Mídia e Estado seguem em insidiosa ação de deslegitimação das mobilizações e incentivo à violência
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- Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
- 08/10/2013
Em greve há exatos 60 dias, os professores da rede municipal do Rio de Janeiro protagonizam o grande movimento reivindicatório do momento, tornando-se, portanto, os novos alvos da disputa ideológica em torno dos atos de rua, e seus significados, que vêm colocando o país de manifesto. A pauta da categoria em greve foi praticamente substituída pelas polêmicas em torno de violências nos protestos, seja por parte da polícia ou do novo ator político da cena, o black bloc.
“Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam”, disse ao Correio da Cidadania o historiador Mario Maestri, em entrevista que discute a violência do Estado, da mídia e também a atuação e a pertinência da tática do bloco negro, condenados ou exaltados dentro dos próprios debates da esquerda.
Maestri não mostra deslumbramento com a audácia dos ainda pouco interpretados ativistas de preto, mas pondera a discussão destacando a incessante atuação da mídia (que, não custa lembrar, pediu e recebeu o sangue dos manifestantes antes da virada de 13 de junho), aliada aos grupos estabelecidos no poder, no sentido único e exclusivo de desmobilizar os movimentos através do medo, enquanto omite toda a barbárie policial.
“Quando de greves, (a mídia) foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos”, assinala o historiador gaúcho.
Em sua visão, a explosão de junho ainda não criou o impulso posterior para a formação de um grande, e mais unificado, movimento em torno das necessidades essenciais, entre outras coisas porque “vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins dos anos 1980”, além de faltarem maior organização partidária e sindical para dar conta da magnitude do momento e capitalizá-lo em favor das causas e organizações populares.
A entrevista completa com Mario Maestri pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Como vê o país após as multitudinárias manifestações de junho, com a atual retomada de movimentos populares Brasil afora? Vivemos uma retomada do fôlego da cidadania e, quem sabe, da construção de uma nova democracia?
Mário Maestri: Não vejo cenário social e político tão positivo. Apesar de sua indiscutível importância para a consciência de enormes parcelas da população, as manifestações de junho não abriram uma nova etapa histórica, modificando qualitativamente a correlação de forças entre o mundo do capital e do trabalho. Foram, sobretudo, a explosão do difundido mal estar de imensas parcelas da nossa sociedade, protagonizada pelos segmentos assalariados ditos inferiores e médios urbanos. As manifestações não conseguiram construir uma pauta de reivindicações clara, núcleos organizacionais e direção reconhecida.
Sobretudo, o operariado não interveio naquelas manifestações, ou após elas, quando do fiasco da tentativa da burocracia sindical de reconquistar o espaço simbólico-representativo perdido. Uma imobilidade devida substancialmente à baixa consciência e organização dos trabalhadores, os únicos segmentos sociais capazes de sustentar efetivamente um projeto de democratização social e política de largo fôlego.
Os aparatos de domínio de nossa habilidosa e despótica sociedade de classe procuram absorver e metabolizar o desequilíbrio produzido pelas manifestações – o que conseguem em um grau certamente não uniforme, em relação aos diversos segmentos sociais e diversas regiões do país, como prova a atual situação do Rio de Janeiro. Nesse processo, desempenha importante papel a mídia, sobretudo a televisiva, articulada explícita e implicitamente com os órgãos estatais. Foi e segue a insidiosa ação de deslegitimação e neutralização midiática das mobilizações, que alcançaram enorme consenso entre a população.
Correio da Cidadania: Como tem ocorrido esse processo de desconstrução do apoio às manifestações de junho, e das que se seguiram a ela, pela mídia?
Mário Maestri: Em junho, após o ataque frontal às mobilizações, a grande mídia procurou redirecionar sua retórica, devido ao caráter fluvial e apoio geral da população às demonstrações de rua. Por um lado, procurou influenciar politicamente o movimento, apresentando-o como anti-político, anticorrupção, anti-esquerda, diluindo suas reivindicações materiais – passagem, saúde, educação. Por outro, dividiu os manifestantes em bons e maus e as manifestações em positivas (aceitáveis) e negativas (abomináveis). Tudo segundo os padrões maniqueístas das narrativas televisivas triviais. Uma divisão com objetivos estratégicos.
A mídia apresentou as manifestações positivas como constituídas por cidadãos conscientes, e as negativas, por baderneiros, depredadores, anarquistas, arruaceiros. Mesmo sendo marginais os atos definidos como antissociais, e não raro encontrarem-se em contradição com as mobilizações, provocando comumente o repúdio dos manifestantes, a mídia televisiva centrou obsessivamente neles as imagens e os comentários. Procura assim fixá-los e generalizá-los na retina do público, em processo consciente de intoxicação social, como o cerne das mobilizações, sua verdadeira essência. Procedimento reproduzido, em suas esferas de atuação, pelos grandes diários e revistas, por parlamentares, por cientistas sociais etc.
Uma sintaxe de divulgação televisa dos movimentos sociais que, midiatizando incessantemente as imagens-comentários desses fatos marginais, apresenta-os como elementos centrais, deslocando o conteúdo e essência dos fatos, como proposto. Prática generalizada pela grande mídia, que, quando de greves, foca os distúrbios causados por elas na vida da população, negando-se sem pudor a noticiar as razões mesmo superficiais de tais movimentos. Nas recentes manifestações no Rio de Janeiro em apoio aos professores, essa prática alcançou níveis inauditos.
Nas manifestações de junho e nas mobilizações sucessivas, raramente os repórteres aproximavam-se dos manifestantes para ouvir seus pontos de vista, enquanto eram regularmente entrevistados representantes das forças policiais ou comentados os danos causados pelos baderneiros. Os depoentes enquadrados eram e são quase essencialmente os que corroboravam os conteúdos conservadores propostos pela mídia para as mobilizações. A apresentação de um comentário se fixa como a opinião geral, ainda mais quando são diversos depoentes.
Correio da Cidadania: Como você encara a forma com que o Estado lida com as mobilizações populares? Há articulação entre o Estado e a grande mídia? O que pensa de grupos como, por exemplo, a Mídia Ninja?
Mário Maestri: Esse processo de demonização e de criminalização da luta social deu-se em íntima aliança com o Estado. Sobre muitos atos de violência midiatizados são abundantes as provas e indícios de que foram e são promovidos, incentivados ou viabilizados pelos órgãos policiais. Diante dos olhos atônitos da população, ataques a bens públicos valorizados como orelhões, paradas de ônibus, bancos de praças, vidraças de prédios, de moradias etc. processam-se longamente, sem inibição, fartamente filmados, enquanto manifestantes são agredidos pela polícia, longe do enquadramento faccioso da mídia.
Esse processo de seleção da imagem e da informação pela grande mídia tem sofrido desconstrução, ainda que limitada, permitida pela verdadeira democratização relativa da captação e divulgação da imagem, através, sobretudo, da filmagem por celulares, e sua divulgação no facebook, youtube etc. Essa espécie de guerrilha da imagem e de seus conteúdos tem constrangido comumente a grande imprensa, pautando-a e neutralizando-a, relativamente. Propostas como a Mídia Ninja são ensaios de salto de qualidade em possibilidades ainda pouco aproveitadas pelo movimento social organizado.
A pronta criminalização por parlamentos estaduais do uso de máscaras em manifestações – a máscara é característica do criminoso – registrou igualmente a sinergia perfeita e imediata entre os órgãos legislativos do Estado, os órgãos repressivos e a demonização das manifestações pela grande mídia. Sobretudo em um Estado em que a polícia mata e tortura sistematicamente, sobre a eterna justificativa ou desculpa das autoridades superiores de que não sabiam, é um direito indiscutível do manifestante não revelar sua identidade.
Correio da Cidadania: E como vê, especificamente, a atuação de grupos como os Black Blocs, que também têm se destacado e despertado polêmicas na cena política?
Mário Maestri: É inegável que alguns atos indiscriminados de depredação urbana foram produzidos por jovens que se colocam como parte do campo popular e da esquerda, não raro se reivindicando da ideologia anarquista – certamente do anarco-individualismo, que conheceu derrapagem terrorista, e não do anarco-sindicalismo. Defendem explicitamente uma didática e uma estética da violência, de pretenso cunho político, materializadas na depredação de vidraças de bancos, de prefeituras, de assembleias legislativas e outros símbolos do grande capital e de poder político legislativo e administrativo, que, com razão, são crescentemente odiados por segmentos populares.
Paradoxalmente, a midiatização exacerbada e interessada desses atos tende a alimentar e fortalecer sua prática por frações politicamente atrasadas da juventude, inebriadas por um possível protagonismo, que nos fatos parasita o movimento de massas ao qual aderem formalmente. Protagonismo que disputa indiscutivelmente a hegemonia ao movimento de massas. Essas práticas se fortalecem devido à falta de alternativa política e à lumpenização material e cultural à qual o capitalismo lança parte significativa da juventude.
A destruição enquanto estética, didática e prática sistemáticas é própria de segmentos médios radicalizados ou marginalizados, que veem nos objetivos ou nos símbolos que destroem fetiches que os atraem, mas pelos quais são rejeitados na esfera do consumo, e desconhecidos, na da produção. Ela é estranha ao mundo do trabalho, sobretudo organizado, que se objetiva e subjetiva através da construção social – e não da destruição – dos bens materiais e imateriais, e de cujo gozo é fortemente alienado.
Correio da Cidadania: Como podemos definir o fenômeno Black Bloc?
Mário Maestri: O Black Bloc é a organização de jovens por afinidade, em torno de núcleos organizados, facilitada pela mídia social. São, sobretudo, produto da derrapagem de sentimentos antissistema e de tendências protagonistas de jovens radicalizados ou simplesmente atraídos pela destruição e pela violência, em um mundo que não lhes oferece sequer como possibilidade longínqua a perspectiva e o prazer da construção e autoconstrução. A esses grupos se juntam indiscutivelmente provocadores e jovens marginalizados atraídos pela prática da violência.
Na França, a cada ano novo, centenas de automóveis são simplesmente incendiados por jovens da periferia parisiense e das grandes cidades das províncias. Após isso, recolhem-se à vida degradante e excludente das grandes periferias urbanas em que vivem embretados centenas de milhares de jovens pobres e sem trabalho, em boa parte de origem extra-francesa, mais ou menos distantes, não raro com crescente escolarização.
Do reconhecimento das origens sociais desses comportamentos, não podemos e não devemos promover sua elevação ao status de ação política progressiva. É indiscutível a utilização de tais atos contra o movimento social, do qual o Black Bloc disputa o protagonismo, desviando e enfraquecendo o seu sentido político e social. São indiscutíveis a infiltração e a manipulação policial e política desses grupos, mesmo devendo seu surgimento às razões assinaladas. O movimento social deve defendê-los, se necessário, mas criticando esse tipo de atuação e, sobretudo, delimitando as fronteiras políticas e geográficas com os mesmos.
Correio da Cidadania: Nesse contexto, como enxerga a luta contra a repressão policial violenta das manifestações populares? A desmilitarização da polícia, bandeira hoje na boca de tantos coletivos, teria papel nesse processo?
Mário Maestri: A discussão do fenômeno do Black Bloc é dificultada porque, aqui e ali, esses grupos confrontam-se com as forças policiais que reprimem violentamente o direito inalienável de manifestação e demonstração política e sindical da população. Contudo, mesmo nesse caso, desempenham papel nefasto, ao se apresentarem como falso sucedâneo da necessária organização da autodefesa das mobilizações populares.
Nesse sentido, as organizações políticas de esquerda, como o PSTU, que criticarem grupos como o Black Bloc, sem proporem e avançarem a autodefesa organizada das mobilizações, que proteja os manifestantes e estabeleça os limites geográficos e políticos das demonstrações, professam apenas pacifismo intrínseco, absolutamente estranho à tradição do mundo do trabalho, em indiscutível processo de acomodação às instituições dominantes.
Manifestar, em todo e qualquer momento, sem ser agredido pelas forças do Estado, é direito inegociável que deve ser garantido, em forma organizada e política, pelas próprias forças que se manifestam. Prática que demonstrará, igualmente, que somente uma população organizada consegue conquistar mais paz e mais ordem, ao limitar e reprimir o poder de intervenção das forças policiais, agentes da desordem, sobretudo em um Estado que pratica histórica, sistemática e impunemente a violência contra sua população.
O princípio da auto-organização da defesa das manifestações, para obter e manter o direito de manifestação e a ordem pública, diante de Estado promotor da violência e da desordem, aponta igualmente para a exigência da desmilitarização da polícia e sua colocação sob o controle e a vigilância diretas das comunidades organizadas, às quais a polícia deve apresentar contas e se submeter. Apenas o exercício da autovigilância e do autocontrole dos locais de moradia e de trabalho, por seus próprios membros organizados, permitirá minimizar a violência urbana e extra-urbana, democratizando tendencialmente a sociedade.
Correio da Cidadania: Você não enxerga, portanto, avanço qualitativo das forças populares no Brasil, quanto à organização e às políticas, depois de junho. Que medidas ou atitudes seriam, então, essenciais para capitalizar um cenário de efervescência política e social?
Mário Maestri: A reconquista parcial da situação pré-junho, que certamente não conseguiu, ainda, dissolver as conquistas no nível de consciência e das práticas de importantes parcelas da população, registra-se na atual recuperação da avaliação positiva da presidenta, favorecida pela tímida expansão econômica, pela manutenção do emprego, por medidas como o Mais Médicos e pela denúncia na ONU da ingerência estadunidense. Nem que, aparentemente, tudo parece retornar como “dantes, no quartel de Abrantes”!
A negativa da Justiça de reconhecimento do partido de Marina Silva, que a obrigou a apear de sua demagogia anti-partido/anti-política, circunscreve o apoio do grande capital ao petismo e ao seu programa de escorcho social e alienação dos bens públicos e nacionais – salários irrisórios; privatização dos portos, aeroportos, petróleo, comunicações etc. Tudo sugere a reeleição da Dilma Rousseff, talvez sem segundo turno, em 2014, caso não tenhamos acidentes de percurso, é claro.
As atuais mobilizações possuem caracteres distintos em relação às multitudinárias de junho. De menor significado e repercussão, temos por um lado movimentos estudantis e urbanos diversos, ainda sob a influência e impulso dos sucessos de junho. Por outro lado, importantes e combativos movimentos de segmentos assalariados médios, como os dos bancários; os dos trabalhadores do Correios; os dos professores, com destaque para os do Rio de Janeiro, que transbordam os marcos da reivindicação profissional. Eles expressam o mal estar social nascido de arrocho salarial e da degradação das condições de trabalho e de existência – elevadas jornadas de trabalho, saúde, educação, mobilidade urbana etc.
Todas essas lutas certamente sofreram influxos positivos das jornadas de junho, que esgotaram relativamente seu dinamismo, como tendem a se esgotar esses importantes combates singulares, sobretudo devido à inexistência, sequer como tendência clara, de movimento de unificação regional e nacional, política e orgânica, dessas lutas. Ou seja, não se vislumbram órgão sindical centralizado e partidos de classe capazes de proporem e dirigirem essa imprescindível unificação e centralização, capaz de enfrentar um Estado do capital, ferreamente centralizado e unificado, sobretudo quando se trata de impor a exploração e reprimir as lutas e reivindicações sociais. Vivemos ainda dolorosamente o peso subjetivo da terrível derrota histórica do mundo do trabalho, em fins do anos 1980.
A proposta da unidade sindical dos trabalhadores e assalariados, em torno de poderosa central sindical, foi liquidada pela ação do Estado burguês coadjuvado pelas organizações de esquerda com alguma força. Como as igrejas evangélicas, as centrais sindicais transformaram-se em espécie de caça-níqueis maravilhosos, capazes de gerar enormes ganhos econômicos, das quais nenhum grupo político com alguma força abre mão. Atomização e fatiamento que debilitam política e organicamente a luta e a organização dos trabalhadores. A mera centralização qualitativa dos trabalhadores em uma só central sindical fortalece ideologicamente o movimento e cria as melhores condições para mobilizações que questionem as direções pelegas. A atomização sindical é literalmente contrarrevolucionária.
Os partidos que se definem de esquerda também foram absorvidos pelos prazeres da gestão, mesmo marginal, do Estado burguês. A conquista de posições parlamentares e suas benesses embriagaram, sem exceções, os principais partidos da esquerda no Brasil, que literalmente nada têm a dizer, a não ser retoricamente, ao mundo do trabalho. Preocupam-se essencialmente com a participação nas próximas eleições, para conseguirem eleger mais alguns deputados e vereadores, os que já os têm, e obter os primeiros parlamentares, os que não os têm.
No Rio Grande do Sul, no contexto da enorme repressão do senhor Tarso Genro aos professores da rede de ensino público estadual, aos quais nega o próprio piso legal, a senhora Vera Guasso, presidente estadual do PSTU, aceitou convite para sentar-se no canapé do governador, para desdramatizar um excesso dos órgãos policiais do Estado (perquirição policial de moradia de militantes) contra o movimento social dos tantos que já se transformam em norma também no Rio Grande do Sul. No que foi seguida imediatamente pela presidente regional psolista! Tudo para obter um reconhecimento e respeitabilidade institucionais capazes, talvez, de avançar os escores eleitorais.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
Comentários
Isto é luta de classes. Ou será que a luta de classe é mais luta de classes a partir das portas da fábricas, que hoje voam rapidamente de um lado para outro do mundo.
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