A nova guarda pretoriana de Dilma Rousseff
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- João Rafael Diniz
- 05/04/2013
Instituída por César Augusto, primeiro dos grandes imperadores de Roma, a Guarda Pretoriana foi um corpo militar especial, destacado das legiões romanas ordinárias, que serviu aos interesses pessoais dos imperadores e à segurança de suas famílias. Era formada por homens experientes, recrutados entre os legionários do exército romano, e que demonstrassem maior habilidade e inteligência no campo de batalha. No seu longo período de existência (mais de três séculos), a Guarda notabilizou-se por garantir a estabilidade interna de diversos imperadores, reprimindo levantes populares e realizando incursões assassinas em nome da governabilidade do império.
Passou quase despercebido, mas, há algumas semanas, a presidência da República publicou no Diário Oficial o decreto n.º 7.957/2013, que, dentre outros, alterou o decreto de criação da Força Nacional de Segurança Pública. A partir daí, o Executivo passou a contar com sua própria força policial, a ser enviada e “aplicada” em qualquer região do país ao sabor de sua vontade.
Numa primeira análise, chamou a atenção de alguns jornalistas e profissionais da causa ambiental a criação da “Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública”. Essa nova divisão operacional dentro da Força Nacional terá por atribuições: apoiar ações de fiscalização ambiental, atuar na prevenção a crimes ambientais, executar tarefas de defesa civil, auxiliar na investigação de crimes ambientais, e, finalmente, “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”.
Não é preciso lembrar que uma das notícias mais importantes da semana passada foi o envio de tropas militares da Força Nacional de Segurança Pública para os municípios de Itaituba e Jacareacanga, no sudoeste paraense. O objetivo da incursão militar, solicitada pelo ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, é exatamente “apoiar” (leia-se: garantir pela força) o trabalho de 80 técnicos contratados pela Eletronorte para os levantamentos de campo necessários à elaboração do Estudo de Impacto Ambiental dos projetos de barramento do rio Tapajós, para fins de aproveitamento hídrico (construção de hidrelétricas, pelo menos sete delas).
Inconstitucionalidade
A criação dessa companhia especial, seguida da operação de guerra que invadiu terras, inclusive áreas de caça das aldeias indígenas do povo Munduruku, acabou por obscurecer outra pequena alteração efetuada pela presidência no ato de criação da Força Nacional (decreto 5.289/2004), mais especificamente sobre a legitimidade para solicitar o auxílio dessa tropa.
O art. 4º do decreto original tinha a seguinte redação:
“Art. 4º - A Força Nacional de Segurança Pública poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo governador de estado ou do Distrito Federal.
Após a alteração, passou a vigorar assim:
“Art. 4º - A Força Nacional de Segurança Pública poderá ser empregada em qualquer parte do território nacional, mediante solicitação expressa do respectivo governador de estado, do Distrito Federal ou de ministro de estado.”
A inclusão dessas cinco palavras mágicas ao final do artigo 4º acabou por subverter por completo a razão de ser do decreto e, de quebra, burlou as determinações da Constituição Federal sobre a repartição de responsabilidades entre os entes da Federação (municípios, estados e União), o que pode ser considerado inclusive como quebra do pacto federativo. A partir de agora, qualquer ministro de Estado (todos eles subordinados à presidência) pode solicitar ao Ministério da Justiça o emprego da Força Nacional de Segurança Pública em qualquer parte do país, para defender os interesses do governo federal, sem a necessidade de qualquer autorização judicial, nem mesmo aquiescência do governo do estado em questão.
Para entender melhor a gravidade da situação, é preciso ter em mente que a Força Nacional de Segurança Pública não é uma polícia, mas um “programa de cooperação federativa” (art. 1º do decreto), ao qual podem aderir livremente os governos estaduais, e cujo objetivo é a “preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio” em situações excepcionais em que as polícias militares dos estados necessitem, e peçam, o apoio de tropas vindas de outros estados. Isso porque a Constituição Federal determina que a responsabilidade por “polícia ostensiva e a preservação da ordem pública” é das polícias militares dos estados, subordinadas aos respectivos governadores (art. 144, §§ 4º e 5º). À União restam duas possibilidades: intervenção federal no estado (art. 34) ou decreto de estado de defesa (art.136), ambas as situações excepcionalíssimas de garantia da segurança e integridade nacionais, em que serão acionadas as Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica).
A chave para compreender a mudança é que, até o mês passado, era preciso “solicitação expressa do respectivo governador de estado ou do Distrito Federal” para motivar o envio da Força Nacional de Segurança Pública a qualquer parte do país, por tratar-se essencialmente de um programa de cooperação federativa entre estados e União.
Agora não mais. A recente alteração do art. 4º do decreto 5.289/2004 transformou a Força Nacional de Segurança Pública na nova Guarda Pretoriana da presidente Dilma Rousseff. Retirou das mãos dos estados a responsabilidade pela polícia ostensiva e preservação da ordem pública nos locais em que os ministros entenderem ser mais conveniente a atuação de uma força controlada pelo Governo Federal. Esse contingente militar de repressão poderá ser usado contra populações afetadas pelas diversas obras de interesse do governo, que lutam pelo direito de serem ouvidas sobre os impactos desses projetos nas suas próprias vidas e no direito à existência digna, tal como já está ocorrendo com os ribeirinhos e indígenas do rio Tapajós.
Não por acaso, essa profunda alteração no caráter da Força Nacional foi levada a cabo sem maiores alardes, no corpo de um decreto que tratava de outros assuntos. A inconstitucionalidade do ato é evidente, viola uma série de regras e princípios constitucionais, além de atentar contra o próprio pacto federativo, um dos poucos alicerces da jovem república brasileira.
João Rafael Diniz é advogado e membro do grupo Tortura Nunca Mais – SP.
Artigo publicado originalmente em Repórter Brasil.