Correio da Cidadania

Contra “democracia das chacinas”, movimentos sociais se articulam pela desmilitarização das polícias

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Após um período que não apenas trouxe de volta o fervor político como, talvez, seja o tempo de maior diversidade e pluralidade das manifestações públicas, o Brasil começa a conviver com os desdobramentos das grandes manifestações que eclodiram no país em junho. Ao invés de atos únicos e massivos, temos uma agenda quase impossível de ser acompanhada na íntegra, até pelos mais dispostos.

 

Na última semana, por exemplo, o país colocou sua lupa sobre os protestos dos professores em greve no Rio de Janeiro e também na Semana Nacional de Mobilização Indígena, realizada em Brasília, contando com uma grande articulação de etnias e movimentos indigenistas organizados, em um coro só na luta pelos seus direitos, fortemente assediados pela chamada bancada ruralista.

 

Aliás, os professores do Rio (um grande eixo da efervescência nacional) sentiram na pele a sinceridade dos recentes discursos de Eduardo Paes e Sérgio Cabral. Após ficarem acuados e despencarem nas avaliações populares, elogiaram os protestos e reivindicações. Porém, ansiosos pelo retorno da apatia, voltaram a desatar a sangria da repressão policial. Isso depois o governo estadual sancionar controversa lei que proíbe o uso de máscaras em atos políticos.

 

Democracia?

 

Se antes questionávamos nossa democracia, pela baixa participação popular, depois de tantos episódios de guerras travadas pelo Estado contra a população que vem se mobilizando, passamos a outro patamar da discussão: que democracia é essa em que as forças militares são tão livres pra praticarem arbitrariedades, barbaridades, fraudes, prisões abusivas e ilegais e toda sorte de violência, impunemente? Aliás, por que forças militares na rua, pra cima e pra baixo, mediando todo tipo de conflito social, como ocupações por moradia?

 

“Estamos num momento de celebração dos 25 anos da Constituição Federal, dita Constituição Cidadã, mas também de lembrança do massacre do Carandiru, do grande aumento da população carcerária (que triplicou nos últimos 10 anos) e de muitos crimes cometidos pela polícia. Além disso, vemos homenagens acintosas, como a que a Câmara Municipal de São Paulo concedeu à Rota”, disse Danilo Dara, membro do grupo das Mães de Maio, que reúne mães de jovens periféricos assassinados a esmo pela polícia, em seus confrontos sanguinários com o PCC em maio de 2006.

 

A fala de Danilo foi a abertura da coletiva de imprensa, realizada no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que marcou o início da “Semana Contra a Democracia dos Massacres”, numa série de atividades articulada por diversos movimentos sociais rotineiramente agredidos em seus direitos pelo Estado brasileiro e suas políticas, na área de segurança pública, como também voltadas aos mais diversos setores da administração estatal.

 

“Nós, todas as lideranças indígenas, discutimos e decidimos que não aceitamos mais essa situação. Nós também temos os nossos Amarildos, como o cacique Nísio Gomes e o professor Rolindo Veras, desaparecidos e assassinados pelo agronegócio. E a empresa de segurança que trabalha para os fazendeiros daquela região (cone sul do MS), a Gasper, é de um policial aposentado”, contou o cacique guarani Oriel Benitez, que depois da coletiva participaria do ato pelos direitos indígenas, realizado na Avenida Paulista.

 

Por falar em Amarildo, o pedreiro carioca cujo assassinato pela polícia, após mais de dois meses de cobranças públicas, finalmente foi admitido, seus parentes também eram esperados na coletiva, o que acabou não ocorrendo. De toda forma, estava lá a mãe de outra vítima da barbárie policial, cujo caso também ganhou notoriedade: dona Elvira Ferreira, mãe de Ricardo Ferreira Gama, funcionário da Unifesp assassinado após discutir na frente da universidade, por razões fúteis, com dois policiais, que por isso o espancaram ali mesmo.

 

“Eu escutei todos os tiros que mataram meu filho. Quando saí pra rua só vi ele caído, muito ensanguentado, logo vi que não dava pra salvar... Ele estava com uma das mãos pra trás, por sobre a cabeça... (chora) ...aquela mão que eu gostava tanto de morder... (chora de novo)”.

 

Sem limites

 

Com o decorrer da coletiva, qualquer espectador se dá conta de que vivemos um incontestável Estado de Exceção. Com movimentos diversos reunidos, inclusive os periféricos, cada vez mais protagonistas da cena política, a série de histórias de crimes bárbaros cometidos por uma corporação que deveria estar a serviço do bem estar geral esmorece ou amedronta qualquer um. No entanto, ratifica como a pauta pela construção de outra segurança pública veio para ficar no debate.

 

Alessandra, moradora e liderança da favela do Moinho (que recebeu promessa de legalização na campanha à prefeitura de Haddad), deu outro depoimento impressionante. “O Moinho já tem 19 anos, antes era um cemitério clandestino da PM ... (chora)... Eu já perdi um irmão (de 15 anos!) e um cunhado pra polícia, em 2003. Já apanhei e fui torturada por isso. E me escondo até hoje deles. Eles fazem o que querem da vida. Entram correndo lá dentro, assustam e derrubam crianças, mostram fuzis, dão cavalo de pau com suas viaturas... A outra testemunha dos assassinatos que presenciei já morreu, então, acabo levando vida de rato por causa disso, até hoje”, diz, antes de voltar a chorar e avisar que não conseguia falar mais nada.

 

Não há tempo de processar a história que visivelmente congelou os olhares dos presentes, pois o rosário de crimes brutais perpetrados pela trupe fardada do Estado não tem fim. “Nós fizemos um levantamento e vimos que entre junho de 2012 e janeiro de 2013 a polícia matou 118 jovens pobres e periféricos, quase sempre negros. Nós somos do Jardim Rosana (zona sul, região do Campo Limpo), onde a polícia começou o ano com uma chacina que matou sete meninos nossos. E posso dizer que não tem mais vida e alegria naquele bairro, a polícia acabou com a vida das pessoas”, disse o professor da rede pública Doracy Mariano, do Periferia Ativa.

 

Outra presença importante foi a do fotógrafo Sérgio Silva, cegado pelos tiros de borracha da polícia militar, na marcante repressão do dia 13 de junho, dia que marcou o ponto de viragem do movimento, colocando todo o país de manifesto, durante todo o resto do mês. Vale lembrar que naquela semana uma quantidade enorme de jornalistas foi vitimada pelas chamadas armas não letais, com diversos ferimentos, hospitalizações e prisões arbitrárias. A foto de capa da Folha, com o olho da jornalista Giuliana Vallone inchado por tiro de borracha, por sorte sem o mesmo resultado de Sergio, também segue em nossas retinas.

 

“É estranho, para mim, viver isso. Ontem estava exercendo minha profissão, de fotógrafo. Hoje estou do lado de cá das câmeras, dando entrevista, graças à violência do Estado. Agora, meu papel é cobrar o Estado sobre isso. A desmilitarização das polícias tem de chegar ao Congresso. E eu estarei sempre na luta pela regulamentação do uso das armas menos letais”, afirmou.

 

Dialogando com o próprio contexto da articulação ali organizada, fez uma sagaz observação: “essa semana marca os 25 anos de Constituição Federal e 21 anos de massacre do Carandiru. Alguma coisa está errada”.

 

Já ao final, a historiadora Ângela Mendes de Almeida, também partícipe da articulação e responsável pelo Observatório da Violência Policial, que há alguns anos coleta e organiza dados sobre a violência do braço armado do poder público, deu o toque final, fazendo a tradicional constatação de todos os estudos brasileiros dedicados à interpretação de tamanha brutalidade policial em tempos ditos democráticos.

 

“A impunidade dos crimes de hoje tem tudo a ver com a impunidade dos crimes da ditadura. Pra não falar da manutenção da lei de Anistia, pelo STF. E o governo não dá apoio algum para o assunto que colocamos aqui, como se vê também na Comissão da Verdade, largada. Porém, o que acontece neste momento do país é que as vítimas dessa barbárie começam a erigir, aparecer pra todos e também começam a se unir”, explicou.

 

Números sírios

 

Ao final, Danilo Dara forneceu alguns dados oficiais, que reforçam definitivamente a necessidade de se lutar por uma sociedade civil livre do arbítrio militar. “Com a recente atualização de dados feita pelo IPEA, está consolidado o número de 60 mil homicídios por ano no Brasil. Fazemos outros levantamentos também, de forma autônoma, mas ainda não chegamos a um outro número”.

 

Sobre desaparecidos, como Amarildo, uma categoria ainda a ser estudada de forma aprofundada, Danilo afirma que ainda é difícil oferecer um número firme, mas estima que sejam de 4 a 5 mil por ano no país. Este número, porém, pode estar altamente subestimado, uma vez que recente audiência pública na Assembleia Legislativa do RJ debatia o número de 6 mil, somente em 2012 – de acordo com o Instituto de Segurança Pública do RJ, são 50 mil casos entre 2003 e 2012.

 

Falta muito para alcançarmos uma sociedade com cidadania, dignidade e fraternidade ao alcance de todos, até porque a discussão não passa somente pelo militarismo das forças de segurança. De toda forma, o coro que ganha cada dia mais volume nas ruas parece indicar o destino: “vai acabar, vai acabar, a ditadura da polícia militar”.

 

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

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