não são suficientes para estabelecer bases mínimas para o diálogo. O economista cita um caso curioso: em um debate com os pré-candidatos republicanos no fim de outubro, Ben Carson foi indagado sobre seu envolvimento com uma empresa de suplementos nutricionais, que faz propaganda enganosa e que por isso teve de pagar US$ 7 milhões para encerrar um processo.
Conta Krugman: “o público vaiou (a pergunta) e Carson negou seu envolvimento com a companhia. Ambas as reações falam muito sobre as forças que propulsionam a política norte-americana moderna. Afinal, Carson mentiu. Ele esteve de fato profundamente envolvido com a Mannatech, e fez muito para promover suas mercadorias”.
Mas a base republicana não quer ouvir falar nisso, diz o economista. A base neopetista também não quer ouvir falar em crise, econômica ou política, e nem em Lava Jato ou Zelotes. Ambos têm em comum o messianismo como elemento fundante de uma narrativa particular da realidade, com uma diferença de tempo que muda a intensidade: processo pelo qual passa o Grand Old Party começou a se agravar com a presidência apocalíptica de George W. Bush, associada à crise econômica de 2008.
O petismo começou a passar por esse processo há cerca de dois anos, com o agravamento da economia e a fuga desesperada para dentro de parte de seus militantes, encapsulando certezas reafirmadas como doses de Rivotril por ideólogos de vários tipos e em várias frentes, com ou sem currículo acadêmico.
Insistem no “ódio” das classes dominantes contra o PT, quando até mesmo o insuspeito Marcos Coimbra, do Vox Populi, já deu números para este sentimento tão pouco nobre: 12%. A única verdade desse ódio imenso é que ele é maior do que a aprovação do governo Dilma.
Na linha do freio de arrumação, os constrangimentos pelos quais passa Lula, mais do que uma ameaça de prisão, são um alerta para o ex-presidente. Lula se elegeu duas vezes, elegeu e reelegeu a sucessora e não parece satisfeito. Claro que há muitas bocas que dependem disso, mas a sede de poder tem consequências, e a burguesia brasileira junto das instituições da democracia representativa vem agora alertá-lo de que já teve sua vez e que não vão aceitar nem ensaio de bolivarianismo.
Lula foi o melhor gestor social que este país já teve, e é reconhecido por isso com as milionárias palestras que faz pelo mundo e prêmios de best practice de Banco Mundial, FMI e por aí vai. Mas vem recebendo reiterados avisos de que sua ainda considerável popularidade e prêmio de funcionário do mês não significam mandato vitalício.
Política por liminar
Chegamos num momento em que a única opção contra o retrocesso é entrar com uma ação no Supremo Tribunal Federal, pois não se pode contar com a política diante da barbárie que se aproxima. Tentando disputar as ruas, dirigentes de sindicatos se escondem atrás de brutamontes e quentinhas, enquanto o movimento real e espontâneo lhes dá as costas, como o dos estudantes secundaristas de São Paulo, o dos garis cariocas em 2014 e o do Movimento Passe Livre em junho de 2013.
Agora, sindicatos e movimentos da galáxia petista tomam para si a mentalidade de direita, da ordem e do progresso, sem nem corar. Sibá Machado, líder do PT na Câmara, atacou os “vagabundos” que se manifestam contra Dilma, e tem reiterado os piores argumentos conservadores. Ele não é o único.
Nos atos da esquerda tradicional o medo do contraditório tem levado a manifestações perturbadoras. Com exceção, obviamente, de lunáticos armados, manifestações e acampamentos contra o atual governo tomaram da esquerda métodos semelhantes usados contra outros governos há não muito tempo, como nos lembra o Fora FHC. Contra o petismo atiravam a pecha de baderneiros, vagabundos e de serem contra o país. Tem sido cada vez mais frequente lideranças de movimentos sociais ligados ao governo responderem aos “arruaceiros pagos pelo Cunha” de forma semelhante, e isso parece absolutamente natural para eles e seus propagandistas.
A confluência perversa que atingiu a esquerda nos anos 1990 vai conhecendo seu avesso com a exaustão das políticas de gestão do PT depois de quase 14 anos. No começo daquela década, ONGs e fundações ligadas a empresas começaram a se apropriar do discurso de participação que marcara a ascensão dos novos movimentos sociais, processo que alguns creem sintomático.
O que é difícil de admitir, assim como era para os tucanos há mais de uma década, é que eles não são pagos por ninguém. São manifestantes defendendo uma pauta ignominiosa, por vezes de maneira violenta, defendendo uma coisa velha chamada ideologia e que infelizmente faz parte da mentalidade autoritária que vem como um retorno do recalcado.
O PT agora quer “ir para a guerra”. A retórica militarista, como se sabe, é uma obsessão estalinista e está nos piores momentos do pensamento de esquerda, e aparece especialmente em momentos de crise. Afinal, estimular a narrativa do “nós contra eles” é o que resta quando se quer desviar do que realmente importa: a exaustão de ideias e o necessário confronto com a realidade de que enquanto os petistas querem enfrentar os “poderosos”, os lulistas já se entenderam com eles. Noves fora a pertinência da narrativa messiânica, a pergunta é: hoje, quem empunharia armas pelo PT?
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Henrique Costa é mestre em Ciência Política pela USP.
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