‘Não aceitaremos arrocho de salário e de verba para atividades de ensino, pesquisa e extensão na USP’
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- Gabriel Brito e Valéria Nader, Da Redação
- 02/05/2014
A USP encontra-se sob a gestão de uma nova reitoria, após quatro anos sob João Grandino Rodas, mas as polêmicas e dificuldades parecem as mesmas. Enquanto a Escola de Artes, Comunicação e Humanidades (EACH), a chamada USP-Leste, teve seu campus fechado por um incrível caso de contaminação ambiental, ventilam-se nos bastidores diversas medidas de contenção de despesas, a fim de combater uma suposta dificuldade financeira.
“O fato é que a situação da universidade em 2009, quando o Rodas entrou, era uma e, quando saiu, era outra, inclusive com participação das duas pessoas que hoje estão na nova gestão”, disse Chico Miraglia, professor do Instituto de Matemática e Estatística (IME) e membro da Associação dos Docentes da USP, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Além de refutar veementemente as ideias de setores liberais, de flexibilizar contratos trabalhistas e cortar alguns investimentos das atividades fundamentais da universidade, Miraglia destaca alguns debates recentes na Câmara dos Deputados e a possibilidade de finalmente o estado de SP adotar a Lei de Diretrizes Orçamentárias, vigente no resto do país, mas de implantação sempre evitada pelos sucessivos governos tucanos.
“Não vamos aceitar arrocho de salário ou arrocho de verba para a permanência estudantil ou para as atividades fundamentais de ensino, pesquisa e extensão. É o tipo de coisa que se destrói em cinco anos, e pra reconstruir demora 30. Olha o ensino básico...”, alertou Miraglia, que também criticou o fato de tais governos não terem repassado a totalidade das verbas reservadas às universidades paulistas, algo em torno de 2 bilhões de reais desde 2008.
A entrevista completa com Chico Miraglia pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Mais uma vez, vemos repercutir alguns debates sobre problemas financeiros e administrativos na USP, agora sob a nova gestão de Marco Antonio Zago. O que está de fato ocorrendo nesse momento de transição administrativa?
Chico Miraglia: Há um problema grave na Escola de Artes, Comunicação e Humanidades (EACH), conhecida como USP Leste, que a atual reitoria não foi capaz de dar conta, através de um plano adequado de mudança do campus após a interdição decidida pela justiça. Não foi feito planejamento, os alunos estão espalhados pela cidade, não há condições de aulas, o aluguel da Unicid (Universidade Cidade de São Paulo, localizada no Tatuapé) vai acabar em julho e ninguém sabe para onde vão as aulas... Na semana passada, fomos à audiência pública na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e explicitamos tudo isso, além de colocarmos nos informativos da Adusp.
Outra questão é que temos insistido muito com a reitoria, em vários fóruns, sobre a absoluta necessidade de abrir as contas da gestão Rodas, fazer investigação detalhada e publicizar os dados. Já comunicamos a atual reitoria e até hoje não tivemos resposta. Queremos saber o que aconteceu, por que se fala em crise, cortes de verbas para o ensino, pesquisa e atividades fundamentais... Também vamos entrar em campanha salarial e ver o que acontece.
O fato é que a situação da universidade em 2009, quando o Rodas entrou, era uma e, quando saiu, era outra, inclusive com participação das duas pessoas que hoje estão na nova gestão, pois eram pró-reitores, de pesquisa e pós-graduação. Queremos saber o que houve. Há processos administrativos a serem tocados, por exemplo, na EACH, para investigar como transferiram 110.000 m³ de terra, que ninguém sabe de onde veio, para dentro da universidade... E são poucas as iniciativas nesse sentido.
Enfim, são vários os problemas. Há anos falamos que o governo não repassa às universidades o que poderia. Investigando aqui e ali, descobrimos que só no ano passado elas deixaram de receber 540 milhões de reais. A base de cálculo é 5,65 bilhões de reais, e os 9,57% do ICMS que financiam as universidades paulistas. E agora temos matérias dando conta do que aconteceu. De 2008 até hoje, com uma atualização de inflação relativamente simples, as universidades deixaram de receber 2 bilhões de reais.
Evidentemente, vamos agendar entrevistas na Alesp, brigar pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e ver se revertemos a situação (o que ficaria para 2015), de modo que seria bom descobrir a origem dos acontecimentos. Como escondem o dinheiro, onde ele vai parar?
Chico Miraglia: Neste sentido, e à luz dos problemas atuais, que balanço faria da gestão de João Grandino Rodas na reitoria da universidade e como ela ainda impacta o atual momento?
Correio da Cidadania: Uma catástrofe. Administração autoritária, muito pouco transparente, que precisa ser investigada. É urgente. Isso foi aprovado em assembleia geral da Adusp (Associação dos Docentes da USP) e entregue ao reitor. Aliás, as contas do Rodas de 2011 foram recusadas pelo Tribunal de Contas do Estado, que o multou em 2000 unidades fiscais (40 mil reais), pois ele foi responsabilizado por várias irregularidades.
A questão que se coloca é a seguinte: de um lado, o governo do estado sonega verbas necessárias aos serviços de ensino, pesquisa e extensão de boa qualidade. De outro lado, a gestão Rodas precisa ser investigada. É preciso casar os dois movimentos para que se tenha legitimidade social na reivindicação.
Por isso, consideramos três coisas a andarem juntas: transparência, democracia e financiamento público adequado para as universidades estaduais paulistas. Assim, consegue-se legitimidade para continuar produzindo ensino, pesquisa e extensão de boa qualidade, ao mesmo tempo em que se mantém respeito pelo dinheiro público, que no fim das contas vem de um imposto indireto, não distributivo, o ICMS, um imposto perverso, pois paga mais quem ganha menos. O imposto é proporcional ao preço. Quando eu e um colega que trabalha aqui compramos um quilo de açúcar pagamos o mesmo imposto. E é o imposto que sustenta a instituição.
Portanto, as questões da democracia, do acesso, da abertura de contas, da transparência, de dar satisfação à sociedade vêm junto com a democracia no sentido administrativo, que também é acompanhada pelo financiamento adequado ao ensino, pesquisa e extensão no estado de São Paulo. As três questões estão ligadas: transparência, democracia e financiamento.
Chico Miraglia: O que pensa a respeito de sugestões de flexibilização de relações trabalhistas e suspensão de contratações como soluções para os problemas?
Correio da Cidadania: A curto prazo, curtíssimo, a primeira iniciativa, insisto, é abertura e exame das contas da gestão Rodas. Quanto foi gasto na reforma da reitoria, o que acontece com as obras? Onde foram parar as reservas? Se forem descobertas irregularidades, é preciso usar todos os canais legítimos e oficiais para apontar responsáveis, até criminalmente se for o caso. Isso a curtíssimo prazo.
Em segundo lugar, é preciso dar um encaminhamento racional e organizado à questão da EACH. Não pode continuar essa história de ninguém saber em que prédio serão as aulas, não ter equipamento para ensino, pesquisa e extensão...
Terceiro ponto: estamos chegando perto de fazer valer a Lei de Diretrizes Orçamentárias no estado de São Paulo. Os reitores e conselhos universitários precisam enfrentar o governo do estado no sentido de conseguir ampliar a base de cálculo, ou seja, os 9,57%, de forma correta. Que não engrossem a política do governador de usar estratagemas contábeis para esconder multas e juros de mora do ICMS; esconder multas e juros da dívida ativa do ICMS; esconder multas de infração de regulamento; utilizar os programas de parcelamento incentivado ou parcelamento especial que o governo fez; descontar a nota fiscal paulista... A nota fiscal paulista é uma iniciativa do governo pra diminuir a sonegação. Ok, pode ser meritório. Mas não dá pra descontar esse investimento da saúde, da educação etc. É o que queremos resolver na Alesp, discutindo a LDO e como será o repasse dos 9,57% do ICMS.
Junto disso, no curto prazo, tem a campanha da data-base. Nós, professores, estudantes e funcionários, numa instituição sem nenhuma democracia, controlada há anos por uma oligarquia que não abre mão do poder, não temos a ver com essa história. Não vamos aceitar arrocho de salário ou arrocho de verba para a permanência estudantil ou para as atividades fundamentais de ensino, pesquisa e extensão. Não vamos aceitar.
O cidadão apronta, não briga com quem deve brigar e depois quem faz a locomotiva andar paga a conta? Não. Não vamos topar. É a postura que estamos tentando compartilhar com a base dos alunos, funcionários e professores. Vamos ver a reação. É um embate político. Podemos até ter razão na argumentação teórica, mas os colegas podem achar melhor deixar para o ano que vem...
Do nosso ponto de vista, a perspectiva é: arrocho de salário, não. Arrocho de verba para custeio, não. Se precisar, tem que contratar funcionário para a universidade funcionar do ponto de vista do ensino, pesquisa e extensão. Precisa contratar. É preciso que haja condições dignas de trabalho para as pessoas tocarem em frente uma das universidades responsáveis por uma das maiores produções de ensino, pesquisa e extensão do Brasil. Não dá pra sacrificar essa capacidade. Não dá.
É o tipo de coisa que se destrói em cinco anos e, pra reconstruir, demora 30. Olha o ensino básico... Quando, em 1964, entrei na universidade, quem queria entrar na Poli tinha de fazer escola pública. Havia duas ou três escolas particulares de qualidade, o resto eram públicas. Hoje é o contrário.
Chico Miraglia: A EACH (USP Leste) sofre alguma discriminação em termos de financiamento? Como foi esse processo por lá?
Correio da Cidadania: Toda a expansão, nas três universidades, saiu dos mesmos 9,57% do ICMS, que há anos está aí. Somos a favor da expansão, claro. Defendemos isso historicamente. Desde que me entendo por gente, no secundário, defendo a expansão em direção à universalização. Mas é o seguinte: precisa de expansão com qualidade. Não pode ser escola pra rico e escola pra pobre. Escola é direito social, de cidadania. Não depende de quanto é minha renda. Ainda mais, como no estado de SP e no Brasil, quando se parte de um imposto indireto.
É muito sapo engolido, demais. E é uma política constante de governo. Entra governo e sai governo e essa se mantém como política estratégica.
Chico Miraglia: Insistindo um pouco no assunto da USP-Leste, como enxerga o fato de essa unidade, agora com atividades suspensas em seu campus, ter sido construída em terreno contaminado?
Correio da Cidadania: Na verdade, em um país organizado, quem participou de tal planejamento, e não foi por falta de aviso, precisa ser responsabilizado. Em certos países daria uma grande confusão. Existe responsabilidade da USP, das gestões anteriores e do governo do estado. Eles precisam se colocar em harmonia, porque a questão é importante. A universidade tem autonomia, não é para o governo do estado mandar. Mas as instituições, governo e universidade, precisam conversar e organizar a curtíssimo prazo um plano, além de discutir quem vai pagar a conta.
Mas é outra a discussão que está na Alesp: a investigação do Rodas e o caso da EACH. Além da LDO e da campanha salarial. Não vamos pagar a conta. Não é arrocho de salários e de verbas que vai resolver. Ao longo deste ano, apontando para 2015, queremos debater uma reformulação e democratização estrutural das relações sociais, estatutos e regimentos da universidade.
Isso tudo está em discussão e foi aprovado pelo Conselho Universitário. No dia 3 de junho, haverá audiência pública para debater tais pontos. Estamos preparados para intervir e temos um panorama do que é necessário em termos de investimento, de defesa dos direitos sociais e da democratização e transparência da universidade.
Há o curto prazo e o prazo mais estratégico, de transparência de gestão e democratização das relações sociais, que vamos discutir ao longo do ano para ver se conseguimos reformular os estatutos e as formas de exercício de poder. Sem articular financiamento, democracia e transparência, não resolveremos os problemas estruturais e crises cíclicas da USP. Até porque não é a primeira vez que estamos diante desse quadro.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.