Correio da Cidadania

O Leilão do Pré-sal e o Sistema Internacional

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Do ponto de vista geopolítico, foi durante a Primeira Guerra Mundial que o petróleo adquiriu importância estratégica. Ao converter a matriz energética de sua marinha, passando do carvão para o óleo combustível, a Inglaterra consolidou uma vantagem decisiva para o próprio conflito. Não por outra razão, França e Inglaterra celebram um acordo secreto, Sykes-Picot, em 16 de maio de 1916, arbitrando suas respectivas áreas de influência no Oriente Médio. Desde então, a questão da segurança energética em relação ao acesso às fontes de petróleo se consolidou na agenda das grandes potências. Os Estados Unidos, apesar de terem sido o principal produtor e exportador de petróleo desde o final do século XIX, abastecendo as tropas aliadas durante a Segunda Guerra Mundial, reivindicaram, como principal potência vitoriosa em 1945, o redesenho do tabuleiro do Oriente Médio. Sabiam que o centro de gravidade da produção mundial de petróleo iria se deslocar da região do Golfo Caribenho para o Oriente Médio, conforme advertiu o relatório de 1944 do geólogo DeGolyer. No retorno da Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, o então presidente Roosevelt desembarcou no Canal de Suez para um breve encontro com a autoridade saudita, Ibn Saud, consolidando as ações de aproximação deflagradas em 1943 e a presença de fato dos Estados Unidos na Arábia Saudita, em contraposição à própria Inglaterra.

 

Do ponto de vista econômico, se o querosene constituiu-se no princípio da indústria, como fonte de iluminação ainda no século XIX, os desdobramentos da segunda revolução industrial e, sobretudo, o desenvolvimento da indústria automobilística na década de 1920, com a massificação da produção de carros, diversificaram seu uso e aplicação em diversos ramos da atividade econômica e colocaram o petróleo ao centro da matriz de transporte das principais economias do mundo. Assim, o petróleo assumiu uma centralidade estratégica incomparável a qualquer outro recurso natural, tanto para as questões relativas à geopolítica internacional quanto para o desenvolvimento econômico em geral.

 

Não por outras razões que, ao longo do Século XX até o presente, a dinâmica do setor de petróleo e o movimento expansivo das grandes empresas petroleiras não têm sido caracterizados pela competição via mercado, através dos mecanismos clássicos de concorrência, executados pelas forças de oferta e demanda, mas, sobretudo, por intermédio da diplomacia e da guerra, onde a força e o arbítrio são os principais meios através dos quais se determinam as posições (privilegiadas) no mercado. Não se trata de exceções, mas da regra do jogo. Esta dinâmica pautada pela construção de “contra-mercados” ocorreu em diversas áreas do mundo desde a Primeira Guerra Mundial, com destaque para as regiões do Oriente Médio, do Cáucaso e também em algumas partes dos continentes africano e sul-americano.

 

O sombrio histórico dos sócios

 

Mais especificamente, o modo de atuação das empresas estrangeiras que participam do consórcio vencedor do leilão do campo de libra (a anglo-holandesa Shell, a francesa Total e as chinesas CNPC e CNOOC) é bastante controverso. No caso da Shell, sua atuação há décadas, por exemplo, na Nigéria tem sido marcada por um considerável grau de violência e arbítrio desde sua consolidação na região, em 1956. Suas disputas com as empresas francesas, a partir de 1967, pano de fundo que alimentou uma guerra civil movida pela iniciativa de autonomia da República de Biafra, região mais rica em petróleo da Nigéria, terminou de forma vitoriosa para as empresas anglo-holandesas, Shell e BP, mas com saldo de mais de um milhão de mortos.

 

Mais recentemente, na década de 1990, por conta da concentração excessiva dos recursos derivados da exploração do petróleo para as empresas internacionais do setor, em destaque a Shell, que sustentam o regime político autoritário local, e por conta também de danos ambientais responsáveis pela destruição de parte do ambiente natural característico da região da foz do Níger, as populações locais, sobretudo os ogonis, sob liderança de Ken Saro Wiwa, denunciaram o conluio entre a empresa anglo-holandesa e a ditadura do general Sani Abacha. Por sua ousadia e reivindicações, Wiwa foi preso e condenado à morte, junto com mais oito companheiros. Todos enforcados em 10 de novembro de 1995.  As tensões na região seguem presentes. Nos últimos anos, surgiu o Movimento de Emancipação do Delta do Níger (MEND), mais uma espécie de “blow black”, em razão da violência no outro lado do Atlântico, tão característica da parceira da Petrobrás.

 

A atuação francesa da Total no Gabão não tem sido muito diferente. Por exemplo, em greve recente dos funcionários do terminal de petróleo de Cabo Lopes, o movimento foi violentamente reprimido. Nestas situações, é o 6º batalhão da infantaria da marinha francesa quem faz o jogo sujo, funcionando como uma espécie de seguro de vida para as instalações de petróleo da Total no país, assim como para o governo autoritário local, fosse no período de Omar Bongo, que permaneceu 41 anos no poder (1967-2009), fosse com seu filho, Ali-Ben Bongo Ondimba, atual presidente do Gabão. A empresa alimenta um sistema de corrupção sistêmico e dá sustentação ao governo local.

 

Com tons diferentes, mas dentro da mesma lógica, as empresas e o Estado chineses vão progressivamente aumentando seu peso e sua influência na África. No Sudão, por exemplo, aproveitando-se das antigas disputas entre a porção norte (árabe) e sul (cristã e animista) do país, com duas longas guerras civis, a última com aproximadamente 1,5 milhão de mortos, em razão das descobertas de petróleo no sul do país na década de 1970, a China aproximou-se nos últimos anos do ditador Omar al-Bashir, condenado pelo Tribunal Penal Internacional pelas atrocidades no conflito de Darfur, iniciado em 2003.

 

Em 2007, com a visita do presidente da China, Hu Jintau, ao país, arregimentaram-se contratos para exportar 500 mil barris de petróleo por dia. Pouco dos recursos e das oportunidades geradas são drenados, de fato, para a população local. Para o processo de exploração do petróleo do Sudão, a China trouxe 25 mil chineses, segundo alguns autores, condenados e prisioneiros. A independência da parte sul do país, em 2010, recolocou em disputa as receitas do petróleo entre o Sudão (por onde passa o oleoduto) e o Sudão do Sul (onde estão 85% as reservas de petróleo).

 

No que se refere aos respectivos Estados nacionais das empresas estrangeiras que participam do consórcio vencedor de Libra, o poder político-militar da França, da China e do condomínio anglo-holandês é muito mais expressivo do que o brasileiro. Todos possuem arsenal atômico e um enorme poder de dissuasão.

 

Ameaça Militar

 

Por fim, não menos importante, a região do campo de Libra está localizada de 188 a 200 milhas da costa brasileira, situando-se mais precisamente na Zona Econômica Exclusiva do Brasil. Seu reconhecimento internacional encontra-se amparada pela III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1973, onde são definidos os conceitos de Mar Territorial, Zona Contígua, Zona Econômica Exclusiva e Plataforma Continental. No entanto, alguns Estados não são signatários dos referidos acordos, dentre eles dois dos países com maior capacidade de arbítrio do sistema internacional, China e Estados Unidos. Formalmente, para estes, o pré-sal brasileiro encontra-se em águas internacionais.

 

Levando em conta esse contexto geral, a impressão que fica é que o Brasil acabou por criar um problema onde não havia. Trouxe para dentro do processo de exploração do campo de Libra empresas cujos históricos de atuação internacional não lhes conferem prestígio e cujos respectivos Estados nacionais de origem dispõem de um arsenal militar e um poder desproporcional ao brasileiro. Em outras palavras, dada a inferioridade relativa em termos militares do Brasil e a posição geográfica do campo de Libra, as autoridades brasileiras assumiram, com efeito, uma vulnerabilidade desnecessária em relação a um recurso energético de enorme importância estratégica. Dá-se a impressão de que, no modelo consagrado para exploração do pré-sal, supõe-se que o cenário internacional, ao longo do período de exploração do campo, seguirá como céu de brigadeiro. Negligenciaram-se potenciais situações de litígios, decorrentes de crises e tensões internacionais que podem gerar interesses estratégicos distintos, em termos das políticas de preço, produção e de destino do petróleo, entre as empresas que compõem o consórcio e entre seus respectivos Estados nacionais de origem.

 

Se, por um lado, o leilão do pré-sal e o modelo de partilha dão uma sensação de avanço em relação aos leilões anteriores e ao modelo de concessão, por conta dos resultados de natureza econômica tão festejados pelos macroeconomistas do governo, por outro, fica a sensação de uma oportunidade perdida de se tentar ampliar a capacidade de iniciativa estratégica do Estado brasileiro, em relação a temas sensíveis dentro sistema internacional, como o de garantia de abastecimento de petróleo. Fica a dúvida se o que faltou foi um pouco de coragem e ousadia para se consolidar o monopólio da Petrobrás para a região do pré-sal ou se, no atual governo, o que vale em termos de uma política de segurança energética é uma visão “estratégica” pautada por preocupações macroeconômicas conjunturais. Não é de hoje que a agenda do Ministério da Fazenda e do Planejamento tem invadido e constrangido a de outros ministérios, como Minas Energia, Educação etc.

 

Ficam registrados aqui os cumprimentos aos brasileiros e brasileiras que insistem na luta pelo retorno do monopólio para a Petrobrás.

 

Mauricio Metri é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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