Correio da Cidadania

Chuvas e mortes pelo Brasil: “sem reformas agrária e urbana, tragédias irão se repetir cada vez mais”

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Bombeiros, moradores e voluntários trabalham no local do deslizamento no Morro da Oficina, após a chuva que castigou Petrópolis, na região serrana fluminense
Foto: Tânia Rego / Agência Brasil

Mais uma vez, o verão é marcado por uma forte temporada de chuvas, que produziram desastres sociais e grande quantidade de mortes em diversos estados do país. O último episódio é Petrópolis, que já havia passado por uma devastadora tempestade em 2011 e agora se depara com cerca de 200 mortes após dias de chuvas torrenciais, deslizamentos de terra e enchentes. E, tal como em 2011, o Correio da Cidadania entrevista o geógrafo Paulo Alentejano, que comenta as razões estruturais para a repetição, que tende a aumentar, de tais eventos.

“Trata-se dos resultados da mudança do Código Florestal, das propostas de flexibilizacão de licenciamento ambiental, das tentativas de se reduzir a área de preservação na Amazônia... Tudo isso só vai agravar a ocorrência de desastres ambientais. São fatos decorrentes da atuação criminosa do capital em parceria com o Estado, que cria todas as condições para isso”.

Em sua visão, o debate público ignora tais questões, o que perpassa a atuação de todos os governos nos últimos anos, de todas as esferas, inclusive aqueles ditos progressistas. A ilusão de crescimento via commodities sustentou um modelo econômico que gera e reforça as condições para os repetitivos desastres ambientais. E é este modelo que precisa mudar.

“O quadro geral só muda quando vierem reformas agrária e urbana radicais, combinadas, que distribuam população, terra, renda e riqueza pelo território brasileiro. A prioridade de todas as forças sociais, democráticas e populares precisa ser derrotar o atual governo. No entanto, é importante que a plataforma política vá além de meramente derrotá-lo”.

A entrevista completa pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Em 2011, uma forte sequência de chuva na região serrana do Rio matou, oficialmente, mais de 800 pessoas. Na entrevista que fizemos, você fez diversos alertas sobre questões imobiliárias, rurais e ambientais, que explicavam o alcance do desastre. Como você vê o fenômeno se repetir em 2022, com quase 200 mortos até aqui?

Paulo Alentejano: Em 2011, a área atingida era muito mais intensa, passando por outras cidades serranas, Nova Friburgo etc. Dessa vez foi localizado em Petrópolis. Mas o que se repete é o cenário de regiões serranas com alta densidade de construções em áreas desprotegidas, encostas instáveis, onde a população de baixa renda se concentra e não há uma política habitacional que permite à população viver em áreas mais estáveis, longe de morros e encostas íngremes. Isso explica a tendência da repetição do acontecimento.

Dessa vez a chuva foi muito forte, mas em todos os anos morrem 5, 10 pessoas em chuvas mais “fracas”. É incessante, a exemplo de São Paulo, Minas Gerais e Bahia nestes últimos meses, dentro de uma lógica semelhante. Estamos numa época de fenômenos climáticos mais intensos, que se combina com um processo de ocupação das áreas urbanas marcado pela destinação de áreas precárias à população de baixa renda, em condições extremamente perigosas.

O cenário geral se mantém como em 2011 e é fruto da expulsão de pessoas do campo em escala acelerada e a combinação aqui descrita, o que aumenta a cada dia a quantidade de acontecimentos como o de Petrópolis.

Correio da Cidadania: Como dito, tivemos chuvas e grande quantidade de mortes em outros estados entre dezembro e janeiro, além do evidente aumento da frequência de fenômenos do tipo. Como encarar a essa altura o discurso oficial de “chuvas excepcionais”, “imprevistas” etc.?

Paulo Alentejano: Se olharmos, todo ano ocorrem várias mortes por deslizamentos e enchentes, em vários estados brasileiros. Neste momento ocorreu uma concentração muito grande do fenômeno em um espaço limitado, com uma quantidade maior de deslizamentos e muita enchente. Mas todo ano acontece, em São Paulo, Rio, Santa Catarina, Espírito Santo, Bahia, como se pode verificar com uma pesquisa simples.

Trata-se do nosso padrão de ocupação urbana, que coloca grandes parcelas da população em encostas muito íngremes, em áreas de fundo de vale, para onde deslizam encostas ou sobem os rios.

É o resultado da expulsão da população do campo, da ausência de uma reforma agrária que distribua melhor a terra no Brasil e uma lógica de organização das cidades que também é excludente e coloca os pobres nessas áreas, de vales e baixadas, que têm bastante adensamento e carecem da devida cobertura de áreas de preservação ambiental. Tais áreas de preservação deveriam ser mais fartas, mas não existem, o que também se relaciona com as enchentes.

A novidade pós-2011 são as mudanças do Código Florestal, que reduziram a área de proteção ambiental e contribuem para o agravamento da situação.

Correio da Cidadania: Neste sentido, falamos de um período em que o Brasil contou com distintos perfis de governos, tanto na esfera federal como estadual e municipal. E todos de alguma maneira contribuíram para o relaxamento das normas ambientais, mesmo diante de severas críticas de setores especializados.

Paulo Alentejano: As mudanças da legislação dificultam um controle melhor sobre chuvas, deslizamentos, áreas de escoamento, de agricultura, enfim, a chamada “flexibilização de leis ambientais” torna todas essas áreas mais vulneráveis. A tendência é que aconteça cada vez mais coisas do tipo. Trata-se dos resultados da mudança do Código Florestal, das propostas de flexibilizacão de licenciamento ambiental, das tentativas de se reduzir a área de preservação na Amazônia... Tudo isso só vai agravar a ocorrência de desastres ambientais. São fatos decorrentes da atuação criminosa do capital em parceria com o Estado, que cria todas as condições para isso.

Correio da Cidadania: Em 2011 vivíamos um período de euforia econômica, com fartos investimentos estatais, em especial no Rio de Janeiro, que seria o epicentro dos megaeventos esportivos e concedeu altíssimos subsídios aos empresários. Havia mais dinheiro do petróleo também e o Estado era mais atuante em políticas públicas. Agora estamos sob alegações de que o Estado não tem dinheiro e o dogma liberal de que sequer deve participar do processo econômico, enquanto incentiva abertamente os avanços sobre áreas inexploradas pelo capital. O futuro é ainda mais sombrio?

Paulo Alentejano: Primeiro: o Estado brasileiro sempre tem dinheiro para pagar suas dívidas com banqueiros, financistas, assim como sempre tem dinheiro para financiar o agronegócio. Ali nunca tem crise ou faltam recursos, pois como sabemos o teto de gastos é para questões sociais, como saúde, educação, previdência, meio ambiente, prevenção de acidentes – temos uma defesa civil totalmente desarticulada. De fato, a tendência é o Estado ativamente agravar as condições para os desastres ambientais.

Sobre o período anterior, vivemos uma ilusão do ciclo de alta das commodities, com aumento do preço de itens que o Brasil exporta, como ferro, soja etc., o que criou a ilusão de se manter uma dinâmica de crescimento econômico a partir de tal modelo. Esse modelo é altamente concentrador de renda e altamente destrutivo do meio ambiente. É isso que mostram Mariana e Brumadinho, que não foram eventos climáticos, mas resultado da ganância das empresas, que simplesmente negligenciaram os cuidados com as barragens.

Portanto, a lógica do ciclo das commodities gerou ilusões que não se sustentam. E sem as reformas estruturais que o país precisa, em especial a agrária e urbana, tais tragédias irão se repetir mais e mais.

Em qualquer grande cidade no Brasil vemos áreas e estruturas enormes entregues à especulação, uma quantidade gigantesca de imóveis vazios por conta de uma lógica especulativa. E o poder público não faz nada. Não tem taxação progressiva de IPTU sobre áreas, terrenos e imóveis vazios e as cidades vão crescendo com o controle do capital sobre áreas que lhes interessa, enquanto as pessoas precisam se virar com as sobras, na base da autoconstrução, ocupando as áreas que não interessam ao grande capital. Por isso desaba tudo de tempo em tempo.

Falta uma reforma agrária para espalhar uma parte da população em áreas não tão vulneráveis, com produção própria de alimentos, outro tema que também segue a lógica especulativa do agronegócio e se agravou na pandemia. O quadro geral só muda quando vierem reformas agrária e urbana radicais, combinadas, que distribuam população, terra, renda e riqueza pelo território brasileiro.

Sem isso, veremos a repetição da tragédia em todos os anos, menos ou mais intensos, em locais variados. Mas sempre se repetirá.

Correio da Cidadania: Não parece que tal debate esteja completamente ausente no país, inclusive em setores opositores ao bolsonarismo e da própria esquerda?

Paulo Alentejano: Sobre eleições, a prioridade precisa ser a derrota deste governo de tendências neofascistas, um governo genocida que produziu negacionismo e campanhas antivacina, atitudes que mataram tanta gente. A prioridade de todas as forças sociais, democráticas e populares precisa ser derrotar o atual governo.

No entanto, é importante que a plataforma política vá além de meramente derrotá-lo. Precisa colocar reformas estruturais que gerem melhores condições de vida para o povo brasileiro. Infelizmente, tais questões não têm sido pautadas da forma que merecem. Espero que o debate evolua para tal direção.

Além do combate ao neofascismo, que é essencial, é preciso avançar no debate das reformas estruturais das quais o país necessita, que também são essenciais para se romper com o ciclo de miséria e desigualdade que vivemos historicamente, coisas que, infelizmente, no período dos governos progressistas, foram negligenciadas.

Pra finalizar a entrevista, que apenas trouxe agravantes do que falamos em 2011, acho importante chamar atenção para a solidariedade. Assim como na pandemia, quando vários movimentos sociais se uniram para levar alimentos à população de baixa renda, com esforços enormes neste sentido, louvo agora a iniciativa de movimentos que estão em Petrópolis, como os agricultores e trabalhadores, e fazem esforços coletivos como cozinha comunitária e um trabalho importantíssimo que vai além da mera caridade.

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31/01/2011:

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Gabriel Brito é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

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