Correio da Cidadania

Por uma comissão independente para investigar a tragédia da boate Kiss em Santa Maria

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No dia 27 de janeiro de 2013, Santa Maria viveu a maior tragédia de sua história. Com 237 mortos já contabilizados, e quase duzentos feridos, sendo que 75 em estado grave, o incêndio da boate Kiss foi um dos maiores casos de negligência do poder público com vítimas fatais – e de mortes provocadas pela sede de lucro do capital em nossa história recente. Unimo-nos à profunda dor dos familiares pelas centenas de vidas ceifadas em plena juventude.

 

Os primeiros jovens que tentaram fugir da casa noturna foram barrados pelos seguranças que trancaram a única porta de saída e lhes ordenaram que fizessem uma fila para o pagamento das comandas, pois segundo eles, o fogo já estava controlado. O sistema de câmeras de segurança foi retirado, dificultando a investigação de como uma quantidade tão grande de pessoas pôde ter sido vítima de tamanho egoísmo do capital e negligência do poder público, no qual a boate funcionava sem alvará e sem saída de emergência. Em um minuto se poderia em condições normais evacuar de 50 a 100 pessoas sem muito esforço, por menor que fosse a única porta existente, portanto, não deveria demorar mais de 10 minutos para os responsáveis retirarem todos os presentes? Qual é, portanto, o motivo de tantas mortes serem contabilizadas? E ainda, a saída não deveria ter sido fiscalizada pelos órgãos competentes para ver se comportaria a saída em massa em caso de um incêndio?

 

Dois estudantes sobreviventes dessa verdadeira carnificina deram os seguintes depoimentos: a estudante de administração Thaise Brenner contou que estava perto da porta da saída com uma amiga quando o tumulto começou. Ao tentar sair, foi impedida pelo segurança. "Ele queria que nós fôssemos para outra fila pagar a comanda da festa e dizia que o incêndio estava sendo controlado". Thaise e a amiga então empurraram o segurança, que caiu. Só dessa forma conseguiram escapar com vida. "Conseguimos passar debaixo das pernas dele e fugimos da boate. Depois disso, várias pessoas nos seguiram", disse uma das primeiras pessoas a saírem da festa.

 

Outro sobrevivente, o universitário Murilo de Toledo Tiecher, também comentou em sua página no facebook que, no início do incêndio, seguranças tentaram segurar as portas para que as pessoas não saíssem. “Que fique registrado: eu fui um dos 50 primeiros a sair. No início do tumulto, os seguranças tentaram segurar as portas e manter as pessoas ali pra que não saíssem da boate! Não sei se pensavam que era uma briga e não queriam que saíssem sem pagar. Só depois que a multidão derrubou os seguranças é que viram a merda que fizeram. Todo mundo viu isso aí. Não queriam que nós saíssemos sem pagar”, declarou Tiecher. “Se não houvessem trancado a saída, muitas vidas teriam se salvado”.

 

A maioria dos jovens morreu nos banheiros, pois as janelas estavam fechadas. Os bombeiros ao adentrarem a casa, se depararam com uma parede de corpos amontoados na porta de entrada que havia sido fechada. E de novo temos que fazer uma pergunta: além de não possuir saída de emergência, e de obstruir a única porta existente, o que houve com os extintores de incêndio que não funcionaram? Como pode uma casa noturna que recebia mais de 2000 mil pessoas, para uma capacidade de 600, em uma só noite, não ter uma quantidade de extintores que comportasse a possibilidade de um incêndio?

 

A permissão de funcionamento da casa estava vencida desde agosto de 2012, segundo o comandante do Corpo de Bombeiros, Moisés da Silva Fuchs. Dias antes, a prefeitura havia fechado o centro de diversão da Casa do Estudante da cidade, por motivos “de segurança”. A boate Kiss, empresa privada de insegurança absoluta, permaneceu aberta, e novamente perguntaremos: quem são os responsáveis do poder público que permitiram uma situação tão desoladora que somente poderia acabar em um gigantesco desastre?

 

A maior parte das vítimas morreu por asfixia provocada por monóxido de carbono, encerradas em um lugar transformado em dois minutos em uma câmara de gás, porque os responsáveis deram ordem de bloquear a saída. Quando chegaram os bombeiros, tiveram que derrubar uma parede da boate para usar as mangueiras de água.

 

Os representantes do poder público, municipal e estadual, começam a preparar a velha política do bode expiatório. O prefeito de Santa Maria, Cézar Schirmer (do PMDB), e seu aliado político, o governador Tarso Genro (do PT), são os principais responsáveis políticos, por estarem à cabeça do sistema de corrupção que permitiu a catástrofe. Sistema esse que impera em todo o poder público do Estado brasileiro, mas que só vem à tona em momentos como esse, quando uma tragédia torna-se pública e notória. A polícia quer agora procurar bodes expiatórios e ocultar que os principais responsáveis são o próprio poder público em todos os níveis e que o sistema judiciário não tem a competência para julgar, sendo que é o próprio Estado que deve ser o réu e o verdadeiro responsável por esta tragédia. A quem cabia fiscalizar? A quem cabia prevenir? A quem cabia ter medidas de prevenção de acidentes? E onde estão os verdadeiros responsáveis pelo poder público nesta hora, alguém os viu?

 

No mesmo dia a presidente Dilma Rousseff abandonou uma cúpula continental para viajar a Santa Maria, revelando uma grande sensibilidade... Política. Ou seja: preservar o esquema de governo do Rio Grande do Sul, hegemonizado historicamente pelo PT, o mais endividado (à beira da bancarrota) do país, com vistas grossas para esse verdadeiro descaso com a segurança e a saúde da população. A cidade com cerca de 300 mil habitantes não conseguiu sequer atender os pacientes mais graves, triste quadro de uma saúde que quase a totalidade dos brasileiros já conhece e só é lembrada para a criação de impostos que nunca são investidos de fato para a população.

 

Fato relevante e que deve ser analisado pela população interessada nesta tragédia é o caso similar ocorrido na Argentina em 2004: o da discoteca República Cromañón, onde morreram quase 200 pessoas. Após a mobilização das vítimas, familiares e populares, conseguiu-se a punição dos responsáveis do poder público, grande parte dos quais eram membros da prefeitura de Buenos Aires, e também o impeachment do prefeito Anibal Ibarra, demonstrando que com organização e luta é possível responsabilizar os verdadeiros culpados.

 

Organizar a solidariedade e salvar a vida dos feridos é, claro, a primeira tarefa agora, e ela já está sendo organizada. Mas devem se estabelecer as responsabilidades do assassinato em massa, e não deixar que os verdadeiros culpados desviem o foco, como a imprensa e o Estado estão tentando fazer. A investigação deve ser levada adiante por uma comissão independente, composta pelos familiares das vítimas, o estudantado e os trabalhadores da cidade, em primeiro lugar do SEDUFSM (Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal de Santa Maria), sindicato classista, combativo e de límpida trajetória, e transformado em luta nacional. Milhares de manifestantes junto com os familiares das vítimas marcharam no dia 28/01, exigindo a apuração imediata dos responsáveis por essa carnificina. Deve-se ter claro que sem organização e mobilização permanente não conseguiremos ganhar esta batalha.

 

Para que no banco dos acusados, e nas prisões, estejam os responsáveis políticos, em todos os níveis, propomos a formação de uma comissão independente formada pelos familiares das vítimas, a população e os trabalhadores em geral.

 

Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.

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