‘Mais Direito Penal tem representado mais criminalidade’
- Detalhes
- Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
- 20/09/2012
Em meio aos intensos e polêmicos acontecimentos em torno do mensalão, das próximas eleições municipais e até mesmo do Código Florestal, a reforma do Código Penal em andamento no Congresso não tem encontrado espaço à altura de sua importância na mídia. Como resultado, um código que permeia todas estas discussões, e tantas outras estruturantes de nossa sociedade, poderá ser agora modificado de forma pouco transparente, diante da sua escassa visibilidade. E mais grave ainda que a falta de transparência, poderão decorrer graves retrocessos na reestruturação da Legislação Penal.
Para comentar o assunto, o Correio entrevistou o Juiz de Direito Marcelo Semer, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. As suas apreciações não deixam dúvidas quanto à tradicional utilização do aparato jurídico em prol das classes mais poderosas. Não bastasse o fato de a própria lógica intrínseca do Direito Penal atuar em reforço da criminalidade, a atual reforma do Código Penal deverá intensificar esta regra, com a maior criminalização dos movimentos sociais e seletividade na utilização do aparato legislativo. “O problema de hoje no direito penal, e no sistema penal como um todo, é a seletividade, não a impunidade. As celas estão cada vez mais superlotadas, mas o pluralismo dentro delas continua exíguo. Isso é uma combinação da seletividade do direito (como a supervalorização da tutela da propriedade e do encarceramento dos entorpecentes), da fiscalização (prioridades da polícia) e dos instrumentos de defesa (desproporcionalmente distribuídos)”, avalia Semer.
Quanto à descriminalização do porte de pequenas quantidades de drogas, um dos aspectos que têm tido maior visibilidade neste debate, Semer não está tão otimista. Acredita que a atual lei já reduziu bastante as penas do porte para uso e, mesmo assim, as cadeias seguem lotadas. “Acho que era preciso ser mais profundo na atenuação de pena do micro-traficante (que muitas vezes trafica para sustentar seu vício), pois é ele que está superlotando as cadeias sem nenhum reflexo na diminuição do comércio”, ressalta o juiz.
Fato é que o sensacionalismo em torno à ideia da impunidade e o forte apelo da noção do ‘poder punitivo’, que encontram acolhida fácil no grande público e vendem bastante jornal, têm sido até o momento o grande vencedor nas discussões e conceitos em torno ao novo Código Penal. Resulta novamente o entendimento rasteiro em torno aos grandes temas nacionais. Perde o Direito Penal e, mais ainda, a sociedade, à mercê das manipulações grosseiras, autoritárias e populistas, enquanto imagina estar a defender seus direitos e interesses.
Leia a seguir entrevista exclusiva.
Correio da Cidadania: O que você pensa, de forma geral, das atuais discussões quanto à alteração do Código Penal (CP)?
Marcelo Semer: O maior problema de hoje no direito penal, e no sistema penal como um todo, é a seletividade, não a impunidade. As celas estão cada vez mais superlotadas, mas o pluralismo dentro delas continua exíguo. Isso é uma combinação da seletividade do direito (como a supervalorização da tutela da propriedade e do encarceramento dos entorpecentes), da fiscalização (prioridades da polícia) e dos instrumentos de defesa (desproporcionalmente distribuídos). Mudar um Código Penal sem pensar em mudar tal quadro é apenas fazer uma “atualização” – esse é o problema central.
Nos últimos anos, o encarceramento pelo tráfico de entorpecentes dobrou proporcionalmente em relação a outros tipos penais, desde a edição de uma lei que se presumia mais liberal. O que fazer, então? O projeto mantém a lei, incorporando-a ao Código Penal, praticamente inalterada. Existem, é verdade, alguns avanços, como uma diminuição de penas em certos crimes contra a propriedade, mas, de outro lado, um recrudescimento da execução penal tendente a aumentar fortemente a carcerização.
Uma no cravo, outras na ferradura.
O problema é que a comissão continua acreditando em demasia no direito penal e em seu valor simbólico e a expectativa de um direito penal eficaz – que pode “reduzir a criminalidade”. Nesse ponto, mantém um direito penal gigante e promete algo que certamente não vai entregar. Mas há absurdos como a tipificação tão ampla e genérica do terrorismo, que vai fortalecer, enormemente, a criminalização dos movimentos sociais. Sem contar o esvaziamento do processo como garantia, com a criação do instituto da barganha – que vem de outro direito com o qual o nosso não mantém similaridade.
Correio da Cidadania: Acredita que seja realmente importante e oportuna, neste momento, uma reforma no código em questão?
Marcelo Semer: Penso que o essencial é compreender os limites do direito penal e também o seu fator criminógeno – a multiplicidade das reincidências. Mais direito penal tem representado historicamente mais criminalidade, e não o inverso. A Lei dos Crimes Hediondos deu um exemplo primoroso. O crime aumentou e, de quebra, criamos um enorme problema com o encarceramento feminino e a estruturação de facções criminosas. Apagamos fogo com querosene. Vale a pena reformar o Código Penal se for para inverter essa lógica. Em caso contrário, não tem muita valia. Uma ou outra coisa de fato melhora, mas, de outro lado, com a reforma, incorporamos dentro do Código toda a legislação de emergência, tornando ainda mais difícil de revogá-la posteriormente. E a expansão do direito penal tem algo de perverso, pois acostuma a sociedade a um gradativo caminho para o autoritarismo.
Correio da Cidadania: Pensando em alguns dos temas mais específicos relativos ao novo código, a Lei de Execução Penal foi atualizada em 2011. Que relação pode ser feita entre esta atualização e o novo CP?
Marcelo Semer: Na área de execução penal, o código tem a sua pior faceta. Acreditou na mensagem de que “ninguém cumpre a pena toda” e recrudesceu o sistema progressivo, tornou inseguro o prazo para a progressão (com a inclusão de uma genérica cláusula de “grave lesão à sociedade”), dificultou a saída temporária (mesmo que a estatística de seu descumprimento seja irrisória) e fulminou com sursis e livramento condicional. Atendeu, enfim, ao reclamo midiático da “impunidade”. Com as cadeias já superlotadas, que mais se pode dizer?
Correio da Cidadania: O novo Código possui alguma discussão relativa à redução da maioridade penal?
Marcelo Semer: O projeto não mexe na questão da redução da maioridade, até porque se trata de matéria de natureza constitucional e, ao que pensam muitos, inclusive, imutável pela natureza de cláusula pétrea. Penso também que não há nada a ser mexido nesse particular. Trazer mais clientes para o direito penal é tudo que o sistema não precisa atualmente. Também deveria ter evitado a criação de tipos desnecessários (e ainda por cima mal definidos), criando a falsa impressão, recoberta pelo populismo, de que o direito penal vai resolver todos os nossos problemas. Isso deseduca e flerta com o autoritarismo.
Correio da Cidadania: Na esfera dos atos individuais, passíveis de punição, o porte, tráfico e uso de drogas é um dos aspectos que têm tido maior visibilidade. Como avalia a nova abordagem que se quer para este tópico, especialmente no que se refere à descriminalização do porte de pequenas quantidades?
Marcelo Semer: Sou plenamente a favor da descriminalização que o projeto faz e acredito que ainda é tímida, pois, ao mesmo tempo em que impede a punição pelo porte para uso pessoal, pune o uso “ostensivo”. É possível que se transforme naquelas mudanças que pouco mudam. A propósito, a atual lei de entorpecentes reduziu a quase nada a punição pelo porte para uso e, no entanto, poucos crimes levam tantas pessoas à delegacia quanto ele. Acho que era preciso ser mais profundo na atenuação de pena do micro-traficante (que muitas vezes trafica para sustentar seu vício), pois é ele que está superlotando as cadeias sem nenhum reflexo na diminuição do comércio. Se uma pessoa foi condenada anteriormente pelo porte para uso e venda de uma pedra de crack a fim de pagar a outra que usa, continuará cumprindo uma pena de cinco anos de reclusão. É razoável isso?
Correio da Cidadania: No que se refere ao aborto, não acredita que se trate de uma problemática que necessitaria de fóruns mais amplos de discussão, extrapolando o âmbito de um Código Penal? Como encara, de todo modo, o tratamento que pode acabar por ser dispensado a tema tão polêmico?
Marcelo Semer: Acho, particularmente, que a questão do aborto já vem sendo discutida há décadas. A criminalização do aborto, a meu ver, resulta em desprestígio da própria vida, pois não evita a prática dos abortos, mas põe sob risco enorme a saúde das gestantes economicamente vulneráveis. Para além das questões morais, que podem ter disciplina em outro canto, penso que aqui se trata de garantir ou não a vida – e a tutela abstrata da vida pela criminalização provoca mais mortes. Acho, entretanto, que a questão dificilmente será aprovada como propõe o projeto e, ao final, vai funcionar como um fogo de artifício.
Correio da Cidadania: A abordagem penal para os crimes ambientais tem sido avaliada por críticos e estudiosos como excessiva, por vezes superando em rigidez o próprio tratamento penal que envolve o ser humano. Como encara esta discussão e, especialmente, o seu tratamento pelo Código?
Marcelo Semer: Uma das funções de uma codificação é resolver os problemas do balanceamento das penas. A edição de leis penais em momentos distintos, com interesses políticos e propósitos emergenciais, acaba por desfigurar a legislação penal. O Código, entretanto, se furtou a esse balanceamento e reproduziu o mesmo desequilíbrio. Por quê? Porque foi montado em comissões distintas, votado por partes, ao final mostrando faces divergentes em seus títulos. É um equívoco que beira a incoerência, marcado pela pressa e pela configuração de uma comissão com pensamentos bem contraditórios. E de novo a pergunta, por quê? Porque fazer o código está sendo mais importante que o conteúdo do próprio código. Muita vaidade e muito marketing a que o direito penal não pode ser relegado. Ele é muito mais importante do que esses interesses menores.
Correio da Cidadania: Como tem visto as discussões do tema na mídia?
Marcelo Semer: A mídia, em regra, estraçalha o direito penal, porque faz uma leitura sensacionalista. Cultua o punitivismo, exigindo sempre mais pena e lucrando com o comércio do medo. Ao final, oferece uma visão neoliberal de Estado mínimo no social e máximo no penal, que compromete qualquer esforço de contenção do poder punitivo, que deveria ser um de nossos principais objetivos. Assim, não creio que possa ter algum tipo de auxílio na produção de um texto coerente. No máximo, condicionar a ação de alguns autores. O que poderia significar, por exemplo, que o relator tenha dedicado o trabalho a duas vítimas menores de crime de repercussão?
Correio da Cidadania: E os partidos políticos, o que pensa do modo como têm travado os debates no Congresso e na sociedade?
Marcelo Semer: Penso que os partidos têm uma visão muito estreita, em regra, do direito penal. Pouco que se distancie da visão oferecida pela mídia, inclusive no campo dito progressista. Existem diferenças, é verdade, entre a direita repressora e a esquerda punitiva, mas há pouca preocupação com as consequências de longo prazo que a codificação de uma criminalização extensa introduz na sociedade. De uma maneira geral, os partidos se mostram muito menos preocupados com o impacto dos temas jurídicos na sociedade do que deveriam.
Correio da Cidadania: Em palestra recente, o senhor afirmou que os debates sobre as leis penais costumam ser permeados pelo medo, sentimento inerente e alimentado pela humanidade e, principalmente, ideológica e interesseiramente apropriado pelos poderes dominantes de forma a satisfazer seus propósitos. O novo Código Penal traz, portanto, bastante deste contexto, não?
Marcelo Semer: Sim, a criminalização da milícia é um ponto. O projeto vende a versão de que tais crimes não são punidos por falta de instrumento legal – quando, na verdade, o que ocorre é falta de interesse pela vinculação do crime organizado com as estruturas de poder. E utiliza o medo como instrumento para criar experiências de direito penal máximo. O tipo do terrorismo é outra barbaridade. De um lado, ele invoca as “armas de destruição em massa” para fazer lembrar a doutrina Bush; mas, de outro, insere entre os atos de terror a “invasão de terras públicas ou particulares”. Dá para imaginar a quem se destina, não? O medo instrumentaliza a criminalização, inclusive dos movimentos sociais.
Correio da Cidadania: Faria, por sua vez, alguma associação entre os conteúdos em discussão para o novo Código e o momento econômico e político hoje vivido pelo país?
Marcelo Semer: Que o direito penal vai reduzir a criminalidade equivale ao triunfo da esperança sobre a experiência. Esse é o equívoco do direito penal da eficácia. A melhor política criminal é a redução das desigualdades. Esse é um propósito sobre o qual devemos pensar sempre, porque é emancipatório. O poder punitivo é um fato político, não vai deixar de existir. Mas quanto mais limitado for, tanto melhor. Fazer política com o direito penal resulta sempre em populismo. Se algo do momento atual interfere na produção, penso que é a influência excessiva da mídia e, da parte do projeto, sua total submissão à agenda dela.
Correio da Cidadania: Acaba de ser nomeado para o STF Teori Zavascki. O que pensa dessa nomeação? Faria alguma analogia entre a escolha do novo membro e o futuro desenrolar das discussões para o novo Código?
Marcelo Semer: Não discuto as credenciais do novo ministro. Acho, no entanto, que Dilma não tem se aberto a ouvir a sociedade civil, nem está preocupada com a pluralidade na composição do STF. A ideia de que ministros devem ter “perfil técnico” apenas escamoteia o conteúdo essencialmente político (embora não partidário) das decisões de cunho constitucional. O STF estava se impondo como a corte garantista do país. O julgamento do caso mensalão está representando uma guinada, e o esquecimento de nomes da área criminal pela Dilma mostra o absoluto desinteresse com a preservação das garantias. O que o futuro projeta, como resultado de tudo isso, é uma jurisprudência mais conservadora, o que no direito penal quer dizer mais presos.
Correio da Cidadania: Finalmente, o que deveria permear a elaboração de um Código Penal de fato moderno, avançado, a favor do propalado “bem comum” e da pacificação social?
Marcelo Semer: Em poucas palavras, um código menor. Que inverta o paradigma de seletividade (diminuindo a imensa tutela à propriedade), sem tantas concessões ao rigorismo, e que extirpe o que ainda resta de punição moral. Que não tenha como meta a “eficácia”, mas a garantia, para servir de controle ao poder punitivo.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.