Anistia: carona para torturadores não!
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- Plínio Gentil
- 29/05/2013
É grande a atualidade da discussão sobre o alcance da anistia, concedida em 1979 pelo governo militar, por lei promulgada para trazer de volta ao cenário militantes sob acusação de crimes políticos contra o regime instaurado em 1964. Por meio de uma interpretação forçada, conservadora e visivelmente conciliadora da Lei da Anistia, tem-se inviabilizado a responsabilização criminal daqueles que, valendo-se das leis então vigentes, mas ultrapassando seus limites, cometeram, com violência, desumanidade e boa dose de sadismo, crimes contra pessoas presas.
Na verdade, a tese da anistia recíproca somente surgiu depois, quando abertamente se conheceu a violência da repressão e foram identificados muitos de seus autores. Estes agora pedem carona num benefício que não foi feito para eles.
A tentativa de estender a anistia aos agentes da repressão, ou torturadores, que praticaram terrorismo de Estado, configura um grave equívoco, o qual, dando-lhes carona num benefício ao qual não têm direito, impede a aplicação da lei penal contra eles e ainda dificulta o registro das mais expressivas violações a direitos humanos da história brasileira recente. Por patético que possa parecer, a corrente defensora da anistia para os dois lados chega ao refinamento de construir uma hermenêutica para legitimar verdadeira fraude jurídica.
O debate acerca dos sentidos da anistia, visto em sã consciência e com boa fé, não pode conduzir a outra conclusão que não seja a de que nunca foi cogitação do governo, em 1979 - nem isso pode ser lido no texto legal -, anistiar os integrantes da repressão política patrocinada pelo Estado – mesmo porque, naquele momento, ninguém pensava que um futuro e remoto governo civil, mesmo de oposição, tivesse força suficiente para promover, ou sequer permitir, o surgimento de uma tal discussão.
Em resposta aos argumentos que querem impor a tese da anistia de mão dupla, diga-se o seguinte: 1) não é verdade que a anistia tenha decorrido de um acordo entre as partes, tanto assim que a oposição votou contra o projeto de lei do governo, afinal aprovado, por pequena margem de votos; 2) trata-se de crimes imprescritíveis e insuscetíveis de anistia; quem o diz é a Constituição (art. art. 5º, XLIII e XLIV) e contra ela, expressão do poder constituinte originário, não prevalecem direitos eventualmente adquiridos anteriormente; 3) é impossível reconhecer conexão entre os delitos dos torturadores e os de suas vítimas: crime conexo é aquele cometido na mesma linha de desdobramento de outro, o que não ocorre quando se trate de infrações de enfrentamento de uma parte contra a outra; 4) não provada a morte da vítima, mas apenas o fato de que foi privada de sua liberdade, o delito é sequestro, com ocultação de cadáver, não homicídio; esses crimes são classificados como permanentes, quer dizer, continuam acontecendo enquanto não for provado que cessou a privação de liberdade do sequestrado, ou o cadáver não for localizado, sendo presumível que os autores deste delito sabem onde se encontra escondido; 5) não adianta a lei declarar alguém morto (como fez a Lei n. 9140/95, visando a fins exclusivamente civis), pois, para o direito penal, o que importa é o fato: se houve morte, então ela deve ser provada; não o sendo, a vítima está, supostamente, viva; 6) a propósito do assunto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, com atribuição para julgar o cumprimento de pactos sobre direitos fundamentais pelos Estados signatários (e o Brasil assinou o Pacto de S. José da Costa Rica), determinou, em novembro de 2010, que "o Estado (brasileiro) deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação dos fatos [...] a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções"; a Corte também decidiu que a responsabilidade criminal dos autores deve ser promovida em prazo razoável e que, “por se tratar de violações graves aos direitos humanos, o Estado não poderá aplicar a Lei de Anistia em benefício dos autores e tampouco disposições análogas, como prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada ou qualquer excludente de responsabilidade”.
Além disso, na origem do projeto da Lei de Anistia, é sabido que os militares no poder desejavam excluir do benefício os chamados crimes de sangue, dos quais resultaram lesões graves ou mortes, o que obviamente descarta qualquer cogitação, naquele instante, de anistiar os agentes da repressão, campeões desses resultados. Tanto que, após a entrada em vigor da lei, muitos adversários do regime, que estavam no exílio, não puderam, de imediato, voltar ao país, somente o fazendo mais tarde, por conta da redução de suas penas e de uma interpretação favorável do Judiciário.
Deve ser lembrado, ainda, que o instituto da anistia destina-se a extinguir a punibilidade relativamente a crimes políticos. Para o mal ou para o bem, os opositores do sistema atuavam tendo por meta a derrubada do governo e a ruptura do regime político. Os torturadores que os caçaram apenas agiam na repressão àqueles crimes políticos e, ao torturar, matar e ocultar corpos, cometiam delitos comuns, contra pessoas desarmadas ou presas. Anistia para torturadores? Não, Código Penal neles.
É o próprio modelo político-jurídico liberal que dispõe sobre a responsabilização criminal dos infratores. Punir delinquentes nada tem de revolucionário, ao contrário, é ato de afirmação da autoridade estatal. Além do que, a preservação da memória, pela qual tanto se trabalha ultimamente, só se completa com a aplicação da sanção penal aos culpados. E, por último, nenhuma conciliação é possível em termos tão desiguais: de um lado, mortos e desaparecidos, de outro, os seus algozes, de óculos escuros e exalando arrogância, dando entrevistas como se nada devessem à nação brasileira. “O contrário de esquecimento não é só memória, é justiça”, como sugere a epígrafe assinada por Yosef H. Yerushalmi na obra Memoria y dictadura, editada por Asamblea Permanente por los Derechos Humanos e Instituto Espacio para la Memoria, de Buenos Aires (s/d).
A pena redime, previne e, relembrando o erro, inibe a sua repetição. A falta de justiça no caso dos torturadores deixa uma ferida permanentemente aberta. A busca por uma justiça que não chega é como o olhar através da névoa: o que parece serem imagens acaba se desvanecendo, tornando-se uma sombra fugidia. Sombra... Algo como a procura por um ente querido, que se viu “desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu. O ‘desaparecido’ transforma-se numa sombra que, ao escurecer-se, vai encobrindo a última luminosidade da existência terrena” (1).
Nota:
(1) De Paulo Evaristo Arns, cardeal arcebispo de S. Paulo, no prefácio do Brasil: nunca mais, 03/maio/1985.
Plínio Gentil é doutor em Direito (PUC-SP) e em Fundamentos da Educação (UFSCar), pesquisador do Grupo Educação e Direito, da UFSCar, e professor universitário de Direito Penal, Processo Penal e Ciência Política. Procurador de Justiça criminal no Estado de S. Paulo e integrante do Movimento do Ministério Público Democrático, é autor de obras de direito, política e educação (Saraiva, Elsevier, Boreal etc.).
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