Agora só faltam 3 reais… e um imenso desafio
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- Passa Palavra
- 27/06/2014
Na última quinta-feira, 19 de junho, exatamente um ano após a revogação do aumento das tarifas de ônibus, metrô e trem em São Paulo, o Movimento Passe Livre (MPL) convocou um ato para relembrar essa conquista popular e colocar mais uma vez em pauta a Tarifa Zero como estratégia possível de direito à cidade. A manifestação, que reuniu mais de duas mil pessoas, pretendia marcar também sua solidariedade à luta dos trabalhadores dos transportes, exigindo a readmissão das dezenas de metroviários e rodoviários demitidos após greves de suas categorias às vésperas do início da Copa do Mundo.
A concentração teve início a partir das 15h na Praça do Ciclista, na Avenida Paulista, sem a presença da polícia cercando ou revistando as pessoas. Ao contrário do que fez em praticamente todas as manifestações em sua história, desta vez o MPL divulgou o trajeto da marcha com antecedência: seguiriam pela Avenida Rebouças até a Marginal Pinheiros, onde o ato se encerraria com uma festa junina popular. O trajeto foi também informado num ofício entregue na Secretaria de Segurança Pública em que o Movimento reivindicava o controle da sua própria segurança, alegando que a presença ostensiva da polícia sempre gera mais violência nas manifestações.
O MPL explica tal iniciativa pelo espírito que queria conferir àquele ato: uma grande festa na Marginal Pinheiros, símbolo da lógica da cidade pensada para os veículos individuais e que entende o transporte coletivo como uma mercadoria que deve ser paga pelo usuário. Para subverter a lógica do funcionamento capitalista da metrópole, ocupar as ruas e construir nessa cidade um espaço em que o povo controle suas decisões, trajetos, desejos e necessidades é, de fato, uma proposta radical. Com direito a show de rap, uma “Copa Rebelde” de futebol de várzea, teatro, sarau, bandeirinhas, quadrilha, pula-fogueira com catracas em chamas, a festa pretendia transmitir a sensação do que é poder ter controle, mesmo que momentaneamente, da própria vida. A certeza de que é a luta que transforma a vida.
Entretanto, o ato simbólico pretendido pelo MPL foi marcado por uma tensão. Como lidar com uma parcela da juventude que entende a radicalidade da ação política unicamente na destruição de agências bancárias ou outros símbolos do capitalismo? Como evitar o roteiro: a) quebra de vitrines de banco ou de concessionárias de carro de luxo; b) repressão policial, bombas de gás e balas de borracha; c) manifestantes dispersados; d) movimentos sociais criminalizados?
Ao contrário da cantilena dos comandos policiais e dos discursos que agora faz o secretário de segurança pública, a história das manifestações desde junho passado tem mostrado que em nenhuma circunstância a atuação ostensiva da polícia é voltada para a segurança dos manifestantes, tampouco capaz de assegurar a integridade do “patrimônio” público ou privado. É óbvio também que a violência que os bancos promovem diariamente contra a população, arrancando-lhe taxas, juros e o sono desses que sustentam o lucro exorbitante de poucos, é muito maior do que os vidros e máquinas quebradas, repostas facilmente pelos donos do poder. É óbvio que a existência de um carro de 600 mil reais atesta a violência que é a exploração de uma classe sobre outra e que a destruição das concessionárias de luxo simboliza o que precisa acabar para que o povo viva, controle e decida sua história. Porém, não é desse ponto de vista, moralista ou da manutenção da ordem num sentido capitalista, que a questão se coloca para nós. É preciso abordar o problema da perspectiva organizativa, isto é, da eficiência que esta ou aquela tática pode ter em função de um determinado objetivo coletivo tirado a longo, médio ou curto prazo.
Para tanto, é conveniente ter em conta o peso da construção simbólica feita cotidianamente no sentido inverso, sobretudo pela mídia, que consegue naturalizar relações de poder e exploração difíceis de serem derrubadas. Isso não será desfeito com a reprodução da mesma tática todas as vezes, ainda mais em um contexto em que o assim chamado black bloc se tornou parte do espetáculo midiático. Quanto mais se quebram as coisas, mais se filma e fotografa, e, quanto mais se filma e fotografa, mais se quebram as coisas. Toda ação política passa a ter apenas um fim: destruir os símbolos do capitalismo (produzindo apenas novos símbolos), não importando o motivo para o qual o ato foi chamado.
Descosturar essa linha tecida tão fortemente no imaginário das pessoas – que as mobiliza para acordar todos os dias e pegar um transporte lotado, precário e caro, trabalhar horas por um salário que paga seu consumo e te deixa refém das dívidas e necessidades, sempre novamente criadas, e mal paga o morar e se deslocar irrestritamente por uma cidade que não é feita para os que têm pouco ou quase nada – é realmente uma tarefa árdua, é destruir o estado de exceção tornado regra. Junho passado talvez tenha despertado numa parte dessas pessoas o inverso dessa mobilização.
Entretanto, a construção de uma estratégia política comum exige coesão organizativa para se atingirem os objetivos aspirados. Quando uma tática se sobrepõe a qualquer diálogo e decisão coletiva, coloca-se um desafio para um movimento organizado. Ou seja, quando um movimento pretende demonstrar para a sociedade que pode autogovernar suas ações, ao tomarmos os espaços e fazermos, inclusive, nossa própria segurança, estamos demonstrando (e precisamos demonstrar) que podemos nos auto-organizar.
Novamente, o problema não se coloca do ponto de vista da manutenção da ordem capitalista, mas do contrário disso, de poder fazer da cidade onde se vive um espaço onde pulsa de fato a vida, onde as ruas não são feitas só para carros de luxo, mas inspirem um outro tempo, onde se pode bater bola descompromissadamente, para a quermesse improvisada, para a poesia na hora criada, para transformar e decidir que mobilidade queremos.
Também não se trata de eliminar do horizonte o uso, muitas vezes pertinente, de ações de rua que visam o enfrentamento direto e, eventualmente, o ataque a símbolos do poder. Estes expedientes foram importantes nos levantes de junho e devem sempre ser deixados à manga. No entanto, como podem proceder os movimentos sociais autônomos que queiram ter à disposição um repertório de táticas mais variado, podendo fazer uso de cada um deles conforme forem as circunstâncias e os objetivos almejados?
Quando destruímos bancos e concessionárias, também expressamos nossa indignação diante do naturalizado. Mas se o objetivo comum e coletivo definido é outro, dosar esse tipo de ação às vezes faz-se necessário para garantir a ocupação de uma importante via da cidade, por exemplo. Como lidar com uma situação em que a tática bloc se descola de qualquer estratégia e vira um fim em si mesmo? O que fazer quando a imagem da destruição arrasta toda a mídia, de esquerda inclusive, que prefere a forma autonomizada do conteúdo e parece se importar mais com isso do que com a continuidade da luta? Sinal dos tempos? Como dialogar com uma tática que se pretende exclusiva, no sentido de construir uma estratégia comum em que várias táticas sejam possíveis? Quais as novas estratégias e táticas formuladas pelo movimento autônomo que apontam uma alternativa para esses novos agentes?
Trata-se de um debate urgente para os movimentos que saem às ruas, mas que, talvez, dificilmente encontrará solução na própria rua. Criar uma perspectiva que supere a totalidade tática proposta pelo black bloc, de enfrentamento simbólico, provavelmente dependerá da capacidade dos movimentos de construírem uma estratégia concreta, que vá além do campo simbólico. Tomando como exemplo o MPL, que pretendia com aquela manifestação colocar em pauta o debate da Tarifa Zero e manifestar solidariedade aos trabalhadores do transporte, podemos perguntar: que avanços concretos o ato trouxe a essas lutas? Seria demais sugerir que tenha ocorrido justamente o contrário: que a repercussão da grande mídia, repetindo incessantemente só as cenas da destruição de uma concessionária, possa acabar produzindo um retrocesso nas pautas do movimento, gerando desconfiança de parte da população em relação às suas bandeiras e perdendo apoio entre as próprias categorias de trabalhadores com quem buscava ser solidário?
Na medida em que o movimento investe seus esforços em atos simbólicos para construir suas lutas, não estaria ele limitado, ainda que com uma tática diferente, ao mesmo nível de atuação dos black blocs – o nível da imagem, da mídia, dos símbolos? Não deveria ser estranho, portanto, que os blocs venham querer seu espaço no palco.
Descobrir algum caminho que, por um lado, passe longe da lógica punitivista e excludente de Estado, mas que, por outro, não aceite que os princípios coletivistas se tornem reféns de impulsos individualistas: esse talvez seja um novo patamar de desafios que junho nos colocou.
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