Voto secreto conduziu a 'golpe de Estado'
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- Valéria Nader
- 19/09/2007
O pântano em que está imersa a vida política nacional pode ser percebido pelo conjunto da população, ainda que com diferentes ênfases e sob colorações diversas. Talvez mais preocupante do que a perversidade atual da política seja, no entanto, a obtusidade, parcialidade e imediatismo – a se escolherem - das análises, midiáticas e intelectuais, sobre esse cenário.
Desde as visões sobre a inexistência de uma crise institucional - já que estão formalmente em funcionamento as instituições -, até aquelas que enfatizam a paranóia dos pessimistas - já que inexiste a possibilidade de golpes armados ou que estamos diante de um governo fortalecido pela figura presidencial -, caminha-se meio a uma enorme aridez do pensamento. Sem a pretensão de esgotá-lo, mas procurando avançar para um entendimento mais amplo da crise política, conversamos longamente com o professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano.
Nessa primeira parte de sua entrevista, reproduzida abaixo, o filósofo nos explica por que estamos diante de mais um dos sutis golpes de Estado que vêm sendo impingidos em série à população, ainda que se abstendo do uso de armas. A segunda parte será também logo publicada nesse veículo, abordando como se podem abrir novos caminhos para o país.
Correio da Cidadania: Algumas análises relativas à conjuntura política brasileira atual, por parte de sociólogos, cientistas políticos, jornalistas etc., acreditam não estarmos vivendo um quadro de crise institucional, entre outros motivos, porque estamos diante de uma forte figura presidencial, como atesta o lulismo. Qual a sua opinião sobre isso?
Roberto Romano: Acho muito estranho que se queira deduzir da fortaleza popular do titular do cargo de presidente da República uma situação de plena normalidade no campo do Estado, que é uma instituição muito mais ampla e muito mais complexa. Em primeiro lugar, parece-me que os analistas deveriam ficar atentos para o fato de que toda a divisão dos poderes está profundamente embrulhada atualmente no Brasil. Em um país que é uma República Federativa, na qual os três poderes são distintos, cada um com a sua função, você tem um Executivo que legisla, através de medidas provisórias, e um Congresso que, na verdade, está muito mais ligado aos interesses executivos dos governos regionais do que propriamente pensando as grandes questões da federação.
Inclusive, boa parte dos cálculos do governo para conseguir maioria e para isolar a oposição vale-se dessa ligação visceral de deputados e senadores com os governos estaduais e seus municípios.
A Justiça, por sua vez, está começando a dar os seus primeiros passos no sentido de uma reação, para aplicar a lei universalmente, apesar do foro privilegiado dos políticos.
Essa situação já mostra que temos um disfuncionamento da República.
CC: Esse disfuncionamento caracteriza um quadro de crise institucional? Ou não seria essa uma designação adequada?
RR: O que eu digo é o seguinte: a definição da crise vem da comparação dos modelos com a realidade efetiva, com o que se passa no dia a dia, com aquilo que os filósofos chamam de "empírico". Aqueles que dizem que não têm modelo certamente estão equivocados; todos nós, inclusive os cidadãos comuns, temos em nossa cabeça um modelo de Estado, sem o qual ninguém conseguiria viver.
Quando se fala do modelo, o modelo é aquele fornecido pela Constituição de 1988. Nesse modelo, há a República Federativa, a divisão dos Poderes e a sua autonomia. Isso não está existindo. Quando se compara o modelo de 1988 e o cotidiano dos Poderes, percebe-se uma disfunção. Trata-se, assim, de indício de uma séria crise de passagem da idéia para o fato - a não ser que se considere normal pensar de uma maneira e agir de outra. De um ponto de vista ético é péssimo; quem pensa de um jeito e age de outro modo ou é hipócrita, ou é covarde ou é demagogo.
Ninguém exige de nenhum ser humano, de nenhuma sociedade, que o modelo exista perfeitamente em sua encarnação real. Mas se a distância é tamanha e ainda se diz que não existe problema nessa distância, aí estamos muito mal. Se não há esse paradigma federativo, republicano e democrático, não há como julgar o funcionamento das instituições.
CC: Como poderíamos encaixar os atuais acontecimentos do Senado nesse paradigma?
RR: Nesse caso, temos gravíssimos atentados ao paradigma. Foi erguida a bandeira do regimento do Senado. Inclusive, alguns senadores falaram de "soberania" da Casa, o que mostra que estamos em mãos muito complicadas. É muito grave que um senador não saiba que a soberania é do povo, delegada para os três Poderes conjuntamente. Só existe soberania do Estado, não pode existir soberania do Executivo, do Legislativo e do Judiciário separadamente; a soberania é um conceito que só opera e só pode ser aceito quando os três Poderes estão reunidos e operando harmonicamente.
O povo delega ao Estado a sua soberania: no caso do Poder Executivo e do Legislativo, via eleições; e, no Judiciário, através de concursos públicos, provas e títulos. As condições para que esses três Poderes exercitem a soberania precisam derivar, em primeiro lugar, da vontade popular; em segundo lugar, precisam estar harmonizados.
Essa declaração é mais do que uma tolice; é um atentado ao bom senso e ao saber alguém dizer que o Senado tem soberania. Isso não existe. Muitas coisas se deduzem daí.
CC: São freqüentes alusões, de intelectuais e de jornalistas, ao fato de que o Senado, assim como o Executivo, têm sido alvo constante de ataques da mídia e da opinião pública, insinuando-se, dentre outros, que não estariam tendo assegurado seu direito de defesa. Qual a sua opinião sobre isso?
RR: O direito de defesa é algo sagrado em todo sistema que não é bárbaro. Se você tem o totalitarismo, o fascismo, aí desaparece o direito de defesa. Em qualquer sistema, inclusive em muitas ditaduras, esse direito existe. É exagerado dizer que Renan Calheiros está perdendo o seu direito de defesa pela mídia.
Eu fui preso político e passei um ano e pouco na cadeia, e fui absolvido durante o regime militar, por uma junta de juízes militares. Muita gente foi absolvida e muita gente foi defendida por bravos advogados; foi-lhes assegurado o direito de defesa. O que tínhamos na época do regime militar era a força armada, a força bruta, definindo a ordem política. Nós não temos isso hoje. Eu desconheço qualquer instrumento da mídia que tenha tanques, polícia torturadora, censura e coisas do tipo. Falar que uma pessoa, sobretudo uma pessoa poderosa, perdeu seu direito de defesa porque a mídia a está atacando ou trazendo fatos ao conhecimento público é um sofisma mais do que primário, é uma desculpa esfarrapada.
CC: As atuais e constantes alusões de que Senado deve ter uma atuação autônoma em relação às demandas da opinião pública e à interferência midiática não passam, portanto, de repetições inócuas, cujo intuito seria sugerir a existência de restrições à atuação dessa instituição?
RR: Exato. O princípio democrático é o princípio da responsabilização. Sem ele, não existe democracia. O povo é soberano se ele puder cobrar dos seus delegados a missão que lhes foi prometida. Quando todos os senadores, deputados e outros homens políticos assumem cargos, eles os assumem com o compromisso de obedecer à Constituição, de guardar as leis e, sobretudo, obedecer ao povo soberano.
Qual é o soberano que aceita que seu delegado tenha autonomia em relação a ele? Isso não existe. Outra coisa é a autonomia dos indivíduos, dos grupos, dos municípios, a autonomia universitária, a autonomia da consciência.
Eu desconheço uma contribuição tão ligada à idéia de autonomia quanto a Constituição de 1988. É uma Constituição de cunho kantiano, baseada nas idéias de Emmanuel Kant. Uma das "flores" da Carta é justamente a autonomia do Ministério Público, o que ajudou a levantar muitas falcatruas na República e que espero que ainda ajude a levantar muitas outras.
Agora, quando o MP levanta essas falcatruas, ele não parte do zero. Ele parte, em primeiro lugar, do clamor público; em segundo lugar, do próprio comportamento das autoridades; e, em terceiro lugar, das notícias veiculadas pela mídia. Posteriormente sim, pode-se dizer que um promotor público erra pesadamente se ele faz um processo a partir desses três elementos sem nenhuma investigação. Daí a luta para que o Ministério Público tenha assegurado o direito de investigação, algo que está sendo questionado no Supremo justamente por um conjunto de políticos extremamente pouco ortodoxos em termos de afinidade pública.
CC: A atuação do Ministério Público tem sido, portanto, e em contraposição à de outras instituições, reveladora de uma autêntica República?
RR: Sem dúvidas. É uma das flores mais bonitas da Constituição de 1988, é algo que nos dá uma certa tranqüilidade. Não por acaso, nas pesquisas de opinião sobre respeitabilidade das instituições, em primeiro lugar fica a Igreja, em segundo, as Forças Armadas e, em terceiro, o Ministério Público.
É um absurdo que membros do Senado sejam tão ignorantes do país e do regime nos quais eles se movem a ponto de dizerem que um deputado ou um senador possam ser autônomos em relação à opinião pública. Enquanto indivíduo, ele tem todo o direito de decidir e votar segundo a sua consciência; no entanto, essa consciência não está situada fora do Estado. Ela está ligada a um país com problemas definidos e a uma representação política que exige determinadas opções, entre elas a da publicidade e a da responsabilidade.
Se você não tem publicidade e não tem responsabilidade, e se o legislador não obedece às leis, não existe país, voltamos à barbárie. Como exigir que um operário que trabalha em condições terríveis, levanta às quatro da manhã, é fiscalizado por um fiscal quando vai ao banheiro, recebe um salário absolutamente irrisório e é ameaçado, inclusive, no retorno à sua casa obedeça às leis, se o legislador não obedece?
CC: O voto secreto seria, portanto, uma excrescência?
RR: Uma excrescência, uma perversidade. Eu diria sem temor de errar que foi um golpe de Estado. Sou leitor dos textos da razão de Estado, e o primeiro texto sobre golpes de Estado, de Gabriel Naudé, datado de 1648, diz que tais golpes são urdidos em segredo, à noite, de tal modo que no dia seguinte, quando a cidadania toma consciência do golpe, tudo já está decidido e não há mais o que fazer naquela conjuntura.
Nós estamos acostumados a unir golpe de Estado à intervenção soldadesca na política. Mas não é isso; um golpe de Estado é a mudança sigilosa das regras públicas que valem para o conjunto dos cidadãos e que são modificadas por um grupo, em proveito desse grupo.
Nesse sentido, podemos considerar que vários planos econômicos brasileiros foram golpes de Estado, pois feriram direitos fundamentais do sistema político vigente. O Plano Collor foi um confisco feito à noite e anunciado de manhã. É muito interessante o fato de que todos os planos econômicos são urdidos à noite e, de manhã, o cidadão toma conhecimento, pelos jornais, sem ter o que fazer.
CC: Temos sido vítimas, então, de golpes em série, não?
RR: Exatamente. Eu não tenho nenhum problema de dizer que o que ocorreu no dia 13 foi um golpe de Estado.
CC: E o que talvez seja pior é que os golpes não são hoje escancarados pelas armas, irrompem sutilmente, mas com todas as suas conseqüências, tão ou mais pernósticas.
RR: Sim, exato. O golpe de Estado é justamente essa inversão da ordem jurídica. Quando os senadores passam a dizer que são autônomos, começa uma tendência de golpe, perceptível quando vão contra a opinião pública e denunciam a imprensa. Ninguém considera que a imprensa seja um conjunto angélico, sem nenhum interesse econômico e político. Ela é uma atividade social, econômica, política e ideológica. Mas tem um elemento que precisa ser levado a sério, que precisa ser checado. No caso de Renan Calheiros, não foram duas ou três, mas sim uma quantidade muito grande de evidências trazidas por órgãos de imprensa dos mais diversos.
Há ainda que se considerar que a versão daqueles que apóiam Renan também encontrou veículos na imprensa. A revista Carta Capital é o testemunho disso. Ademais, há setores da imprensa que não pertencem à grande mídia e que possuem atividades importantes, procurando entender os fatos sem uma linha definida a priori. Mas se um jornal ou uma revista possui uma determinação a priori, a questão não é essa determinação, e sim se a notícia é falsa ou não.
Gosto de citar uma anedota contada por Hegel para aqueles que acham que a filosofia é muito abstrata e que não fala de problemas cotidianos. Havia uma velhinha que vendia ovos na feira e, um dia, uma mocinha bonita, elegante, bem vestida, chegou à sua venda e disse que os ovos que havia comprado na semana anterior estavam podres. A velhinha, então, começou a dizer à moça que todos na vila sabiam que a mãe dela havia fugido com um soldado francês e que todos também sabiam da maneira como ela arrumava dinheiro para se vestir bem e ser tão elegante - ou seja, a velhinha, para escapar da acusação de que havia vendido ovos podres, afirmou que a moça era prostituta. Ora, seja ela prostituta ou não, o que importa é que os ovos estavam podres. Quando se tem um veículo da mídia, ele pode ser até mesmo uma prostituta, mas é preciso checar se o que ele diz é verdade ou não. E essa prova, no caso de Renan Calheiros, está no fato de que ele não passou no Conselho de Ética, em meio a um processo conturbado.
CC: Essa anedota e a sua alusão à mídia trazem inclusive à mente a polêmica em que esteve recentemente envolvido o Supremo Tribunal Federal, onde se questionou muito a ética da mídia, que deu publicidade a emails que haviam sido filmados na sala de um ministro, em meio a uma entrevista.
RR: O STF é uma das forças mais altaneiras e separadas da vida comum da população, com aquela coisa de lá ficarem decidindo como se fossem deuses. No entanto, em termos de transparência democrática, você sabe até os emails que um ministro passou para outro. Se você compara isso com a opacidade do processo do Senado, fica fácil perceber que a Casa está em descompasso com o Estado Democrático de Direito.
O que acho sintomático é que o Senado foi idealizado justamente depois da Revolução Francesa, na contra-revolução. Na Inglaterra, a Câmara dos Lordes sempre existiu - foi questionada e fechada durante a Revolução Puritana, mas voltou imediatamente. Na França, nunca existiu isso. Quando houve a Revolução, definiu-se o padrão do representante na Assembléia Nacional. Com Napoleão Bonaparte e depois com a contra-revolução é que surgiu essa idéia do Senado como um instrumento conservador.
Nos Estados Unidos, o Senado teve também um papel de frear o ardor revolucionário de muitos estados que tinham laços intensos com a França e com idéias jacobinas. Alguns estados já possuíam, inclusive, teses que prenunciavam o anarquismo, que se recusavam a reconhecer a dívida externa e a dívida interna. Criou-se daí um problema seríssimo e foi a Guerra da Secessão que mostrou, posteriormente, que a Federação norte-americana não estava tão bem cimentada.
O Senado foi criado para dirimir as querelas entre os estados. Então, quando há um Senado, a Federação não está assim tão bem. No nosso caso, o Senado já nasceu conservador. Como a nossa estrutura de Estado sempre foi de centralização no Executivo, os nossos municípios e os nossos estados não têm autonomia efetiva. Tudo se decide em Brasília.
Há uma quase inutilidade do Senado. Se é para trazer ao Executivo as aspirações das cidades, das regiões, há o mandato dos deputados federais. Agora, se é para discutir os problemas da Federação, o Senado deveria ter um papel altamente independente do Executivo - deveria ser uma instância que garante, inclusive, a autonomia.
O que acontece, na prática, é que o Executivo deixa de pagar dívidas importantes para os estados - caso da Lei Kandir, por exemplo - e o Senado é impotente, não faz nada.
CC: O senhor estaria defendendo, porventura, o unicameralismo, em função do conservadorismo no Senado?
RR: Não defendo essa idéia justamente por causa dessa super-centralização e porque, no meu entender, só teremos alguma justiça e alguma abertura para uma política pública democrática se os municípios e os estados adquirirem mais autonomia. O Senado é um instrumento que poderia ajudar nesse processo, desde que entrasse de fato em suas funções. Se não cumpre essa função, é realmente inútil; o senador hoje é um escapista de luxo que consegue recursos.
Por que Antonio Carlos Magalhães era tão apoiado na Bahia? Primeiro, por sua truculência e violência ditatorial, mas também porque assegurava recursos para a Bahia. É só ir para lá para ver que a primeira coisa que as pessoas dirão é que não concordam com ACM, mas que sem ele não haveria recursos para o estado.
CC: Quanto ao golpe de Estado que está nos vitimando nesse momento, induzido desta vez pelo voto secreto, são raras as vozes, midiáticas e intelectuais, que levantam esse tipo de análise. Isso não é preocupante?
RR: O que eu acho é que temos muita apreensão da conjuntura microeconômica, mas muito pouca visão da macroeconomia. São raros os grupos políticos que pensam o país em termos estruturais, nem mesmo as universidades conseguem fazer algo assim.
Tenho muitas críticas sobre a igreja, mas não se pode negar que ela sempre tem um plano de metas. Não foi por acaso que a Sudene surgiu com o apoio decisivo da CNBB - a Igreja sempre tem essa visão e usa intelectuais, pareceres de assessores etc. Os bispos, quando se reúnem, partem de uma visão da realidade que não é ingênua. Podemos até questionar essa visão, mas é fato que parte de dados estatísticos, sociológicos, demográficos etc. produzem uma estratégia.
Nossos partidos políticos são todos eleitoreiros e conjunturais. A estratégia deveria estar em seus programas, que são quase exclusivamente cartoriais. Não existem programas para valer e, mais além, são poucos os partidos políticos que fazem convergir sua prática ao seu programa.
Há uma velocidade muito grande da vida prática, os eventos vão se acumulando, e você não tem uma planificação de longo alcance. Lula convidou, por exemplo, Roberto Mangabeira Unger para fazer esse trabalho, e ele deveria formar uma equipe para pensar questões de longo prazo. E o que ele está fazendo? Está jogando para fora do Ipea os tucanos, está fazendo uma política imediatista. São coisas desse nível que levam a esse jogo bruto de interesses, e é isso que eu chamo de golpe de Estado.
Colaborou Mateus Alves.
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