Correio da Cidadania

Vazio de Nós

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Os dilemas políticos e morais apresentam-se de forma acentuada na sociedade, nos dias atuais. Desde 2013, quando os primeiros levantes populares se espalharam pelo país, a repressão, não menos feroz que as revoltas antissistêmicas, segue sob o signo da crueldade sistemática.

 

Primeiro a polícia prendeu pessoas que portavam vinagre. Depois passou a prender pessoas que vestiam roupas pretas. Em seguida, o governo do Estado do Rio de Janeiro e o Governo Federal, sob a égide petista, criaram a CEIV (Comissão Estadual de Investigação de Atos de Vandalismo) através de uma articulação que previa a cooperação entre políticas estaduais, as Forças Armadas e a Força Nacional com o intuito de investigar os protestos. A repressão foi evoluindo com a prisão de pessoas suspeitas de serem “manifestantes”.  E não parou por aí, inclusive Bakhunin, filósofo russo morto em 1876, foi indiciado como líder dos Black Blocs pela Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática.

 

Eu, advogada-ativista, com atuação na defesa de manifestantes durante as Jornadas de Junho, tive as minhas conversas interceptadas com ordem judicial, com grampo renovado por duas vezes. Durante três meses tive o meu sigilo telemático totalmente quebrado, sem nenhum fundamento plausível, já que nem indiciada eu cheguei a ser no inquérito pelo qual fui grampeada.

 

A maioria das conversas foi classificada como altamente relevantes. Os conteúdos variavam desde o atraso do pagamento de mensalidade do PROMAD (Programa Nacional de Modernização da Advocacia) até os diálogos comemorativos em desfavor da seleção brasileira durante a Copa do Mundo. Além disso, todas as conversas com clientes, protegidas por sigilo profissional, conversas privadas, brincadeiras do dia a dia com amigos, enfim, tudo foi classificado como altamente relevante no inquérito policial.

 

A situação passou a ser tão surreal que a polícia resolveu prender as pessoas que participavam das manifestações por “fato atípico” (!?), com cópia e documentos registrados na delegacia, ou seja, pessoas eram presas por não estarem cometendo crimes sob ato administrativo denominado Medida Assecuratória de Direito Futuro. Advogados que usaram, em dias de protesto, a tomada de energia da delegacia para carregar o celular foram ameaçados de indiciamento por furto de energia. Logo veio o lendário caso da prisão por porte de coco de um jovem que, durante a Copa do mundo, andava pelo calçadão de Copacabana com camisa preta. Esse é o direito encontrado na porta do inferno, já que o uso político do direito penal é apenas instrumento de poder para intimidação.

 

Quando fui grampeada pelos governos Cabral e Dilma (com comando direto do então ministro José Eduardo Cardozo) tive minha vida exposta, minha intimidade e meus áudios divulgados nos principais jornais do país. Embora eu não tenha sido identificada na TV, os autos do processo - que deveriam ser sigilosos – foram liberados para cópia de toda imprensa e por curiosos. Quase tive minha prisão decretada de forma arbitrária por exercer a minha profissão de advogada na área de direitos humanos. Vi amigos sendo presos de forma arbitrária, expostos a todo tipo de violência do Estado. Para eles a violência da repressão de Cabral e Dilma destruiu suas vidas, atingiu a dignidade de cada um.

 

Direito, mas também democracia

 

Neste momento, em que vejo os responsáveis por esse terror de Estado serem presos e humilhados, não ouso apontar nenhuma ilegalidade ou anunciar o fim do Estado de Direito. Ao contrário, os acontecimentos parecem confirmar plenamente uma plataforma política que concentra seu foco sobre a violência entre civis e na recusa de formular críticas sobre a brutalidade sistêmica do restabelecimento da ordem. Portanto, aqueles que bradam o estado de exceção a partir do show midiático das prisões da Lava-Jato perdem de vista o elemento forte: a descontinuidade, ou melhor, a ruptura efetiva com a aplicação das garantias fundamentais para que possamos dizer que vivemos uma situação fora da normalidade.

 

Para ser mais exata, se vamos considerar as guerras travadas entre o Estado e a população pobre, através de confrontos diários para restabelecer as “forças da ordem”, não conseguiremos encontrar nada além de agressões descaradas com ambição de governar pela violência e pela repressão.

 

Ao longo do meu exercício profissional na área de direitos humanos, aprendi que o jogo jurídico/político funciona desta forma: paralelamente à violência e repressão do Estado, encontramos a revolta daqueles que sofrem física e moralmente e, claro, indignam-se.

Essas são as ferramentas que os governantes – que exercem o poder sobre a vida e a morte – usam para tentar nos calar. Os mesmos governantes que se gabam das infâmias das quais são protagonistas têm poder suficiente para manipular os mecanismos do direito e criminalizar e desqualificar a luta de quem vê na revolta o seu único meio de alcançar as promessas do Estado de Direito e da democracia.

 

Ao me deparar com a prisão de poderosos administradores dos consórcios mafiosos – que até pouco tempo pareciam estar acima de qualquer responsabilidade das políticas de segurança implementadas – vejo que o compromisso com a crítica, a priori ao direito penal, não é menos violento que aqueles que usam rigidamente o sistema penal para aplicar uma medida espetaculosa.

 

De fato, entre a violência e a violação da lei vamos encontrar um dilema moral, cuja fúria generalizada se concentra, exatamente, na capacidade de buscar entender o estado afetivo de cada sujeito que sofre, como cada um é afetado, sobretudo quando o remédio é mais doloroso do que a doença.

 

Responsabilizar os governantes, criar expectativas em torno do processo é uma consequência tão justificável quanto continuar acreditando no direito penal simbólico, a partir do qual nossas referências sobre uma conduta boa ou má se formam. Ver aqueles que comandavam diretamente os dramas sociais intoleráveis não conseguirem triunfar e que tais dramas se voltaram contra eles me parece muito justo.

 

Garantismo em cima, genocídio embaixo

 

Há quem interprete o que escrevo em tom vingativo, há os que me consideram vítima. Estão equivocados. Não sou vítima e não é pelo meu sofrimento pessoal que escrevo, tampouco por vingança pessoal. Vingança seria se eu tivesse o prazer de fazer com minhas próprias mãos o que meu lado humano mais perverso já desejou em momentos de raiva. Não é este o caso.

 

Equivocam-se os que pensam que sinto prazer com o sofrimento desses protótipos de déspotas. Tampouco se trata de sadismo. Trato, sim, da decorrência lógica do modo característico de governar: a gestão da pobreza e dos dramas humanos pela violência.

 

É facilmente compreensível (e respeito esta posição) que os garantistas ou abolicionistas queiram preservar a pureza e a coerência não violenta da pena em si. Contudo, há um dilema fundamental a se considerar quanto à expansão da violência pela força das armas do Estado: a relação entre direito, processo e democracia. Esse dilema seria moral? Talvez seja. Mas é real.

 

Se for verdade que o Estado de Direito deve expressar uma realidade processual justa e, ainda, se o processo é um instrumento político com o qual é possível medir o nível de democratização da sociedade, chegamos a uma questão fundamental: o processo é nada mais que a expressão da prática democrática.

 

Todos os dias negros e pobres são assassinados em uma guerra que não é considerada como tal pelos juristas, e muito menos encontra lugar de reconhecimento no processo penal, embora o estado de guerra referencie o tipo de Estado de Direito estabelecido. Quero dizer que, na prática, os juristas não consideram no processo que o grau alarmante de violência do Estado é, de fato, uma guerra (o fazem somente de forma retórica). Os juristas tendem a reduzir as desconexões do Estado de Direito a um mero confronto entre crime comum e forças da ordem, ou seja, uma questão de legalidade sem qualquer análise estratégica que o político possa estabelecer entre uma relação geral e uma relação particular, isto é, nessa relação entre direito, processo e democracia.

 

Daí a necessidade de se demarcar aquilo que não é redutível quando se trata de democracia material, aquilo que vai transformar a guerra em uma modalidade sanguinária de segurança para a pacificação da sociedade.

 

Tempos contraditórios

 

Contraditória em si mesma é a crítica à violência vinda dos movimentos garantistas e abolicionistas que se inspiram nesse ideal de “não punitivismo” considerando a aplicação do exercício da forma existente injusta, quando se trata dos que agem como proprietários do Estado, ao mesmo tempo em que o impulso expansionista do Estado penal se demonstra, mais do que nunca, irrefreável.

 

Não se usa o sistema dessa forma tão vil para reinar absoluto em desmandos e apropriação da coisa pública à custa dos direitos sociais e direitos fundamentais. Chegamos, portanto, a esta máquina estatal desenfreada, restando não um sistema de justiça, mas afetos políticos decorrentes de vidas destroçadas enquanto governantes acham que podem fazer o que quiser com as instituições do Estado. E, num momento desses, quem não for incoerente com a técnica jurídica e a ação política é porque talvez tenha perdido a capacidade de se indignar.

 

Quando uma pessoa negra morre na comunidade, a família deve provar que ele não era traficante, logo, que não mereceu morrer. Quando uma mulher é estuprada, a vítima também deve provar que não teve comportamento sexual desviante, logo, que não merecia ser estuprada. Esse dilema da crise do modelo de Estado de Direito refletido no sistema processual é sempre uma decorrência de um Estado de Direito hierarquicamente definido pelas posições políticas e ideológicas da ordem.

 

A monstruosidade não é, portanto, o homicídio do negro na comunidade ou o estupro da mulher sexualmente livre. Monstruoso é mesmo o desvio das leis do domínio, quem rompe com a censura, com o silêncio, com a resignação e se declara livre. O corpo livre do negro, o corpo livre da mulher é que são monstruosos.

 

O monstro é alguém que deve ser corrigido, que deve ser regular na sua irregularidade, demonstrando sua doçura, seu silêncio, sua resignação para ser considerado respeitável. Dessa forma, o monstro questiona, problematiza o poder com o seu comportamento. Aos monstros a cadeia, o hospício, a morte, os corretivos, os estupros, a humilhação. Aos normais a legalidade estrita, a proteção constitucional e o processo justo. Sim, toda indignação é monstruosa neste sentido.

 

Choca-me quando os juristas que se dizem a favor da democracia não incluem uma análise verdadeiramente crítica sobre direitos fundamentais em sua dimensão material. Não basta apenas lutar contra o Estado Penal máximo sem incluir uma análise rígida sobre práticas comuns arbitrárias no interior do próprio sistema político. Haverá sempre um descompasso entre forma e substância, levantando uma dialética perigosa entre um garantismo de referência puramente transcendental e um antigarantismo populista.

 

O vazio de nós está nas referências afetivas que cada um guarda sobre a temática humanista inconsistente, que se polariza entre o universal versus particular e local. Muito além do binarismo de ser contra ou a favor do humanismo abstrato, há uma inversão analítica no fato de as subjetividades serem reduzidas a uma estrutura formal pelo garantismo e, por outro lado, moralizar e individualizar a estrutura pelo populismo antigarantista.

 

Fato é que o sistema penal está implodindo, sobrecarregado de justificativas legais para o fortalecimento de poderes arbitrários. O Estado mata antes mesmo do processo penal, não se submete ao procedimento, não há sequer o simbólico sistema penal que limite os poderes da segurança como braço armado de governantes que se apropriam das instituições do Estado com interesse privado. O que se espera é que a dogmática jurídica não se transforme em movimento político de recomposição da mesma ordem. Que ela se limite ao processo, hoje, parece ser o seu papel mais honesto.

 

O vazio de nós aparece quando nos instam a ser críticos e a recusar imediatamente uma visão sensível de indignação diante dos dramas humanos causados pelos crimes cometidos em nome da retórica da democracia formal.

 

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Priscila Pedrosa Prisco é advogada, mestre em ciências jurídicas e sociais pela UFF e ativista da Rede Universidade Nômade.

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