A Igreja-instituição como “casta meretriz”
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- Leonardo Boff
- 27/02/2013
Quem acompanhou o noticiário dos últimos dias acerca dos escândalos dentro do Vaticano, trazidos ao conhecimento pelos jornais italianos “La Repubblica” e o “La Stampa”, referindo um relatório com trezentas páginas, elaborado por três Cardeais provectos sobre o estado da cúria vaticana, deve, naturalmente, ter ficado estarrecido. Posso imaginar nossos irmãos e irmãs piedosos que, fruto de um tipo de catequese exaltatória do Papa como “o doce Cristo na Terra” devam estar sofrendo muito, pois amam o justo, o verdadeiro e o transparente e jamais quereriam ligar sua figura a notórios malfeitos de seus assistentes e cooperadores.
O conteúdo gravíssimo destes relatórios reforçou, no meu entender, a vontade do Papa de renunciar. Ai se comprovava uma atmosfera de promiscuidade, de luta de poder entre “monsignori”, de uma rede de homossexualidade dentro do Vaticano e desvio de dinheiro do Banco do Vaticano. Como se não bastassem os crimes de pedofilia em tantas dioceses que desmoralizaram profundamente a instituição-Igreja.
Quem conhece um pouco a história da Igreja – e nós profissionais da área temos que estudá-la detalhadamente – não se escandaliza. Houve épocas de verdadeiro descalabro do Pontificado com Papas adúlteros, assassinos e vendilhões. A partir do Papa Formoso (891-896) até o Papa Silvestre (999-1003) se instaurou segundo o grande historiador Card. Barônio a “era pornocrática” da alta hierarquia da Igreja. Poucos Papas escapavam de serem depostos ou assassinados. Sergio III (904-911) assassinou seus dois predecessores, o Papa Cristóvão e Leão V.
A grande reviravolta na Igreja como um todo, aconteceu, com consequências para toda a história ulterior, com o Papa Gregório VII em 1077. Para defender seus direitos e a liberdade da instituição-Igreja contra reis e príncipes que a manipulavam, publicou um documento que leva este significativo título “Dictatus Papae” que literalmente traduzido significa “a Ditadura do Papa”. Por este documento, ele assumia todos os poderes, podendo julgar a todos sem ser julgado por ninguém. O grande historiador das idéias eclesiológicas Jean-Yves Congar, dominicano, considera a maior revolução acontecida na Igreja. De uma Igreja-comunidade passou a ser uma instituição-sociedade monárquica e absolutista, organizada de forma piramidal e que vem até os dias atuais.
Efetivamente, o cânon 331 do atual Direito Canônico se liga a esta compreensão, atribuindo ao Papa poderes que, na verdade, não caberiam a nenhum mortal, senão somente a Deus: ”Em virtude de seu ofício, o Papa tem o poder ordinário, supremo, pleno, imediato, universal” e em alguns casos precisos, “infalível”.
Esse eminente teólogo, tomando a minha defesa face ao processo doutrinário movido pelo Card. Joseph Ratzinger em razão do livro “Igreja: carisma e poder” escreveu um artigo no “La Croix” (8/9/1984) sobre o “O carisma do poder central”. Ai escreve: “O carisma do poder central é não ter nenhuma dúvida. Ora, não ter nenhuma dúvida sobre si mesmo é, a um tempo, magnífico e terrível. É magnífico porque o carisma do centro consiste precisamente em permanecer firme quando tudo ao redor vacila. E é terrível porque em Roma estão homens que tem limites, limites em sua inteligência, limites em seu vocabulário, limites em suas referências, limites no seu ângulo de visão”. E eu acrescentaria ainda limites em sua ética e moral.
Sempre se diz que a Igreja é “santa e pecadora” e deve ser “sempre reformada”. Mas não é o que ocorreu durante séculos nem após o explícito desejo do Concílio Vaticano II e do atual Papa Bento XVI. A instituição mais velha do Ocidente incorporou privilégios, hábitos, costumes políticos palacianos e principescos, de resistência e de oposição que praticamente impediu ou distorceu todas as tentativas de reforma.
Só que desta vez se chegou a um ponto de altíssima desmoralização, com práticas até criminosas que não podem mais ser negadas e que demandam mudanças fundamentais no aparelho de governo da Igreja. Caso contrário, este tipo de institucionalidade tristemente envelhecida e crepuscular definhará até entrar em ocaso. Os atuais escândalos sempre ocorreram na cúria vaticana; apenas não havia um providencial Vatileaks para trazê-los a público e indignar o Papa e a maioria dos cristãos.
Meu sentimento do mundo me diz que estas perversidades no espaço do sagrado e no centro de referência para toda a cristandade – o Papado, onde deveria primar a virtude e até a santidade – são consequência desta centralização absolutista do poder papal. Ele faz de todos vassalos, submissos e ávidos por estarem fisicamente perto do portador do supremo poder, o Papa. Um poder absoluto, por sua natureza, limita e até nega a liberdade dos outros, favorece a criação de grupos de anti-poder, capelinhas de burocratas do sagrado contra outras, pratica largamente a simonía, que é compra e venda de vantagens, promove adulações e destrói os mecanismos da transparência. No fundo, todos desconfiam de todos. E cada qual procura a satisfação pessoal da forma que melhor pode. Por isso, sempre foi problemática a observância do celibato dentro da cúria vaticana, como se está revelando agora com a existência de uma verdadeira rede de prostituição gay.
Enquanto esse poder não se descentralizar e não outorgar mais participação de todos os estratos do povo de Deus, homens e mulheres, na condução dos caminhos da Igreja, o tumor causador desta enfermidade perdurará. Diz-se que Bento XVI passará a todos os Cardeais o referido relatório para cada um saber que problemas irá enfrentar caso seja eleito Papa. E a urgência que terá de introduzir radicais transformações. Desde o tempo da Reforma que se ouve o grito: ”reforma na cabeça e nos membros”. Porque nunca aconteceu, surgiu a Reforma como gesto desesperado dos reformadores de fazerem por própria conta tal empreendimento.
Para ilustração dos cristãos e dos interessados em assuntos eclesiásticos, voltemos à questão dos escândalos. A intenção é desdramatizá-los, permitir que se tenha uma noção menos idealista e, por vezes, idolátrica da hierarquia e da figura do Papa e libertar a liberdade para a qual Cristo nos chamou (Gálatas 5,1). Nisso não vai nenhum gosto pelo Negativo nem vontade de acrescentar desmoralização sobre desmoralização. O cristão tem que ser adulto, não pode se deixar infantilizar nem permitir que lhe neguem conhecimentos em teologia e em história para dar-se conta de quão humana e demasiadamente humana pode ser a instituição que nos vem dos Apóstolos.
Há uma longa tradição teológica que se refere à Igreja como casta meretriz, tema abordado detalhadamente por um grande teólogo, amigo do atual Papa, Hans Urs von Balthasar (ver em Sponsa Verbi, Einsiedeln 1971, 203-305). Em várias ocasiões o teólogo J. Ratzinger se reportou a esta denominação.
A Igreja é uma meretriz que toda noite se entrega à prostituição; é casta porque Cristo, cada manhã se compadece dela, a lava e a ama.
O habitus meretrius da instituição, o vício do meretrício, foi duramente criticado pelos Santos Padres da Igreja como Santo Ambrósio, Santo Agostinho, São Jerônimo e outros. São Pedro Damião chega a chamar o referido Gregório VII de “Santo Satanás” (D. Romag, Compêndio da história da Igreja, vol. 2, Petrópolis 1950, p.112). Essa denominação dura nos remete àquela de Cristo dirigida a Pedro.
Por causa de sua profissão de fé o chama “de pedra”, mas, por causa de sua pouca fé e de não entender os desígnios de Deus, o qualificou de “Satanás”(Evangelho de Mateus 16,23). São Paulo parece um moderno falando quando diz a seus opositores com fúria: “oxalá sejam castrados todos os que vos perturbam” (Gálatas 5.12).
Há, portanto, lugar para a profecia na Igreja e para denúncias dos malfeitos que podem ocorrer no meio eclesiástico e também no meio dos fiéis.
Vou referir outro exemplo tirado de um santo querido da maioria dos católicos brasileiros, por sua candura e bondade: Santo Antônio de Pádua. Em seus sermões, famosos na época, não se mostra nada doce e gentil. Fez vigorosa crítica aos prelados devassos de seu tempo. Diz ele: “os bispos são cachorros sem nenhuma vergonha, porque sua frente tem cara de meretriz e por isso mesmo não querem criar vergonha” (uso a edição crítica em latim publicada em Lisboa em dois volumes, em 1895). Isto foi proferido no sermão do quarto domingo depois de Pentecostes (p. 278). De outra vez, chama os prelados de “macacos no telhado, presidindo daí o povo de Deus” (op. cit. p. 348). E continua: “o bispo da Igreja é um escravo que pretende reinar, príncipe iníquo, leão que ruge, urso faminto de rapina que espolia o povo pobre” (p.348). Por fim, na festa de São Pedro, ergue a voz e denuncia: “veja que Cristo disse três vezes: apascenta e nenhuma vez tosquia e ordenha... Ai daquele que não apascenta nenhuma vez e tosquia e ordena três ou mais vezes... Ele é um dragão ao lado da arca do Senhor que não possui mais que aparência e não a verdade” (vol. 2, 918).
O teólogo Joseph Ratzinger explica o sentido deste tipo de denúncias proféticas: “o sentido da profecia reside, na verdade, menos em algumas predições do que no protesto profético: protesto contra a autossatisfação das instituições, autossatisfação que substitui a moral pelo rito e a conversão pelas cerimônias” (Das neue Volk Gottes, Düsseldorf 1969, p. 250, existe tradução em português).
Ratzinger critica com ênfase a separação que fizemos com referência à figura de Pedro: antes da Páscoa, o traidor; depois de Pentecostes, o fiel. “Pedro continua vivendo esta tensão do antes e do depois; ele continua sendo as duas coisas: a pedra e o escândalo... Não aconteceu, ao largo de toda a história da Igreja, que o Papa, simultaneamente, foi o sucessor de Pedro, a ‘pedra’ e o ‘escândalo’” (p. 259)?
Aonde queremos chegar com tudo isso? Queremos chegar ao reconhecimento de que a igreja - instituição de papas, bispos e padres - é feita de homens que podem trair, negar e fazer do poder religioso negócio e instrumento de autossatisfação. Tal reconhecimento é terapêutico, pois nos cura de toda uma ideologia idolátrica ao redor da figura do Papa, tido como praticamente infalível. Isso é visível em setores conservadores e fundamentalistas de movimentos católicos leigos e também de grupos de padres. Em alguns vigora uma verdadeira papolatria que Bento XVI procurou sempre evitar.
A crise atual da Igreja provocou a renúncia de um Papa que se deu conta de que não tinha mais o vigor necessário para sanar escândalos de tal gravidade. “Jogou a toalha” com humildade. Que outro mais jovem venha e assuma a tarefa árdua e dura de limpar a corrupção da cúria romana e do universo dos pedófilos, eventualmente puna, deponha e envie alguns mais renitentes para algum convento para fazer penitência e se emendar de vida.
Só quem ama a Igreja pode fazer-lhe as críticas que lhe fizemos, citando textos de autoridades clássicas do passado. Quem deixou de amar a pessoa um dia amada, se torna indiferente à sua vida e destino. Nós nos interessamos à semelhança do amigo e de irmão de tribulação Hans Küng (foi condenado pela ex-Inquisição), talvez um dos teólogos que mais ama a Igreja e por isso a critica.
Não queremos que cristãos cultivem este sentimento de descaso e de indiferença. Por piores que tenham sido seus erros e equívocos históricos, a instituição-Igreja guarda a memória sagrada de Jesus e a gramática dos evangelhos. Ela prega libertação, sabendo que geralmente são outros que libertam e não ela.
Mesmo assim vale estar dentro dela, como estavam São Francisco, Dom Helder Câmara, João XXIII e os notáveis teólogos que ajudaram a fazer o Concílio Vaticano II e que antes haviam sido todos condenados pela ex-Inquisição, como De Lubac, Chenu, Congar, Rahner e outros. Cumpre ajudá-la a sair deste embaraço, alimentando-nos mais do sonho de Jesus de um Reino de justiça, de paz e de reconciliação com Deu e do seguimento de sua causa e destino do que de simples e justificada indignação que pode cair facilmente no farisaísmo e no moralismo.
Leonardo Boff é teólogo.
Mais reflexões desta ordem se encontram no meu Igreja: carisma e poder (Record 2005), especialmente no Apêndice com todas as atas do processo havido no interior da ex-Inquisição em 1984.
Comentários
Nos últimos anos a grande mídia burguesa, no nosso país e no mundo, mudou radicalmente sua postura em relação à Igreja Católica: de fiel defensora e enaltecedora dessa instituição e de suas lideranças conservadoras, partiu repentinamente para o duro ataque, com gravíssimas denúncias envolvendo o baixo e alto clero em escândalos sexuais e financeiros.
Não é novidade na história passada ou recente da Igreja a ocorrência desse tipo de perversão, típica de toda instituição política assentada na lógica do poder. Ou seja, já não é de hoje que os detentores da informação guardam, em seu poder, farto material como esse ora divulgado. Portanto, precisamos estar atentos às entrelinhas: há uma deliberada intenção política por trás dessa enxurrada de escândalos noticiados.
A questão com a Igreja, desses veículos de comunicação a serviço dos interesses das elites burguesas, é muito mais profunda do que simplesmente “ganhar ibope” com os seus erros e contradições. Trata-se de um propósito mais ousado: fragilizá-la frente à opinião pública (sendo ela considerada, ainda, a instituição mais confiável) afim de pressioná-la a negociar a adoção de certos valores hoje colocados como paradigma na atual sociedade de consumo.
Do mesmo modo que os setores conservadores da Igreja, fiéis aliados aos donos do grande poder político-econômico, conseguiram entre 1970 e 1990, relegar ao ostracismo a vertente progressista da Igreja, agora estão sendo eles mesmos simplesmente derrubados e descartados por tais grupos dominantes, em face às exigências de renovação do poder do capital sobre as massas.
Continuando a ser, desde a sua cooptação pelo Império Romano, uma instituição imprescindível para o processo da legitimação da ideologia dominante, o objetivo atual do poder econômico é obrigá-la a se inserir mais fortemente também na nova cultura globalizada centrada no paradigma do hiperindividualismo (denominação atual cunhada por alguns antropólogos culturais).
O propósito da implementação desse novo valor é a atomização, em grau máximo, de toda a comunidade humana, visando formar ilhas de indivíduos e grupos a procura da satisfação de demandas próprias, condição necessária para a manutenção e reciclagem da sociedade de consumo.
Sabe-se, entretanto, que há uma grande dificuldade em ganhar a Igreja Católica para esse projeto. Curiosamente – ironia da história – a resistência maior hoje tem vindo justamente do seu campo mais reacionário que, até então, sempre pactuou com o sistema.
Ocorre que dessa vez - e pela primeira vez – por exigência desse novo paradigma implementado, torna-se necessário deslocar-lhe o próprio modelo de espiritualidade, ainda excessivamente centrado no “poder sagrado” do clero, para outro que estabeleça, cada vez mais, a relação direta e privada entre o indivíduo e Deus, sem intermediações humanas, como já acontece na maioria das igrejas pentecostais.
Desse jeito, colocando a Igreja Católica na defensiva, com todos os bombardeios diários de notícias de corrupção, pedofilia, agenciamento de prostituição gay,etc. pipocadas na mídia do mundo inteiro, faz-se possível o aprofundamento da reinstauração, também no ‘ramo da fé’, da mesma lógica cultural já predominante no meio social que vem dando forte sobrevida ao sistema capitalista.
Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2013.
RINALDO MARTINS DE OLIVEIRA
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