A lição de casa
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- Gilvan Rocha
- 21/12/2012
Essa expressão, fazer a lição de casa, corresponde a dizer: cumprir com as obrigações que nos são impostas por diversas vias, circunstâncias e conveniências.
A burguesia, enquanto classe social, fez e faz, competentemente, a lição de casa. No primeiro momento histórico, ela buscou abrir caminhos para o seu fortalecimento e, logo que fortalecida, através do capitalismo mercantilista, soube estabelecer uma aliança histórica em torno da implantação do absolutismo, condição básica para o seu maior crescimento. Soube, ainda naquele momento, patrocinar as grandes navegações e, através delas, de certa forma conquistar o “Novo Mundo” e estabelecer contato com o Oriente.
Enriquecida, após muitos anos de atividade comercial e pelo incremento das manufaturas, a burguesia tratou de conquistar novos patamares e galgar melhores posições econômicas, sociais e políticas.
De forma brilhante, através dos seus intelectuais, conseguiu conceber um projeto de nova sociedade tão bem, doutrinariamente, desenvolvido pelos “iluministas”.
Construídas as linhas mestras de um projeto econômico e social de acordo com seus interesses, a burguesia ocupou-se de conspirar contra a velha ordem feudal e buscou implementar insurreições que lhe levassem ao poder político. Conquistado o poder, tratou de levar a cabo duas grandes tarefas concomitantes: primeiro, consolidar esse poder; segundo, tornar universal a nova ordem econômica, política e social, a ordem capitalista, tomando-se a Revolução Francesa como referência. O comportamento inglês foi completamente diferente no quesito “universalizar o capitalismo”. Os ingleses foram ferrenhos e ativos inimigos da revolução burguesa na França.
É oportuno esclarecer que a caminhada evolutiva do capitalismo não se deu de forma retilínea e antecipadamente planejada. Não! Na medida em que as questões eram postas, a burguesia procurou responder satisfatoriamente aos seus interesses imediatos e históricos.
No exemplo francês, não houve um planejamento político, mas a elaboração antecipada de um bem delineado projeto de uma nova ordem. Esse projeto, construído pelos já citados iluministas, somado a outros fatores, deu à Revolução Francesa a oportunidade de se tornar a revolução clássica burguesa.
Voltemos, porém, à nossa abordagem que, mesmo procurando ser didática, não pretende atropelar a complexa realidade histórica, presumindo existir uma linha reta sem os devidos percalços. Isso, jamais! A simplificação de que lançamos mão tem o objetivo único de estabelecer uma linha de raciocínio que nos enseje entender o transcurso evolutivo da história, livres das idas e vindas, dos ziguezagues e dos múltiplos acidentes e dramas.
Quando a burguesia chegou ao seu estágio superior de desenvolvimento, com o imperialismo, ela teve que enfrentar dois grandes problemas que lhes eram inerentes. Tinha que enfrentar as suas profundas contradições fazendo uso, em última instância, do confronto bélico, tanto na Primeira como na Segunda Grande Guerra Mundial, para resolver suas pendências, mesmo com altos custos sociais. Outra tarefa vital para a burguesia na sua fase imperialista era derrotar o movimento socialista que propunha um novo projeto de sociedade e a consequente desconstrução do capitalismo. Dessa segunda tarefa, ela se desincumbiu impondo ao movimento socialista sua completa descaracterização, levando-o ao social-patriotismo que ainda hoje perdura com muita força.
Após essa espetacular derrota do movimento socialista, em 1912/13, veio um segundo momento de confronto, que vai de 1917 a 1923, quando uma nova leva revolucionária se levanta. Mais uma vez, a burguesia lança mão de sua sagacidade política no manejo dos meios que dispunha, conseguindo impor nova derrota ao socialismo, em dramáticos embates quando estava em jogo o destino imediato da proposta revolucionária, particularmente o destino da URSS. Dessa segunda derrota brotou um fenômeno histórico de gravíssimas consequências: o stalinismo.
É necessário ressaltar que fortes elementos causadores dessa nova derrota têm suas raízes em 1912/13, quando vicejou no seio da esquerda social-democrata o social-patriotismo, que desarmou politicamente a classe trabalhadora, tornando-a presa fácil da contrarrevolução.
O socialismo, enquanto projeto de nova sociedade, foi engessado pelo stalinismo, transformando a sua ciência em um amontoado de dogmas e os chamados partidos comunistas em organizações de caráter social-patriota. Por sua vez, a comunhão de interesses entre o imperialismo, capitaneado pela burguesia, e a burocracia stalinista, em evitar, a qualquer custo, o avanço da revolução mundial, levou o movimento socialista a uma situação de derrota quase absoluta e, consequentemente, permitiu que a burguesia desfrutasse nos dias de hoje um momento de inimaginável hegemonia.
Vejamos a grande ironia da história, tão pródiga no seu mister. A burguesia foi revolucionária nos seus primórdios, logo, progressista. Quando atingiu a fase imperialista, ela iniciou o seu processo de crescente exaustão. Antes, tinha uma proposta e um discurso que interessavam à maioria da humanidade; hoje, ela não dispõe de nenhum discurso que possa lançar esperança de solução a problemas graves como: a miséria crescente, a violência, a destruição da natureza, e tantos outros, decorrentes de sua própria existência.
Enquanto isso, o socialismo detém como bandeira a única proposta capaz de levar reais esperanças ao conjunto da humanidade. Isso é deveras irônico: uma classe social como a burguesia, exaurida e sem discurso, é politicamente hegemônica. Enquanto isso, a esquerda verdadeiramente socialista está confinada em pequenos guetos e, quando ousa levantar a cabeça, é perseguida pelos diversos herdeiros de Stalin e pelas forças da burguesia.
A resposta para essa intrigante questão está no fato de que os noventa anos de dominação stalinista e sua aliança estabelecida com o imperialismo para sustar qualquer possibilidade de vitória da revolução mundial levantaram barreiras quase intransponíveis à causa socialista.
A chamada esquerda “marxista-leninista” transformou-se em legiões de militantes presos aos dogmas e substituindo o princípio da luta de classes pelo obsceno “princípio” de nações opressoras versus nações oprimidas, dando respaldo ao tão nefasto nacionalismo que contaminou gravemente essas legiões. O subproduto desse desvio político/ideológico é o obtuso antiamericanismo, que ultrapassa as raias do absurdo quando vê com mal dissimulada simpatia o teocrático fascismo iraniano, pelo simples fato de ele, assim como a Síria e o Bin Laden, ter posições antiamericanas - esquecendo o fato de que ser antiamericano não implica em se ser anticapitalista, posição essa indispensável aos que pretendem a emancipação humana.
Ora, a barreira imposta pelo conluio imperialismo/stalinismo, que nos reduziu à tão brutal situação de indigência teórica, quando os dogmas substituíram os princípios e os militantes tornaram-se beatos acríticos, só pode ser removida caso estejamos dispostos a promover um profundo trabalho de autocrítica, cortando na própria carne.
Essa tarefa, porém, requer um grau de coragem muito maior do que foi demonstrado por muitos militantes de esquerda, mundo afora, diante dos cárceres, das torturas, da clandestinidade ou do exílio. A tarefa de demover a barreira que nos foi imposta implica em dispormos a nos desfazer de deuses, mitos e dogmas, construídos para inibir qualquer iniciativa ou posição que possam ser consideradas heréticas, pois prevalecia e prevalece, nos mais diversos grupos, de viés stalinista, o catecismo inconteste. E isso tem que ser superado.
Vale refletir sobre o fato de que a burguesia, como já dissemos, cumpriu e cumpre o seu papel histórico. Hoje, esse papel é o de preservar a nau capitalista flutuando, mesmo seriamente avariada, evitando o seu naufrágio. Para os reais marxistas, fica claro que se trata de uma tarefa impossível a eternização do sistema socioeconômico vigente. Não é de bom alvitre, porém, que o capitalismo sucumba arrastando consigo a própria humanidade. Queremos o fim do capitalismo, sim, mas ele só nos interessa na medida em que seja sucedido pelo socialismo, e nunca pela tragédia total.
Por seu turno, estamos convencidos de que a tarefa, a lição de casa, da esquerda socialista seria impor reais derrotas à burguesia. No entanto, cabe perguntar: foi isso o que aconteceu na Espanha, em 1936? Na Alemanha, diante da ascensão do nazismo hitlerista? No Brasil, quando do golpe em 1964? No Chile de Allende, em 1973? Na Indonésia de Sukarno, em 1965? Na China de Mao, que se tornou, desde priscas eras, um Estado policial, para depois desembocar no capitalismo de Estado? É justo que vivamos de migalhas, confundindo restritas vitórias eleitorais, que em nada ameaçam o capitalismo, como se elas representassem pungentes avanços? E o que dizer da gloriosa e heróica “Guerra de Libertação Nacional” vietnamita, onde hoje se exibe, em suas avenidas e estradas, propagandas de empresas imperialistas, enquanto exporta para a China mão de obra barata? Por fim, cabe indagar: a esquerda, por sua esmagadora maioria, fez ou faz a sua lição de casa?
Esses e tantos outros episódios que formariam uma lista quase infinda demonstram que a história do socialismo representou uma sucessão de derrotas políticas e, ao invés de se procurar delas tirar os necessários ensinamentos, preferiu-se e prefere-se o caminho irresponsável e desvairado do triunfalismo totalmente infundado.
Os equívocos políticos, em suas mais diversas versões (o maoísmo, o fidelismo, o kruschevismo e mesmo o extravagante nazi-fascismo, expressão exacerbada da contrarrevolução), produziram e produzem grandes legiões de beatos, abnegados, heróis e mártires. Esse fato não faz com que os equívocos deixem de sê-los e, por conta da qualidade moral dos seus devotados militantes, devam ser tratados com generosidade, aquiescência.
É oportuno e necessário esclarecer que reconhecer as sucessivas derrotas do movimento socialista não implica em ser derrotista. Implica em assumi-las e buscar situar as suas verdadeiras causas, evitando suposições infundadas, do tipo “revolução traída”, “revolução desfigurada”, no caso da URSS. Tratando-se do Brasil, diante do golpe de 1964, devemos repelir a tese de que “o golpe nasceu em Washington”. Isso corresponde a dizer, com certo acento nacionalista, ter sido a causa da nossa derrota naquele momento o comportamento reprovável do inimigo que “rasgou a constituição e atropelou a legalidade”. Inimigos não traem, essa deveria ser uma lição elementar. Imputar ao inimigo a causa de nossa derrota é fugir da necessária autocrítica, é deixar de assumir as nossas responsabilidades.
Expurgar o idealismo filosófico, o triunfalismo, as fantasias, as ilusões, o seguidismo acrítico, a veneração religiosa, os preconceitos, as práticas caluniosas e outras tantas manifestações de rebaixamento político e ideológico é uma tarefa urgentíssima, e só procedendo dessa forma seremos capazes de romper o círculo de ferro político-ideológico imposto pelo conluio imperialismo/stalinismo.
Pretendemos, como temos feito, apontar o que para nós parece ser a saída. Trata-se de empreender esforços para responder de forma abalizada ao seguinte questionamento que, embora parcialmente respondido, persiste: o que nos cabe fazer?
A resposta seria: devemos lutar para construir outra esquerda, disposta a restabelecer a livre discussão, sepultada que foi de forma brutal a partir de 1921, quando, no X Congresso do Partido Comunista da URSS, por proposta de Lênin e Trotsky, que pretendiam ser uma medida transitória, foi suprimido o direito de tendência e instituído o monolitismo. Monolitismo que se tornou universal, por conta do papel assumido pela Terceira Internacional, ao corromper-se, o que ocorreu um pouco depois de sua fundação.
Estamos convencidos de que, sem a construção dessa outra esquerda, desfeita de suas marcas direitistas ou direitosas, não será possível sair dessa situação de profunda derrota a que fomos submetidos.
Em outras palavras, diríamos: a construção de outra esquerda calcada nos princípios do socialismo científico, construídos por Marx, Engels, Plekhànov, Lênin, Rosa, Trotsky, Martov, Kautsky, Labriola, Franz Mehring e poucos outros próceres, é a tarefa que se impõe, e buscar cumpri-la é fazer a lição de casa.
Isso é necessário, caso levemos em consideração o fato de que o socialismo é apenas uma possibilidade e nunca uma fatalidade imposta pelas contradições do capitalismo, tão aguçadas presentemente.
O socialismo, para se impor como saída para o nosso impasse histórico, precisa ter força para fazê-lo e, assim, fica evidente a necessidade de apressar os passos, uma vez que estamos diante da célere marcha do sistema vigente para o colapso.
Os fatos conflituosos da nossa realidade global estão continuamente em marcha, pouco importando se despertarmos ou não, em tempo, historicamente hábil, para intervir evitando a grande tragédia, qual seja, a destruição da vida.
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Gilvan Rocha é militante socialista e membro do Centro de Atividades e Estudos Políticos. Blog: www.gilvanrocha.blogspot.com