Os 50 anos do Comício da Central
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- Paulo Passarinho
- 14/03/2014
Há 50 anos realizava-se o famoso comício da Central do Brasil. O presidente da República, João Belchior Goulart, procurava naquele momento impulsionar um conjunto de reformas econômicas e sociais que poderiam vir a conferir uma nova qualidade ao nosso processo de desenvolvimento.
O objetivo dessas reformas de base – conforme eram chamadas e ficaram registradas para a história – seria dotar o chamado modelo desenvolvimentista, em curso no Brasil, de uma base de expansão apoiada no fortalecimento das estruturas domésticas do capitalismo brasileiro, incluindo a criação de melhores condições à geração de renda interna, especialmente aos trabalhadores. Envolviam mudanças importantes nas políticas e nas estruturas vigentes nas esferas agrária, educacional, tributária, fiscal, administrativa e urbana do país, além de uma nova regulação e controle sobre as remessas de lucros das multinacionais às suas matrizes. Na esfera da representação política, incluía também a ampliação do voto aos analfabetos e militares de baixa patente, além da legalização do Partido Comunista, então vivendo uma semiclandestinidade.
Desde meados de 1962, o governo de Goulart procurava responder aos impasses políticos e econômicos do seu governo, aprofundando uma pauta de caráter nacionalista. O dito desenvolvimentismo brasileiro, que havia tido início a partir da chamada Revolução de 1930 – a rigor, uma mudança promovida por setores descontentes das próprias oligarquias, a partir da crise econômica mundial de 1929 -, sempre guardou enormes ambiguidades, caso o comparemos com as experiências clássicas do nacional-desenvolvimentismo.
As experiências clássicas do nacional-desenvolvimentismo, implementadas por países de desenvolvimento retardatário no centro do capitalismo, como foram os casos dos Estados Unidos e da Alemanha, sempre procuraram fortalecer uma estratégia pautada por metas de acelerada industrialização substitutiva de importações, com forte intervencionismo e apoio estatal e tendo como objetivo maior a constituição de uma forte base produtiva, sob controle de capitais nacionais.
A experiência desenvolvimentista brasileira (1930/1980), em que pese ter logrado êxito no processo substitutivo de importações, sempre conviveu e se apoiou na forte participação do capital estrangeiro, seja através do investimento direto de filiais de empresas estrangeiras no país ou de significativas operações de financiamentos e empréstimos de bancos privados e instituições multilaterais.
Essa singularidade e hibridismo do nosso desenvolvimentismo fizeram com que – especialmente ao longo dos anos cinquenta e início dos anos sessenta – uma encarniçada luta política no seio das forças políticas do país ganhasse corpo. Nas batalhas para a criação da Petrobrás; na definição do papel a ser desempenhado pelo BNDE – atual BNDES; na definição dos limites de atuação e controles sobre as multinacionais; na exigência da realização de uma ampla reforma agrária – buscando o fortalecimento de bases sólidas para o mercado interno; no papel a ser atribuído às empresas estatais e ao planejamento estatal; ou no melhor caminho a ser trilhado para a estruturação financeira interna aos investimentos sempre houve o choque entre correntes que se colocavam a favor do que podemos chamar de um desenvolvimentismo nacionalista e as defensoras de um desenvolvimentismo associado ao capital estrangeiro.
Dessa forma, essas diferentes concepções de desenvolvimento e de industrialização do país desdobravam-se em visões políticas e ideológicas muito distintas, inclusive com a contaminação inevitável de um mundo dividido pela chamada Guerra Fria.
O mês de março de 1964 representou o ápice desta disputa. O presidente Jango – conforme, carinhosamente, era conhecido – avançou com a sua pauta reformista e nacionalista, com forte apoio entre os sindicatos, partidos de esquerda, setores empresariais e a própria população. Pesquisas do Instituto IBOPE, à época, atestam que as reformas de base contavam com majoritário apoio popular. O Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, procurava potencializar esse apoio, com o claro objetivo de impulsionar a aprovação de várias mudanças legais por um Congresso dividido, mas sempre sensível às pressões das ruas.
Contudo, as forças contrárias ao movimento de reformas eram extremamente diligentes e com muito apoio – inclusive financeiro – de setores empresariais e, especialmente, do governo dos Estados Unidos. Desde o final da Segunda Grande Guerra, onde muitos oficiais brasileiros estreitaram as suas relações com militares norte-americanos, a influência da superpotência estrangeira sobre setores de nossas Forças Armadas era notória, sem falar nos círculos empresariais, representados na Confederação Nacional do Comércio, na Associação Comercial de S. Paulo, na Comissão Mista Brasil-Estados Unidos e em setores do próprio BNDE.
Particularmente, houve um intenso trabalho desenvolvido pela embaixada dos Estados Unidos, a partir do início dos anos sessenta e especialmente quando se consumou a renúncia de Jânio Quadros e Jango, como vice-presidente, chegou à presidência da República. Trabalho que envolveu recursos financeiros para influenciar o processo eleitoral, constituir uma retaguarda intelectual a partir de centros de estudos e apoios na grande imprensa, além de estimular e procurar incentivar a tentação golpista militar.
Todos esses fatos são importantes de serem lembrados, em um momento em que voltamos a viver uma grave crise política e econômica. Nesses cinquenta anos passados, o mundo mudou, o Brasil é outro, mas os problemas decorrentes da opção que acabou vitoriosa em 1964, através do golpe civil-militar, com explícito apoio de uma potência militar estrangeira, estão, mais do que nunca, presentes.
Vivemos, hoje, o apogeu da hegemonia do capital financeiro e com o Estado brasileiro fragilizado, em função de sua total captura pelos interesses de grandes grupos privados. Entretanto, as fissuras do atual esquema de dominação estão expostas.
Recuperar a dimensão e importância de um projeto estratégico para o Brasil, combinando soberania nacional e a prevalência dos interesses populares na definição de nossas prioridades de desenvolvimento, é urgente. E, neste contexto, recuperar a nossa história e dela tirar lições é fundamental.
Paulo Passarinho é economista