Correio da Cidadania

‘Plano Diretor de São Paulo ainda é conservador e elitista’

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Após anos engavetado, e bloqueado por prefeituras comprometidas com o mercado imobiliário, responsável nos últimos anos pela maior bolha já vista na cidade, o Plano Diretor Estratégico de São Paulo foi aprovado em primeira votação. Para analisar esse tema urgente às necessidades da maior metrópole do país, o Correio da Cidadania entrevistou o arquiteto e urbanista João Whitaker, que ao mesmo tempo de elogiar desmistifica suas capacidades transformadoras.

 

“Precisamos relativizar o quanto um Plano Diretor é capaz de produzir as transformações que dizem ser capaz de produzir, e rever o quanto de expectativa e esperança sobre o reordenamento da cidade devemos ter. No Brasil, o que regula e ordena a cidade é uma relação de forças políticas e econômicas. Não temos tradição de regulação estatal em nada. A regulação estatal é liberal, é apenas para garantir a liberalidade”, afirmou.

 

Em sua opinião, o Plano é mais do que necessário, porém, ainda não é suficiente para garantir uma maior participação popular em todo o planejamento urbano da cidade, ainda dominado pelo poder econômico, que por sua vez dá as cartas em nossas instâncias democráticas, especialmente a Câmara dos Vereadores.

 

Dessa forma, Whitaker considera que o Plano, em vias de aprovação definitiva, conserva os interesses do mercado imobiliário e está longe de promover uma revisão preponderante de seus projetos de cidade. Apesar disso, o entrevistado destacou alguns pontos importantes e fez uma análise positiva, na medida do possível, da gestão do prefeito Fernando Haddad, que aos poucos vai restaurando canais de maior participação em diversos setores, a exemplo dos transportes.

 

“O Plano Diretor, no meu entender, não deveria ter 300 páginas, como é o caso. Deveria ter duas, como a Constituição dos EUA. Deveria estabelecer princípios para que depois fossem criadas as leis para regulamentá-los. E o primeiro princípio, se fôssemos minimamente decentes nesse país, seria enfrentar radicalmente a lógica da produção de desigualdade espacial urbana. E isso não é ponto central do Plano Diretor. Seu ponto central é reequilibrar fluxos, a pendularidade dos deslocamentos etc., mas não fala nada sobre a indecente desigualdade urbana brasileira”, ponderou.

 

A entrevista completa com João Whitaker pode ser lida a seguir.

 

Correio da Cidadania: Em linhas gerais, quais são os principais pontos do Plano Diretor Estratégico, aprovado finalmente em primeira votação na Câmara de São Paulo, no sentido de se projetar uma cidade mais viável e democrática, especialmente em termos de mobilidade, urbanização e planejamento?

 

João Whitaker: O primeiro ponto é que precisamos relativizar o potencial dos planos diretores no Brasil. Até agora, a prática mostra que eles são muito pouco aplicados. Ou são aplicados apenas dentro do interesse de setores dominantes na produção da cidade. O último Plano Diretor, de 2002, que tinha uma série de incríveis diretrizes e intenções, muito positivas, foi engavetado pelas duas gestões passadas. Algo ilegal, inclusive, pois pela lei teria de ser aplicado, e também revisado, após cinco anos, em 2007, o que não foi feito.

 

Isso mostra que o Brasil, como sempre disse a urbanista Ermínia Maricato, tem leis que pegam e leis que não pegam. Assim, uma série de instrumentos destinados a regular o funcionamento da cidade por um viés mais democrático, dando poder ao município para tal, sequer foram regulamentados após o Plano de 2002. Um exemplo que dou é o IPTU progressivo, que deveria combater os terrenos vazios em área central, ou na cidade toda, por não cumprirem a função social da propriedade, e que obriga o proprietário a construir num prazo de cinco anos, pois caso contrário aumenta-se o IPTU e até se desapropria o terreno. Nunca foi regulamentado, apesar de ter sido aprovado no Plano de 2002. Só o foi no final de 2013.

 

Isso mostra que precisamos relativizar o quanto um Plano Diretor é capaz de produzir as transformações que dizem ser capaz de produzir, e rever o quanto de expectativa e esperança sobre o reordenamento da cidade devemos ter. No Brasil, o que regula e ordena a cidade é uma relação de forças políticas e econômicas. Não temos tradição de regulação estatal em nada. A regulação estatal é liberal, é apenas para garantir a liberalidade.

 

A gestão passada chegou ao cúmulo de praticamente oficializar a ilegalidade, quando permitiu que durante muitos anos o diretor geral de aprovações de novos prédios fizesse negociações com propina e as aprovasse com dinheiro para caixa 2, como ficou comprovado. E cada vez mais aparece o iceberg, com propinas relacionadas a IPTU e tudo mais. É o quadro da cidade, dominado pelas maiores forças políticas e econômicas.

 

Correio da Cidadania: Ainda assim, até que ponto pode significar um freio à especulação imobiliária e à expansão descontrolada da ocupação do solo?

 

João Whitaker: Está longe de se efetivar este objetivo, mas começa a ordenar um pouquinho a lógica do mercado imobiliário. Junto com isso, são necessárias revisões urgentes no código de obras, na lei de zoneamento etc. Urge um plano para os parques e espaços livres. Se não concatenar tudo junto, o Plano não logrará tal objetivo. Por isso digo que temos de retirar muito da expectativa em torno do Plano Diretor, exagerada quanto a sua potencialidade e capacidade de transformação.

 

Mas não podemos jogar o bebê com a água do banho e dizer que não precisa fazer Plano Diretor. Precisa. Para fazê-lo, há três dimensões. O Plano Diretor deve ter uma orientação central e duas, digamos, grandezas a enfrentar. A orientação central é a respeito da dinâmica de crescimento da cidade, do ponto de vista técnico, ou seja, sobre como a cidade deve crescer pra se tornar melhor do ponto de vista da democracia e do interesse público. Esse ponto central o Plano Diretor pegou por um aspecto interessante: o de perceber que a cidade tem um desequilíbrio muito grande entre os focos de oferta de emprego e os lugares de habitação, com praticamente toda a oferta de emprego concentrada na região central e no eixo sudoeste da cidade.

 

Isso cria uma pendularidade gigantesca na cidade, que se dá através do deslocamento de milhares e milhares de pessoas, que têm de sair de seus bairros-dormitórios para trabalhar em tais regiões de oferta de trabalho, como Berrini, Jardins, Paulista, Pinheiros, Itaim, Moema, até em Santana, enfim, no centro expandido que se aproxima do eixo sudoeste. Essa pendularidade acaba carregando demais a necessidade de deslocamento dentro da cidade, o que resulta em colapso desse quesito, pois, além de tudo, historicamente, nunca se investiu o quanto se deveria investir no transporte público de massa. Sempre se favoreceu o automóvel, que representa 30% da população.

 

Em tal sentido, existe uma polêmica, por conta de pesquisas que mostram que viagens de automóveis equivalem ou até ultrapassam viagens de ônibus ou trens. E as pessoas confundem, dizendo que o número de usuários de carro é igual ao dos outros transportes. Não é verdade. De carro fazemos muito mais viagens porque o utilizamos pra qualquer deslocamento simples. A questão é saber quantas pessoas têm carro e quantas utilizam ônibus como meio principal de deslocamento. E aí temos uma relação de 70% a 30%. Portanto, nunca se investiu seriamente na estruturação de um sistema de transporte público que atendesse os 70%. Isso colapsou a cidade.

 

O Plano Diretor tem um segundo fator: nas áreas sem oferta de emprego, há uma densidade muito baixa, com uma conformação urbana de casarios e sobradinhos. Se pegarmos a zona norte, acima da marginal Tietê, no entorno do Campo de Marte, toda a zona leste e grande parte da zona sul, veremos que temos sobrados acima de tudo. E o Plano Diretor percebeu que seria importante permitir um adensamento construtivo nessas regiões, para que elas possam proporcionar uma maior quantidade de ofertas econômicas e de emprego, a fim de reequilibrar a pendularidade da cidade.

 

Mas, para tal objetivo, não se pode apenas liberar a construção de prédios. É preciso estruturar uma política de mobilidade. Ou seja, o poder público tem de permitir adensamento em tais áreas. Porém, ao longo de corredores de ônibus a serem construídos, de modo a resolver a crise da mobilidade e acelerar a capacidade de deslocamento das pessoas, em torno de onde elas moram.

 

Quanto ao princípio de reestruturação da lógica da cidade, é correto, bem pensado. Mas, como disse, ao propor uma nova lógica de estruturação da cidade, deve-se atentar a duas questões. A primeira é o controle e a regulação da atividade do mercado imobiliário, que em São Paulo se tornou absolutamente indecente e descontrolada, pelo fato de na gestão passada termos a legalização da ilegalidade. De outro lado, é preciso uma política verdadeiramente consistente para garantir que a população mais pobre tenha lugar para morar nessa cidade mais estruturada, deixando de ser permanentemente expulsa para as áreas mais afastadas. Significa dizer que precisamos de uma política fundiária.

 

Mas o que acontece? Uma vez proposta a linha central do plano, resta saber como ele vai enfrentar as outras duas dimensões. E é evidente que, na hora de enfrentá-las, no jogo de forças, o mercado imobiliário sai ganhando.

 

Correio da Cidadania: Apesar das ponderações feitas aqui, você acredita que, se aprovado em definitivo, o Plano Diretor oferecerá mecanismos de maior participação popular no planejamento urbano de São Paulo?

 

João Whitaker: Com a aprovação do Plano Diretor, temos alguns avanços na questão da população de baixa renda: ampliam-se sutilmente, mas nada muito drástico, as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), obrigatoriamente destinadas à construção de habitações de interesse social. Porém, parte das antigas ZEIS viraram ZEIS-5, uma nova modalidade, que permite construções para a classe média. Mas as que sobraram ficam destinadas à baixa renda, de 0 a 3 salários mínimos. Não mudou muito, mas pelo menos se preservaram as ZEIS.

 

Depois, criou-se novo instrumento, que eu e outras pessoas sugerimos lá atrás, sob o nome de “Lei de Solidariedade Urbana”, e que agora chama Cota de Solidariedade: a proposta é que qualquer empreendimento de 20 mil metros quadrados de área construída, ou seja, grandes construções, como aquelas 10 torres que estão sendo erguidas na Barra Funda, para população de alta renda, obrigatoriamente tenha de doar 10% da área para a prefeitura fazer habitação social. Bonito. Mas, na hora da negociação, quem manda mais fala mais alto, e as coisas sofrem pequenas alterações. No substitutivo do Plano Diretor, tal projeto já aparece diferente, dizendo que o empreendedor tem de doar os 10% ali no terreno ou na macrozona, ou seja, pode ser bem longe da construção, o que muda completamente o sentido da lei. Alternativamente, o empreendedor pode doar um terreno para a Cohab, não necessariamente na macrozona. Portanto, uma deturpação sutil que desconfigura completamente o sentido da lei.

 

Desse modo, no campo da democratização, vemos que a maneira como se constrói o plano cede à pressão do mercado imobiliário, deixando tudo bonito pra ele. E no outro campo, da regulação do mercado, as coisas ficam bem pouco reguladas. Pode-se de fato autorizar a produção de ‘coeficiente 4’ nos corredores de ônibus, mas precisaria da obrigatoriedade de que tal construção só fosse liberada depois de feitos os corredores.

 

Porém, isso já não aparece claramente no texto atual. Também deveria haver uma condicionante sobre construção de maior altura e adensamento, para que seja feita mediante a condição de um projeto de desenho urbano que possa produzir uma cidade de qualidade entre esses corredores. Mas o que está no Plano é a continuação do mesmo coeficiente de aproveitamento e de taxas de ocupação, fazendo com que haja paliteiros no meio do lote, com recuo, o que é o modelinho atual, produtor de uma péssima cidade.

 

Assim, na hora do “vamos ver”, aquela linha central de boas intenções vai perdendo qualidade nas suas firulas, e no geral tende a favorecer os interesses do mercado imobiliário. O Plano não garante mecanismos de maior participação popular. A mobilização da população e a exigência de que as regras sejam regulamentadas podem levar a isso. Mas apenas a aprovação do Plano Diretor, por si só, não.

 

Correio da Cidadania: Como você relaciona a aprovação do plano com o atual momento de mobilizações dos movimentos de moradia?

 

João Whitaker: Os movimentos de moradia estão cumprindo brilhantemente o papel deles, isto é, fazer uma pressão para que pelo menos aquilo que lhes interessa seja garantido. Porque, se bobear, se não houver fiscalização, nem isso pode ser garantido. Pelo menos o movimento está tentando fazer com que o mínimo seja aprovado.

 

Por outro lado, é um pouco forte dizer, mas talvez seja a realidade: na atual conjuntura que temos na cidade, o movimento está batalhando por migalhas. Porque não estamos batendo de frente com uma alteração significativa das lógicas de produção da cidade, desiguais e promotoras de muita segregação e exclusão dos mais pobres.

 

O Plano Diretor, no meu entender, não deveria ter 300 páginas, como é o caso. Deveria ter duas, como a Constituição dos EUA. Deveria estabelecer princípios para que depois fossem criadas as leis para regulamentá-los. E o primeiro princípio, se fôssemos minimamente decentes nesse país, seria enfrentar radicalmente a lógica da produção de desigualdade espacial urbana. E isso não é ponto central do Plano Diretor. Seu ponto central é reequilibrar fluxos, a pendularidade dos deslocamentos etc., mas não fala nada sobre a indecente desigualdade urbana brasileira.

 

E o detalhe que deveria ser claramente dito não se refere somente ao passivo constituído ao longo de anos passados. Deveria apontar que a cidade continua gerando mais exclusão. Estamos falando do passivo do passado, mas também do atual e do futuro. E o Plano não tem como objetivo principal tornar, claramente, a cidade mais democrática. As elites brasileiras ainda não querem tocar nisso, e não há correlação de forças no momento. Infelizmente, não temos nenhuma cidade brasileira que decidiu: “vamos acabar com a pobreza urbana aqui. Não dá mais pra fazer cidade que se organiza na lógica da colcha de retalhos”.

 

Por que digo isso? Por exemplo, nos corredores de ônibus onde teremos adensamento, seria necessário um instrumento bem claro para garantir a habitação social. Precisaria de ZEIS específicas em tais corredores, com garantias de que terrenos serão destinados à habitação social. Se não, teremos uma bolha especulativa ao longo dos corredores e a respectiva explosão de preços. E não há nenhuma estruturação clara e central no Plano Diretor para evitar uma lógica de produção urbana desigual.

 

Portanto, ainda é um Plano Diretor conservador e elitista.

 

Correio da Cidadania: Qual a importância deste plano em relação às questões ambientais?

 

João Whitaker: Eu não li o suficiente do Plano para falar muito. Sei que o Plano trata de áreas de preservação ambiental. Mas há uma polêmica que toca no ponto de a preservação ambiental, de forma tosca, apenas proteger áreas, sem explicar melhor como fazer, o que acaba se sobrepondo à situação de precariedade dos mais pobres.

 

Por exemplo, as áreas de mananciais: não adianta dizer que precisa preservar áreas de mananciais se tem mais de 1 milhão de pessoas morando nelas. Uma cidade de Campinas mora nos mananciais. Como vamos resolver o problema e preservá-los? Deixar todo mundo como está? Ou significa retirar as pessoas de lá? Levá-las pra onde depois? Precisa de urbanização em áreas de precariedade ambiental que, tecnicamente, proteja o meio ambiente. Algo possível. Mas não é esse o sentido geral que se dá.

 

É importante, por exemplo, que a urbanização dos corredores de ônibus adense um pouco as áreas de mananciais já urbanizadas, como o Jardim São Luiz, que tem avenidas, faróis, prédios...

 

Tal discussão merece uma espécie de capítulo e um grupo de trabalho à parte, a estudar formas que permitam a consolidação urbana em áreas de preservação. Há um conflito muito claro. Sei que existe uma polêmica no que se refere ao adensamento de áreas protegidas ao longo de corredores. Mas não acho errado fazer o corredor se adensar e chegar, por exemplo, em M’boi Mirim. Não adianta passar a vida inteira dizendo que é área de manancial e os corredores não podem chegar ali, porque na prática não é mais área de manancial. É uma área totalmente urbanizada.

 

Precisaria de um estudo bem preciso sobre como se poderia urbanizar e coletar esgoto. Porque o importante é coletar esgoto. A rigor, se houver uma população ocupando as beiras de represa, mas com coleta de esgoto, e com os coletores sendo enviados para estações de tratamento, não há problema em ocupar tais áreas. O problema é que não temos isso no Brasil, e o esgoto da informalidade é jogado na água. São questões muito complexas, que não conseguem ser respondidas no âmbito do Plano Diretor.

 

Correio da Cidadania: Finalmente, à luz do que tem ocorrido no processo de aprovação deste último Plano Diretor e do que foi debatido nesta entrevista, como tem visto a gestão Haddad?

 

João Whitaker: Acho que a gestão do Haddad é difícil. No bom sentido. As pessoas não têm noção dos poderes estabelecidos na prefeitura, sobretudo quando se sai de oito anos em que preponderavam métodos absolutamente questionáveis, como o que citei sobre aprovação de prédios e outros que têm vindo à tona, como a máfia dos fiscais, da cobrança de IPTU...

 

Uma vez que isso está estabelecido, assumindo uma cidade do tamanho de São Paulo, com tal nível de precariedade, desorganização e desmantelamento dos canais de administração, de gestão, com todos os conselhos participativos desmantelados, quase extintos e sem atuar, era preciso, primeiramente, reestruturar tudo. Sendo que a estrutura de gestão, mesmo organizada, é precária, por ser centralizada demais. Não se consegue gerenciar uma cidade de 11 milhões de habitantes com um prefeito e 55 vereadores, sendo estes uma espécie de zeladores das subprefeituras, com tarefas administrativas que vinham sendo delegadas a policiais militares. Todo esse processo leva a um nível de complexidade que precisa ser entendido. A cidade precisa de pelo menos um ano pra respirar e enxergar.

 

Soma-se uma situação financeira lastimável, o que significa braços amarrados em termos de investimento, pois não há dinheiro para nada. Sinceramente, penso que o Haddad (que conheço e admiro muito, sei que tem uma gigantesca capacidade individual) não tinha noção do tamanho da dificuldade. Penso que ele imaginava algo mais simples. Por causa disso, e também dos acordos que eles acharam necessários para a eleição, inclusive na base de apoio, acaba decorrendo a mão presa em relação a várias coisas. Por exemplo: é descabido uma secretaria importante como a de Habitação, sobre a qual recai uma promessa de campanha duríssima de ser cumprida, de entregar 50 mil unidades habitacionais, ser entregue ao partido do Maluf, que não tem a capacidade e competência técnica de levar adiante uma política habitacional.

 

Hoje, a Cohab está praticamente parada e a política habitacional tenta se estruturar nos moldes do Minha Casa Minha Vida, um programa, do ponto de vista técnico, muito pouco adequado à realidade fundiária da cidade. São Paulo deveria ser ponta de lança na inovação de tais políticas, para forçar o governo federal a criar novas modalidades do programa Minha Casa Minha Vida, capazes de inová-lo e adequá-lo à realidade de grandes metrópoles. Mas a cidade não faz isso. Tenta políticas restritas de habitação em massa, de pouca qualidade, em glebas distantes de tudo. Enfim, tais obstáculos existem em São Paulo, numa soma de dificuldades de gestão com compromissos inadequados, que engessam ações da prefeitura.

 

Por outro lado, o Haddad tem enfrentado questões muito importantes. Por exemplo, a questão da mobilidade, que gera uma enorme impopularidade. Ele é o primeiro a dizer: “não dá mais para continuar a favorecer o carro. Temos que mudar, criar uma prioridade absoluta para o modal de ônibus”. Essa política demora muito para ser implementada, implica em muitas dificuldades técnicas, mas está sendo enfrentada. E ressalte-se uma enorme qualidade dele: a de não se prender a consequências políticas e eleitorais. Porque, se fosse pensar nisso, ele nunca pensaria em uma política de corredores de ônibus. Assim, mostra um desprendimento em relação à reeleição e compromisso com as políticas a que se propôs, um ponto muito positivo.

 

O segundo ponto positivo, na reestruturação do caos que a cidade vivia, é que ele recuperou todas as instâncias de participação. Restituiu todos os conselhos participativos setoriais, como os de urbanismo, saúde, educação, habitação... Criou novos, até em resposta às mobilizações de junho, como o conselho do transporte público, e o novo conselho da cidade, parecido com o conselhão do governo federal, do qual eu inclusive participo. E também criou os conselhos participativos nas subprefeituras, para substituir os regionais, cujo projeto está travado no STF porque o José Serra, quando prefeito, alegou inconstitucionalidade, o que travou a reforma da descentralização e gestão participativa da cidade. Dessa forma, o Haddad deu esse drible e criou conselhos – ainda não deliberativos, o que, de fato, não é ideal. Mas pelo menos cria conselhos e oferece cursos de capacitação para quem participa.

 

Também criou novas secretarias, como a de direitos humanos, da mulher, de minorias, e vem enfrentando, sem o menor constrangimento, algumas questões muito cabeludas do ponto de vista da legalidade, como as máfias da fiscalização e aprovação, as máfias do IPTU, do ISS... E até criou um cargo novo, o de Controlador Geral do Município. É fundamental. Além disso, contratou uma auditoria externa para os contratos das empresas de ônibus, uma medida radical, dado que o setor é controlado, para dizer o mínimo, por um oligopólio.

 

Ele tem muitas dificuldades, até por conta de alguns acordos políticos, mas penso que no geral o saldo é muito positivo. E nesse caso, para o bem de São Paulo, a avaliação da gestão tem de ser apartidária, porque no Brasil as pessoas têm uma tendência doentia de partidarizar as gestões. Se a gestão é do PSDB, quem prefere o PT odeia, e vice-versa, entre outros exemplos. Para o bem da cidade, temos de fazer uma crítica com certa isenção. Politicamente técnica, digamos. É o exercício que tento fazer aqui na entrevista. Apoiei o Haddad e continuo apoiando porque pude observar todas essas coisas. Seria o primeiro a não apoiar se visse uma péssima gestão e má disposição. Mas vejo boa fé e boas intenções nas atitudes dele.

 

No entanto, ele está preso às vicissitudes e acordos do PT, está preso a uma dificuldade enorme de gestão, pelo fato de a cidade ter sido entregue durante oito anos a gestões irresponsáveis. São elementos que dificultam o mandato e tornam impossível falar que a gestão dele é maravilhosa. Não é só questão de boa intenção, mas de ver com clareza alguns fatos, como termos uma câmara reduzida, de 55 vereadores, muitas vezes com papeis questionáveis.

 

Por exemplo: a aprovação de um aeroporto em Parelheiros é um verdadeiro escândalo. Em época de crise de abastecimento de água, querer fazer um aeródromo em área sensível de captação de água é um escândalo. Mas foi aprovado em comissão específica da câmara, por um acerto de vereadores, inclusive da base petista, e envolve no negócio um filho de candidato a governador pelo PMDB, um dos empresários envolvidos na história. É complicado, e percebemos que a câmara tem uma autonomia muito grande. Vemos os problemas de financiamento de campanha, do quanto o mercado imobiliário desde sempre financia os vereadores, o que gera grandes suspeitas ... Se virmos o número de shoppings aprovados na gestão passada, é no mínimo suspeito.

 

Portanto, a cidade toda está sob suspeita, o que no geral coloca enormes dificuldades. Não é honesto dizer que temos uma gestão maravilhosa, porque é impossível. Mas seria extremamente desonesto não valorizar todos os aspectos colocados aqui, que são importantes . Num balanço final, se continuar assim, caminham para se tornar cada vez melhores.

 

Gabriel Brito é jornalista.

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