O Estado brasileiro em debate: entre as mudanças necessárias e as eleições 2014
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- Sérgio Botton Barcellos
- 03/01/2013
As mudanças nos Estados nacionais e a influência neoliberal ocorreram em diversos países e de diferentes maneiras ao longo dos últimos anos. Contudo, evidencia-se que algumas características em comum estiveram presentes em muitos países, como a reconfiguração do poder mercantilista sobre a força e o mercado de trabalho através das reformas trabalhistas, o agenciamento de muitos sindicatos, a privatização de muitos serviços sociais e das empresas estatais, bem como um maior refluxo das forças históricas e políticas de esquerda. Observa-se em escala global, como atualmente nos países do sul da Europa (Portugal, Grécia, Espanha e Itália), uma segmentação crescente dos Estados de bem-estar social e a dualização do seu papel social. Ocorre uma participação cada vez maior dos grupos privados e de uma rede de organizações que, em sua maioria, cumpre um papel assistencial e filantrópico, o que seria no Brasil conhecido como terceiro setor.
Em um tempo histórico mais recente no Brasil, em especial no período compreendido entre 1930 e 1970, o país se constituiu em uma economia considerada moderna com base industrial e urbana, alto êxodo rural, baseada em exportações de bens primários, e estendeu as regulações do Estado, como os mecanismos de controle, repressão e intervenção social, subjugadas em grande medida aos interesses norte-americanos. A deflagração da ditadura militar a partir de 1964 deixa claro. O que pode ser entendido como o sistema de “proteção social” do Estado brasileiro é fortalecido nesse mesmo período, tendo o autoritarismo como uma de suas principais marcas e a intervenção nos sindicatos, aumentando o grau de presença de empresas estatais e abertura ao capital estrangeiro. A partir desse processo, constituíram-se os setores industriais considerados modernos e uma perspectiva agrícola agroexportadora, com grandes monoculturas produzidas em latifúndios.
Um conjunto de inter-relações entre uma agricultura de subsistência e um modelo de exportação primário, o sistema bancário formado no país, o financiamento estatal das indústrias privadas e o barateamento da reprodução da força de trabalho, devido ao “inchaço” das cidades, podem ser considerados os motores do processo de expansão capitalista no Brasil (OLIVEIRA, 2003).
Atualmente, cabe considerar que as políticas públicas no Brasil, pelo menos constitucionalmente e no âmbito federal, não são mais atreladas exclusivamente à ação política do governo central, pois desde 1988 foram criados dispositivos de participação e controle social a partir dos Conselhos Sociais e conferências ordinárias em diversos setores (Saúde, Educação, Assistência Social, Meio Ambiente, dentre outros).
Em um período histórico mais recente, com início no governo Sarney, reconfiguraram-se as formas de relação do Estado brasileiro junto ao sistema global capitalista, continuando com Collor e Itamar e logo em seguida no governo FHC, com a marca da reforma do aparelho de Estado em 1995. Os desdobramentos gerais dessa política de ajuste fiscal ao sistema financeiro internacional e privatizações podem ser evidenciados pela inflação galopante até 1993, a desigualdade social registrada em níveis extremos, o arrocho salarial, as crises econômicas constantes e o aumento exorbitante da dívida externa (em 1994 o Brasil tinha uma dívida pública de aproximadamente US$ 38 bilhões; em 2002, essa dívida passou para cerca de US$ 850 bilhões).
Depois, com o governo Lula e o atual, ocorreram mudanças que sinalizaram uma determinada reorganização financeira do Estado, com investimentos em infraestrutura (PAC), políticas de inclusão produtiva e educacional para as comunidades consideradas em situação de baixa renda e em condições de pobreza e uma incidência destacada do país no cenário internacional.
A questão do mercado interno passou a ser fomentada pelo pré-sal, pela construção civil e habitacional (sob alta especulação imobiliária), pelo setor de fabricação de máquinas e equipamentos, bem como pela produção de alimentos para o consumo interno. Essa reorganização financeira do Estado auxiliou na formação e reformulação de grupos econômicos, que redesenharam a acumulação de capital no Brasil, tendo a sua reprodução e os seus negócios vinculados a um modelo de desenvolvimento gerenciado pelo Estado por meio das suas instituições e empresas estatais.
Os dois últimos governos e o recente governo federal representam uma construção histórica e anos de luta de uma significativa parcela da classe trabalhadora no Brasil, e atualmente está sendo protagonista em muitas transformações muito bem avaliadas na vida imediata do povo brasileiro. Contudo, não é por isso que não devemos ficar atentos à política para desestabilizar e modificar os aparatos e mecanismos do Estado que historicamente replicam desigualdade e injustiça social no Brasil. Na oposição política a esses recentes governos, há evidências de sobra de que os ex-governantes do Estado tentam reagir, por meio do seu grande poder econômico acumulado e pelos meios de comunicação, bem como pela influência no poder judiciário.
Diante disso, o processo político e de mobilização social para que o Estado seja uma efetiva ferramenta de promoção da igualdade social, redistribuição de riquezas e de poder político terá que perpassar por algumas questões, como: qual o Estado que queremos? Qual o projeto de desenvolvimento e participação popular que será necessário para isso?
As eleições de 2014 e o debate sobre Estado podem e devem andar juntos
“(...) quem elegeu a busca não pode recusar a travessia.”
Guimarães Rosa - Primeiras Estórias
Quanto ao debate sobre “Qual o Estado que queremos?” e “Estado para quê e para quem?”, percebe-se que é evitado por muitos setores e grupos políticos, tanto de oposição como por alguns grupos partidários que compõem a situação no atual governo. Além de ser um debate considerado “complicado” do ponto de vista teórico, técnico e político, é considerado pouco viável do ponto de vista eleitoral. Claro, que, além disso, propor o debate sobre um Estado promotor de igualdade social tenderia a desestabilizar zonas de conforto, desconcentrar poder e recursos públicos direcionados para corporações e grupos mercantis privados. Esse debate sobre Estado no Brasil junto com a sociedade talvez seja adiado por muito tempo ainda, por mais que não faltem evidências de que precisa ser feito.
Os investimentos de Estado no Brasil estão pouco a pouco aumentando nas áreas reconhecidas como sociais, embora ainda estejam bem abaixo dos montantes registrados em muitos países do mundo. Em relação à saúde e à educação, percebe-se uma expansão da cobertura, bem como uma melhora parcial de alguns indicadores, ainda que os mesmos continuem carecendo de muita melhoria. No mercado de trabalho, reconhecem-se grandes avanços, principalmente com a extensão e equalização de benefícios trabalhistas, mas ainda metade da nossa População Economicamente Ativa (PEA) não tem cobertura previdenciária por estar em situação de trabalho considerada informal.
Junto a isso, à medida que o tempo passa, vão ficando evidentes as disputas na conjuntura política brasileira - isto é, não querendo simplificar ou ignorar os demais grupos políticos, mas devido a esse texto se tratar de uma breve provocação, irá se mencionar os grupos políticos com a preferência popular nas pesquisas para as próximas eleições presidenciais.
De um lado, a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula aparecem como favoritos para as eleições presidenciais de 2014. No outro lado, na reordenação das forças políticas tidas como de direita, basta acompanhar de forma atenta as últimas movimentações do PSDB e demais partidos de oposição, bem como observar os movimentos políticos do ex-presidente FHC, a divulgação do senador Aécio Neves como pré-candidato a presidente e a tentativa de criminalização da instituição Partido dos Trabalhadores (PT) e do ex-presidente Lula. Nesse campo da direita, evidencia-se que faltam lideranças viáveis e que elas não têm um projeto convincente e apropriado para a maioria do eleitorado do país. Aliás, atuam cotidianamente na tentativa de esconder os delitos que cometeram ao país de 1994 a 2002 (o livro “A privataria Tucana” é farto em provas) e nos seus recentes governos estaduais e municipais.
Ao mesmo tempo, vivemos em meio a uma enxurrada de divulgações e replicações de dados e pesquisas sociais e econômicas, sem o devido trato metodológico e qualitativo, apresentando-se números contraditórios, que, ao invés de esclarecerem algo, confundem a opinião pública e despolitizam os debates, com a apresentação na arena pública de dados de caráter duvidoso.
Em relação a isso, recorda-se Noam Chomsky em um dos seus escritos, no qual ele abordou as estratégias de manipulação das informações e da mídia, como, por exemplo, a de criação de problemas para depois se oferecerem soluções e causarem certa reação no público - a fim de que eles sejam os demandantes das medidas que os grupos hegemônicos desejam. Por exemplo: deixar que se desenvolva ou se intensifique a violência urbana, ou organizar atentados sangrentos, ou criar uma crise econômica para fazer aceitar como um mal necessário o retrocesso dos direitos sociais e o desmantelamento dos serviços públicos. Atenta-se que muitas dessas ações, que prosseguirão em 2013, têm o interesse em promover a derrota do projeto político e histórico que, “mal ou bem”, o atual governo federal representa.
Diante desse contexto, aponta-se, mesmo que de forma incipiente, alguns pontos para o conjunto dos debates, possivelmente pertinentes para o próximo período, que em algum dia vamos ter de encarar no Brasil, relacionados à função que o Estado está desempenhando junto à sociedade, como:
- a necessidade de uma reforma do sistema político brasileiro urge e é um debate não somente atrelado à questão do financiamento público de campanha, mas também à regulamentação do art. 14º da Constituição Federal, que trata dos plebiscitos, referendos, iniciativas populares e a participação da sociedade nos espaços de investigação de decoro no poder público;
- a realização de um debate franco junto com a sociedade em relação aos megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas). Parece ser necessário debater junto com a sociedade o retorno social e as decisões sobre destinação orçamentária, prioridades eleitas e projetos previstos, pois até agora estes não foram submetidos ao escrutínio e ao debate público, inclusive nos Conselhos da Cidade e Conselhos de Política Urbana. Lembrando que, segundo o Comitê Popular da Copa, cerca de 170 mil famílias estão ameaçadas de despejo e já ocorreu a remoção de mais de 8 mil famílias, afetando diretamente 24 comunidades em todo o país;
- dar início à construção de um planejamento de Estado em longo prazo e enfrentar a questão das reformas agrária e urbana no país, bem como considerar em tais debates a grande mudança demográfica que vamos ter a partir de duas décadas, com o envelhecimento da população, o que será uma mudança significativa do perfil demográfico e geracional do país;
- Reformular o nosso sistema de segurança pública caracterizado por medidas repressivas, vigilância, cárcere e homicídio policial que criminalizam os movimentos sociais, a pobreza, a nossa juventude e os negros do país. Para isso, será necessário ampliar o conceito de segurança social, abrangendo questões como justiça social, defesa dos direitos sociais, a exemplo de saúde, educação, moradia, meio ambiente e as demais demandas sociais;
- revisão dos aspectos normativos, do perfil político e tecno-burocrático das instituições e agentes que gerenciam as diversas políticas públicas. Além de não conseguirem executar os orçamentos disponibilizados, têm políticas com parcos resultados no que tange a eficiência, eficácia e a qualidade social. Exemplos não faltam, desde o caso da infraestrutura em rodovias, até o caso das políticas agrícolas, dentre outras tantas;
- revisão da adesão dos bancos estatais ao acordo de Basiléia, que determinou as regras as quais os bancos iriam adotar para conseguirem acompanhar as mudanças do sistema capitalista nas últimas décadas. Estas regras têm como objetivo, mesmo depois da revisão em 2001, limitar a possibilidade de uma crise bancária internacional. Um acordo que em grande medida delega-se à voracidade dos bancos e às altas taxas de juros bancárias;
- esclarecimento à população sobre a destinação de 100% dos royalties para a educação. Constata-se que isso somente ocorrerá no caso de futuros contratos de concessão, ou seja, quando novos poços de petróleo – localizados fora do “Pré-sal” – forem entregues à iniciativa privada. Para maiores esclarecimentos sobre o tema recomenda-se a leitura do artigo “ROYALTIES DO PETRÓLEO: PARA A EDUCAÇÃO???”.
Observa-se que os debates e as disputas políticas para o aprimoramento e a ampliação de um conjunto de ações e políticas públicas estão em pauta, apesar de silenciados muitas vezes, tanto nas esferas de governo como para a sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, o esforço de gerar outro ciclo de políticas públicas parece que terá de abranger a ampliação da atual discussão sobre democracia, emancipação e autonomia na sociedade.
Claro, essas e outras questões não estarão provavelmente nas manchetes da mídia burguesa e não serão analisadas por muitos que se empenham em macular a qualquer custo e acriticamente o governo. Contudo, mesmo com os importantes e consideráveis avanços que tivemos nos últimos anos, evidencia-se que há uma série de desafios e questões a serem debatidos em 2013, muito além das breves provocações apresentadas nesse texto. E que provavelmente são entraves, armadilhas e autoenganos que o sistema capitalista impõe e propõe por meio dos seus asseclas dentro e fora dos governos, bem como junto a algumas organizações e movimentos sociais.
Sérgio Botton Barcellos é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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