Correio da Cidadania

Cotas destróem princípios de igualdade

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Em entrevista dada à revista Páginas Abertas e republicada por este Correio, o historiador Mário Maestri analisa a história do racismo no Brasil e as políticas sociais relacionadas aos afro-descendente que vêm sendo implementadas no país pelo governo Lula.



Páginas Abertas: Quais são as raízes históricas do racismo no Brasil?


Mário Maestri: Sobretudo a partir do século 18, o racismo moderno justificou o colonialismo e, a seguir, o imperialismo europeu com a proposta da existência de raças superiores e inferiores. Os europeus pertenceriam à raça superior, logicamente. Portanto, o colonialismo e o imperialismo ajudariam africanos, americanos e asiáticos incapazes de civilizarem-se devido a qualidades inferiores inatas, raciais. Em verdade, os colonizados deveriam agradecer aos colonizadores. A ciência terminou refutando o próprio conceito de raça. Todos os homens e mulheres são essencialmente iguais, já que pertencem a uma só espécie. O resto, é ideologia, ou seja, falsa consciência.


PA: Como se deu a inclusão social do negro após a Abolição? Por que a maioria pobre no Brasil é também coincidentemente negra?


MM: Antes da Abolição, havia afro-descendentes escravizados e livres. Uma parte ínfima dos escravizadores era afro-descendente. Os cativos libertados em maio de 1888 possuíam frágeis laços familiares e escassa formação profissional; não tinham capital ou terras; a escravidão os havia desorganizado para o trabalho livre. Em geral, eles diluíram-se nos segmentos urbanos e rurais explorados do Brasil, constituindo comumente seus setores mais pobres. O racismo aprofundou aqueles handicaps negativos. Devido a isso, nas regiões do Brasil com fortes populações afro-descendentes, as comunidades negras encontram-se entre os segmentos mais pobres. Ou seja, é bom não esquecer que a origem atual da pobreza de setores da população afro-descendente brasileira é sobretudo econômica e social, ainda que o racismo contribua para tal realidade. A população negra é grande parte mas não é a maioria da população pobre do Brasil.


PA: No Brasil, houve barreiras institucionais aos negros após a Abolição, como nos Estados Unidos?


MM: Os racismos brasileiro e estadunidense têm histórias diversas em sua identidade. Nos EUA, por séculos, e mesmo depois do fim da escravidão, a segregação racial foi política oficial ou oficiosa. Um cidadão desclassificava-se socialmente se tivesse apenas uma gota de "sangue" africano, por mais "branco" que fosse. Devido a sua fragilidade, o colonialismo português associou, em situação subalterna, segmentos das populações dominadas. No Brasil, a miscigenação praticada desde os primórdios coloniais ensejou que o racismo decrescesse na medida que diminuía a afro-descendência. O pardo rico era – como ainda é – tido e havido como branco. O racismo no Brasil é sobretudo contra o negro-preto e pobre. Já no Império, afro-descendentes livres tornaram-se, devido à sorte e ao esforço, ministros, senadores, advogados, engenheiros, sacerdotes, escritores consagrados, etc.


Machado de Assis é o caso mais exemplar desse fenômeno. A população negra socialmente ascendente terminou embranquecendo, por casamento, ao contrário do que ocorria normalmente nos EUA. No Brasil, o peso da discriminação racial recaia forte sobre os cativos e a população afro-descendente pobre. Profundamente elitista, a República decretou o princípio da igualdade plena de cidadania, enquanto boa parte de seus intelectuais orgânicos impulsionou o “racismo científico”.


PA: No Brasil, os brancos impediram também a ascensão social dos negros, como nos EUA?

 

MM: É um mito dizer que o trabalhador e o pobre brancos favoreceram-se com o racismo. Devido à posse latifundiária da terra, também a história da nossa população imigrante é diversa da dos Estados Unidos. Sobretudo após 1822, camponeses sem terra de língua alemã e italiana receberam-pagaram por nesgas de terra, que frutificaram com seu trabalho, sem servir-se de cativos. A imensa maioria dos imigrantes e de seus descendentes apenas conseguiu sustentar-se, apesar das visões mitológicas do sucesso eterno da imigração européia. No final da escravidão, famílias, sobretudo italianas, trabalharam na cafeicultura, de expansão há muito limitada pela falta de braços. Eles viveram também de seu esforço e não foram jamais privilegiados.


Uma enorme parte dos descendentes de imigrantes proletarizou-se. Dizer que a maioria dos pobres do Brasil é negra é também um mito. Em muitas regiões do Brasil, a maioria da população explorada descende de nativos (Pará, Piauí, Ceará, etc.) ou de europeus (RS, Santa Catarina, Paraná) e não de africanos. O desemprego e a super-exploração do trabalhador negro pelo capital deprime também o valor do salário do trabalhador branco. A luta contra o racismo é necessidade do mundo do trabalho, como um todo.


PA: A proposta da aplicação de políticas raciais, por força da lei, se assenta na premissa de que a sociedade brasileira é racista. Esta afirmação é verdadeira?


MM: Não é totalmente correta. Já é um truísmo dizer que a “ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. No Brasil, o preconceito contra negros, nativos, nordestinos, ciganos, mulheres, homossexuais, minorados e, sobretudo, pobres, é corriqueiro e constantemente reforçado pela grande mídia, pelo cinema, pela literatura, pela linguagem, pela escola, etc. Veja-se a histeria da grande imprensa contra os favelados no Rio de Janeiro.


Esses preconceitos são funcionais em uma sociedade que se organiza para legitimar e reproduzir a exploração e, portanto, as diferenças sociais, raciais, sexuais, etc. Porém, na nossa sociedade, pulsa também, em forma não raro forte, idéias nascidas da história e dos valores do mundo do trabalho que apontam para a igualdade, fraternidade, solidariedade. Isso é muito forte nas comunidades populares e trabalhadoras das cidades e campos. A proposta que a sociedade brasileira é racista constitui parcialidade de realidade complexa. Se o Brasil fosse homogeneamente racista, por que se está aplicando, com tanta facilidade, o princípio de “cotas raciais”, aceito pela população como meio de reparação?


PA: Como a lei pune as manifestações racistas no Brasil? Como elas são vistas e combatidas hoje?


MM: A legislação pune penalmente o racismo contra o negro no Brasil. Uma legislação que deveria ser aprofundada e estendida a outras minorias, como a comunidade homossexual, sobretudo masculina, achincalhada pela política, pela mídia, pela legislação, etc. Porém, mais comumente, o ato racista anti-negro permanece impune, perdendo a lei o caráter exemplar e, portanto, preventivo. Uma impunidade, a bem da verdade, muito vasta, no nosso país, considerando-se a prevaricação incessante de nossos políticos e administradores.


O mais valioso no Brasil é a sanção social bastante generalizada contra o racismo explícito. Nos EUA, mesmo punido pela lei, o racismo goza de prestígio e apoio entre enorme população. No Brasil, o racismo é tido e considerado dominantemente como violência resultante da ignorância. O racista é obrigado a esconder ou expressar indiretamente suas visões. Mais comumente, a agressão racista – ou vista como racista – causa comoção e reação popular imediata. Esse é um patrimônio nacional que deve ser preservado e ampliado.


PA: Segundo estudo da Organização Internacional do Trabalho, a discriminação racial seria a razão fundamental das diferenças de remuneração e acesso ao mercado de trabalho. Ele mostraria que as mulheres negras têm salários menores, mesmo quando estudam mais que as brancas. As cotas podem ajudar, ou não, na superação dessa realidade?


MM: Esses estudos e levantamentos trazem embutidas visões e propostas ideológicas precisas, com destaque para a de que não haveria exploração de classe, mas discriminação racial. Portanto, a sociedade não necessitaria ser transformada, mas apenas educada. Se o mercado de trabalho é regido essencialmente pelas questões raciais, porque há tão poucos negros nos cargos preenchidos por concurso?


O grande discriminador é a riqueza - ao qual se agregam, sem dúvidas, as discriminações de raça, sexo, etc. Qualquer estudo mostrará que os salários dos homens negros são superiores ao das mulheres negras, ou que o filho de médico negro se dá melhor na vida do que o de um lixeiro branco. Nesse caso, mesmo agindo o handicap negativo racial, a riqueza e suas materializações – nível cultural familiar; acesso à informação; expectativa familiar, etc. – terminam dominando.


Não é por nada que os grandes organismos mundiais – OIT, BIRD, Banco Mundial, FMI, etc. – defendem as “cotas raciais”. Elas desorganizam as reivindicações unitárias e gerais do movimento popular, permitindo, assim, que os recursos públicos não sejam investidos nas necessidades da população, mas abocanhados pelo capital financeiro. E no frigir dos ovos, as “políticas de cotas” não resultam em nada para a grande população negra explorada.


PA: Por que o senhor propõe que as cotas desorganizam o movimento social, impedem investimentos sociais, não resultam em nada para a população negra pobre?


MM: A população, como um todo, tem o direito constitucional a um mínimo de educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, etc., de qualidade. É dever constitucional do Estado garantir que essas necessidades sejam satisfeitas. No Brasil, todo jovem negro – ou branco, pardo, amarelo – que termina o secundário tem o direito inalienável de entrar na universidade e ser sustentado durante os estudos, se não tiver recursos. E não digam que um país rico como o Brasil não tem recurso para tal: a pequenina e pobre Cuba consegue garantir educação e saúde para todos!


Porém, satisfazer esses direitos exigiria desviar recursos entregues, legal ou ilegalmente, aos grandes interesses nacionais e internacionais: altos juros, pagamento da dívida, isenções fiscais, corrupção. Portanto, propõe-se que, em vez desses investimentos pesados, se democratize racialmente o privilégio - ou seja, se assegure algumas das cada vez mais raras vagas do ensino público superior a afro-descendentes.


É uma medida que não exige investimento de um tostão sequer. Vagas que serão preenchidas sobretudo pelos filhos das classes médias negras, enquanto as multidões de jovens negros e pobres continuarão marginalizadas dos bens materiais e imateriais. Até agora, a seleção dos postos nas escolas universitárias públicas não foi, jamais, por raça, mas por riqueza. Entram maciçamente os filhos dos pais ricos, que, no Brasil, são sobretudo brancos pelas razões históricas que já examinamos. Nas escolas federais de Medicina encontraremos um e outro estudante negro, mais comumente também filhos de ricos. Não encontramos, certamente, nenhum filho de pedreiro, por mais branco que seja!


PA: No Brasil, a miscigenação racial é valor cultural nacional. A adoção de cotas não contribuiria para fortalecer a segregação racial e o racismo? No livro Divisões Perigosas, o senhor aponta para racialização do país e combate a idéia de que o preconceito racial é que define as desigualdades sociais. O que é a racialização?


MM: A enorme miscigenação racial brasileira é realidade nacional objetiva. Estudos genéticos propõem que em torno de noventa por cento dos brasileiros tenha ao menos dez por cento de ancestralidade africana. Demonstram também que não é a pele mais escura que determina necessariamente maior ancestralidade africana. Os mesmos pais podem ter filhos de cor diferente.


Por outro lado, o racismo é realidade cultural dominante, como assinalado. A representação oficial da mulher brasileira, como mostram os concursos de beleza, é a mulher branca, loira e alta, que tem muito a ver com a brasileira média. O gosto popular fica, porém, com a morena! Portanto, o próprio gosto popular médio rejeita a mulher negra, na acepção do termo, ainda que incorpore no padrão de beleza a contribuição africana.


As cotas são parte de proposta de racialização geral que quer reorganizar legalmente o país segundo critérios raciais arbitrários. Nessa reorganização, propõe-se definir necessariamente como negro todo brasileiro que não seja totalmente branco. Uma classificação que, de per si, acaba discriminando a população fortemente negra, objeto real do racismo. Essa proposta propõe tratamento da população segundo a cor, na educação, saúde, trabalho, política, lazer, etc. Uma história do Brasil para negro, outra para brancos. Partidos, sindicatos, igrejas, etc. para negros e para brancos, divididos.


Portanto, nega e destrói os princípios cidadãos de igualdade, solidariedade e fraternidade que, mesmo não respeitados, são objetivos que unificam a luta da nacionalidade para um país para todos. Sobretudo, essa proposta traz embutida a manutenção da realidade social geral do país, a não ser quanto à construção de uma classe política e média negra um pouco maior. Exatamente como nos EUA, onde, após quase meio século de cotas, temos alguns Colin Powell, Condolezza Rice, etc. gozando a vida em direta, enquanto a maioria da população negra continua mergulhada em uma miséria apenas diferente da conhecida após o fim da escravidão, em 1865. Nos fatos, a política de cotas é política também contra os pobres e os trabalhadores negros.


PA: Quais seriam as soluções para resolver os problemas da população negra?


MM: A única e real solução é a luta, no aqui e no agora, pelo reconhecimento dos direitos civis e econômicos mínimos, para todos os brasileiros, como assinalado. Talvez não obteremos tudo agora, mas podemos obter muito, mesmo, desde já.


Ou seja, temos que exigir um mínimo de educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, etc., de qualidade, para todos os brasileiros, como proposto. O resto é fantasia, é demagogia, é fumaça nos olhos da população pobre e necessitada. Essas políticas democráticas, republicanas e sociais universalistas não impedem, mas, ao contrário, exigem, políticas particulares orientadas para setores singulares necessitados da população – negros, nativos, minorados físicos, etc. Mas não podem ser jamais política de “cotas”, que contemplem alguns privilegiados. Devem ser políticas que contemplem todos os que, de alguma maneira, sofrem discriminação: negros, nativos, minorados físicos, etc.


O que diríamos se a correta política atual de assistência gratuita a todos os doentes de AIDS, por questões econômicas, começasse a abarcar apenas uma cota dos necessitados, condenando todos os outros à morte?

 

 

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