Correio da Cidadania

“O Brasil não tem cultura antifascista”

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O Brasil segue acompanhando com apreensão as primeiras medidas anunciadas pelo governo Temer e toda sua regressão no pacto social estabelecido pela Constituição de 1988, que simboliza da forma mais prática a chamada onda conservadora. Enquanto isso, diversos movimentos do campo da esquerda procuram fazer um balanço e se reorganizarem diante do novo momento. Sobre tal contexto, conversamos com Gustavo Dellatorre, um dos organizadores da Marcha Antifascista realizada em 30 de abril, que fez uma análise dos acontecimentos recentes.

 

“Depois das jornadas de junho de 2013 e toda a questão do MPL, tivemos de lidar com coisas que ainda não precisávamos fazer. E a polícia também se encaixa no caso. Quando penso na escalada de fascismo nas ruas, penso em como a polícia nos tratava antes e depois de 2013. Antes, eram comum nos xingar de veado, filha da puta, de certa forma ofensas infantis. Ultimamente, ela passa a adotar um teor mais ideológico e político, chamam as pessoas de ‘petralha’, ‘esquerda caviar’, o que é muito interessante. É uma forma de opressão muito mais ideológica”, disse.

 

Na entrevista, realizada enquanto o Senado confirmava o afastamento de Dilma, logo após a queda de Eduardo Cunha da presidência da Câmara dos Deputados, Dellatorre lamenta a ausência de uma noção antifascista mais clara no país, que agora se defronta com alto nível de conservadorismo institucional.

 

“Outra lição é que não tivemos praticamente nenhum apoio dos partidos políticos legalizados de esquerda (na marcha). Mesmo aqueles que consideramos combativos não deram apoio institucional. Agora, com a mudança de governo e cenário do país, precisamos criar diálogo com toda a esquerda, colocar a importância do antifascismo, independentemente da orientação política de cada grupo, e fazer um bloco puramente antifascista. A tal onda conservadora já chegou e precisamos saber lidar com ela”, analisou.

 

A entrevista completa com Gustavo Dellatorre, realizada em parceria com a webrádio Central3, pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Como foi a marcha antifascista realizada no dia 30 de abril, nas principais capitais do país?

 

Gustavo Dellatorre: Antes da marcha fizemos reuniões semanais pra debater situações possíveis e realizá-la de forma tranquila. Reunimos grupos que contavam com pessoas de diversos movimentos sociais, alguns foram de forma independente, outros em nome de ocupações etc.

 

Em São Paulo, quisemos organizar algumas coisas que ficaram pendentes nos últimos anos, quando a marcha foi feita de forma mais espontaneísta e menos organizada. A marcha de 2014, por exemplo, teve um caráter mais contracultural, típico do movimento punk, e dessa vez quisemos dar um caráter mais político.

 

Ela surge a partir do momento em que começamos a verificar agressões sofridas por pessoas na rua por estarem de bicicleta, de camisa vermelha, por conta de símbolos políticos... Como temos contatos fora de São Paulo, nos mobilizamos pra organizar a marcha também em outras capitais.

 

Correio da Cidadania: Para além dessas agressões e acirramento recente, quais foram as principais razões que levaram à organização desse tipo de ato político?

 

Gustavo Dellatorre: Tivemos de aprender do pior jeito. Depois das jornadas de junho de 2013 e toda a questão do MPL, tivemos de lidar com coisas que ainda não precisamos fazer. Há também um desgaste com a chamada esquerda institucional. O governo PT se afastou demais dos movimentos sociais. Isso criou uma sensação de contradição e abandono dentro dos movimentos. Na realidade, o que pegou muito é que em 2013 tivemos de politizar um debate generalizado, que começou no aumento da passagem de ônibus e ganhou mais conteúdo político.

 

E a polícia também se encaixa no caso. Quando penso na escalada de fascismo nas ruas, penso em como a polícia nos tratava antes e depois de 2013. Antes, eram comum nos xingar de veado, filha da puta, de certa forma ofensas infantis. Ultimamente, ela passa a adotar um teor mais ideológico e político, chamam as pessoas de “petralha”, “esquerda caviar”, o que é muito interessante. É uma forma de opressão muito mais ideológica, e é aí que podemos identificar certa escalada de conservadorismo e fascismo.

 

Verifica-se na sociedade em geral também, quando notamos uma certa polarização, que não é muito verdadeira. O PT arca com uma política de conciliação de classes e abrigou uma série de fileiras entendidas como inimigas anteriormente.

 

Assim, fomos obrigados a nos organizar, dentro de uma perspectiva totalmente contrária à nossa, com o fascismo que ganha força escondido em discursos contra a corrupção ou até em discursos neopentecostais, matriz religiosa cujos pastores sempre aderem discursos mais à direita. Por isso tivemos de organizar uma resposta e fazer uma marcha que reunisse uma série de grupos que compartilham da mesma visão dos fatos recentes.

 

Correio da Cidadania: Como você mesmo disse, os governos petistas nunca foram realmente de esquerda e assumiram uma postura de conciliação permanente. Diante dessa contradição, a que se deveria a onda conservadora que muitos anunciam?

 

Gustavo Dellatorre: Acredito que o PT seja de fato da conciliação. Uma esquerda muito mais próxima à socialdemocracia europeia ou ao eurocomunismo, ou seja, uma linha de tentar emblocar uma série de antagonismos, através de acordos. Nesses acordos entrega-se algo ao aliado em troca de que ele devolva alguma coisa a seu favor.

 

Na visão de quem faz uma esquerda mais combativa, a política do PT de agir como bombeiro da luta de classes acabou fazendo os movimentos sociais despencarem. O MST, historicamente de luta, acaba sendo muito mais burocrático e institucional. O PT deixou de ser combativo e virou uma espécie de comitê de relações de gestão do capital e seus operadores.

 

O partido não conseguiu dar um salto de qualidade, ficou parado no estágio da conciliação, sem exercer de fato alguma política mais contestatória, pra não dizer que rompeu com velhas tradições. Não à toa acusa-se o PT do mesmo que já se acusou os outros governos. O partido deu continuidade.

 

Correio da Cidadania: Como vocês enxergam o atual momento político e institucional brasileiro e como acreditam que o afastamento de Eduardo Cunha pelo STF possa incidir nisso?

 

Gustavo Dellatorre: Eu lembro de um ditado popular que vi ser mencionado pela primeira vez nos EUA, em NY, sobre as brigas de gangue: “é cachorro comendo cachorro”. É mais ou menos isso. Claro que minha posição é totalmente contrária ao Eduardo Cunha e vejo como vitória seu afastamento. Tudo que fez e representa deve ser execrado.

 

De toda forma, me preocupa muito mais pensar como permaneceu tanto tempo no seu cargo do que a medida que agora me parece muito mais paliativa, quase um analgésico diante de tudo que está aí. É uma vitória, um basta, mas me preocupa tudo o que conseguiu fazer, a exemplo do que se viu nos discursos proferidos na votação do processo de impeachment, com deputados evangélicos a citar Olavo de Carvalho, um outro que dedicou voto à memória de torturador, cujo filho exaltou a memória da ditadura... É como se o Cunha fosse a representação de tudo isso, mas ao mesmo tempo só a ponta do iceberg de toda a estrutura fascista e conservadora que domina nossa política.

 

A queda dele representa uma espécie de diálogo com a ideia de ainda ser possível, sim, fazer luta institucional. Mas ela precisa ser pressionada e abarcar as movimentações que vêm da rua, o que realmente incomoda o poder e os poderosos. Achar que Eduardo Cunha ser afastado por tribunal significa uma vitória é equívoco. Na verdade, é tanta coisa bizarra que ele mesmo foi engolido pela disputa de poder.

 

Correio da Cidadania: Como enxerga esse momento de esfacelamento geral após a euforia dos anos de bonança econômica e toda sorte de festejos a respeito dos governos petistas? O que cabe aos grupos e ativistas de esquerda fazer neste momento?


Gustavo Dellatorre: Uma das lições que tiramos da marcha é a noção de que está todo mundo no mesmo clima. A adesão foi muito maior do que esperávamos. Embora alguma mídia tenha falado em 500 pessoas, temos claro que tinha mais de 2000. Até mais em alguns momentos, talvez. É mais do que o normal pra esse tipo de manifestação, que não foi puxada por nenhuma central sindical ou partido político, e sim por indivíduos de movimentos sociais autônomos.

 

Outra lição é que não tivemos praticamente nenhum apoio dos partidos políticos legalizados de esquerda. Mesmo aqueles que consideramos combativos não deram apoio institucional. No máximo, alguns camaradas que têm contato com nossa área de influência, de forma pessoal. Alguns dizem que proibimos uso de bandeiras partidárias, mas fizemos isso pra dar um caráter de frente de massas, não de palanque eleitoral. Estávamos lá tendo o antifascismo como um mote comum a todos, independentemente dos rótulos de cada um, de esquerda marxista, leninista, trotskista, anarquista, o que quer seja. Queríamos englobar todos contra o fascismo, acima de tudo.

 

Não consideramos que esse abandono até da esquerda combativa se deu por má intenção. Partimos do princípio de que ela não entende tanto, não há no Brasil uma cultura antifascista. Poderíamos perder uma tarde toda falando sobre isso, são vários motivos. O Brasil tem uma cultura muito mais sindical, até dentro dos movimentos mais radicalizados, e falta o lado contracultural, por assim dizer, do antifascismo, protagonizado por gente do movimento punk, hip hop etc.

 

Agora, com a mudança de governo e cenário do país precisamos criar diálogo com toda a esquerda, colocar a importância do antifascismo, independentemente da orientação política de cada grupo, e fazer um bloco puramente antifascista. A tal onda conservadora já chegou e precisamos saber lidar com ela.

 

Correio da Cidadania: E como imagina a volta à oposição do PT e suas fileiras de movimentos e sindicatos, que passaram anos em processo de apassivamento, inclusive acusados de promoverem o adormecimento das lutas de classes? Como imagina o convívio com a esquerda que viveu os últimos anos fora do governismo?


Gustavo Dellatorre: Nunca se volta igual. O PT saturou. É óbvio que como oposição se pode esperar alguma coisa a mais. Pessoalmente falando, fico desacreditado, porque o partido se burocratizou tanto que aquilo que havia de mais combativo me soa muito mais nostálgico do que qualquer coisa.

 

Não consigo ver uma recuperação tão imediata, diante de todas as contradições que gerou em si. O salto de qualidade necessário teria de se apoiar numa mudança drástica interna no próprio partido, que não sei se pelas posições políticas ou certo conforto ideológico seria feita.

 

Mas os antifascistas devem entender como um momento histórico, que pode ser favorável a uma abertura de discussão e maior apoio de quem pode contribuir de maneira muito mais logística, inclusive com apoio material, como carros de som e locais de reunião, do que com apoio ideológico e na luta em si. São questões de estratégia, de entender como será o movimento.

 

De qualquer maneira, não dá pra ficarmos a prever o futuro. Baseados no passado recente, não se pode esperar muito do PT na oposição. O que não podemos, tampouco, é cair no discurso da esquerda partidária mais radical – que, como disse, não aderiu tanto ao discurso antifascista – de usar o discurso mais sectário e não conseguir dialogar com as mudanças que se colocam.

 

É preciso ter calma pra ver como tudo será articulado, porque até agora tudo foi feito na base de pactos. Uma vez que o sistema atingiu um de seus pontos fracos, o Cunha, e aparentemente tem condições de mais adiante atingir o Temer, pode transformar mais uma esperança de guinada à esquerda em oportunidade de novos acordos. Portanto, precisamos continuar atentos e fazer bons balanços da conjuntura atual.

 

Áudio da entrevista

 

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Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

Comentários   

0 #1 RE: “O Brasil não tem cultura antifascista”Fernando Sgreccia 23-06-2016 10:56
O Brasil nem sabe o que é fascismo!
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