Mais do mesmo engodo da democracia burguesa
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- Fábio Bezerra
- 18/07/2014
Às vésperas de completar um ano daquela que foi a maior manifestação de massas da História recente brasileira, conhecida como “jornadas de junho”, e a um mês do início oficial da campanha eleitoral, o Governo Federal editou, através da Casa Civil, o Decreto nº 8243/14 que trata da promoção de uma Política Nacional de Participação Social (PNPS), visando modernizar e “democratizar” as relações de representatividade e poder entre a sociedade civil e o Estado.
De imediato, um conjunto de entidades ligadas ao governo saiu em defesa de tal iniciativa e até mesmo adversários políticos atuais comentaram-na como se fosse um “ato acertado e necessário”.
Em proporção ainda maior, as tradicionais forças conservadoras e seus veículos e agentes de (des)informação, também saíram em campo para bradar aos quatro ventos sobre o que representaria, segundo eles, um novo golpe institucional e oportunista do governo, às vésperas das eleições, e que levaria ao descrédito os poderes da República – como se o congresso e o judiciário já não estivessem mais do que desgastados – e à “bolivarização” da democracia brasileira.
Enquadrar ou cooptar os impulsos de junho
Entre fatos e boatos, sobre as reais intenções que motivaram a publicação do referido decreto, é importante salientar que, desde o final de 2013, o governo vem preparando ações em diversas frentes para ora combater, ora se adaptar aos fatos e tentar controlar os impulsos e tendências da atual conjuntura brasileira. Recusa-se, de fato, a aceitar a verdade histórica que aponta para o esgotamento do modelo social-liberal, movido pela falsa lógica de inserção de parcela da população ao mercado via assistencialismo, consumismo e consequente endividamento público e a colaboração de classe, que não conseguiu superar contradições seculares, presentes nas relações sociais regidas pelas relações capitalistas excludentes.
Um bom exemplo dessa tática, que configuro como dual (repressão e cooptação), está na publicação, em dezembro de 2013, da Portaria da Lei e da Ordem, que remodelou todo o aparato de repressão do Estado, instituindo ações conjuntas entre as Forças Armadas, polícias locais e os Sistemas de Vigilância e Informação, através de práticas de espionagem, detenção prévia, suspensão de direitos, perseguição e criminalização de movimentos sociais, organizações e ativistas de oposição ao governo e ao sistema, sob a alegação de serem “Forças Oponentes” à ordem e à sociedade, tratados como “terroristas”.
Dual pois, se com uma mão o governo procurou “dar no ferro”, atendendo aos clamores de setores mais retrógrados da sociedade, os quais compartilham interesses econômicos no Estado e com o atual governo petista, por outro, agora, o governo ”dá na ferradura”, buscando disciplinar e conduzir ordeiramente – lê-se, de forma leniente – os movimentos sociais, frente às tendências da luta de classes e as contradições em curso.
As Jornadas de Junho colocaram na ordem do dia muito mais do que os anseios por mudanças na administração pública, as críticas ao caos da mobilidade urbana, a falência dos serviços públicos, sucateados criminosamente por governos neoliberais, a corrupção ativa e o desrespeito aos mais elementares direitos previstos em lei. As jornadas colocaram em xeque o atual modelo de representatividade política e as respectivas instituições ou atores políticos tidos, nesse cenário, como referenciais e/ou mediações legítimas de poder.
Esse fato, perigoso aos olhos daqueles que temem uma radicalização da luta direta das massas e a possível transformação de um entendimento imediatista (na sua capacidade interpretativa) e espontaneísta (no julgamento e tomada de ação) em interpretações e ações conscientes e consequentes – enquanto expressão da evolução da consciência de classe -, mereceria uma ação também direta e imediata por parte do governo, nesse sentido, sob outras formas e outra frente.
A forma encontrada, nesse caso, não é a repressão, mas sim a reificação da Política sob a égide das representações da democracia burguesa, como veículo formal para acoplar e acomodar “todas” as variantes e atores políticos em disputa, sob o compromisso do reconhecimento do Estado em relação às suas pautas, desde que estes agrupamentos, movimentos e ativistas, por sua vez, reconheçam o Estado e seus governos como legítimos árbitros e mediadores dos conflitos e possíveis resoluções no âmbito das esferas de ação estatal – sempre “dentro da Lei e da Ordem”.
E a proposta de frente de ação, enquanto forma para se pactuar tal compromisso político, são os conselhos de políticas públicas, teoricamente menos burocráticos do que as tradicionais formas de representação republicana, mais abrangentes e representativas.
Representatividade controlada
O Decreto em si, logo no artigo 1º, define como objetivos do PNPS: “(...) fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo e atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, o que leva a entender esse compromisso entre as partes como o selo de garantia da proposta. Por sua vez, os referidos conselhos não possuem os poderes deliberativos sobre o orçamento, ou mesmo a consecução de um projeto, tampouco sobre a administração direta dos órgãos e das instâncias de governo, responsáveis pela implementação de quaisquer políticas públicas.
São conselhos consultivos que poderão, de acordo com o artigo 5º, auxiliar na formulação, na execução, no monitoramento e avaliação dos programas de políticas públicas, desde que “respeitadas as especificidades de cada caso”.
Outro ponto contraditório e curioso é o fato de que caberá à Secretária-Geral da Presidência da República a incumbência de elencar quais são os critérios e condições necessárias para que os movimentos sociais institucionalizados, ou não, possam se enquadrar como partícipes dos conselhos, em que instância for. Dessa forma, cabe ao governo decidir quem irá jogar o jogo e não temos dúvidas de que as condições serão aquelas que amarram os participantes às decisões dos conselhos, digo, aos interesses estratégicos do governo.
No art. 3º, que trata das diretrizes gerais da PNPS, o inciso VII é esclarecedor quanto a um dos papeis que deve cumprir tal Decreto, entendido enquanto política de Estado, ou seja, de “ampliação dos mecanismos de controle social”. Nesse pequeno e quase desconexo trecho, reside todo o sentido ideológico e metodológico desse programa, que visa, além de formatar e disciplinar as ações e interpretações dos movimentos sociais, institucionalizar a lógica da negociação programada, através de acordos possíveis, que retirem das ruas ou ao menos esvaziem as reivindicações mais contestadoras e nocivas à lógica da acumulação e domínio do capitalismo, tentando adestrar e impor, como veículo oficial de diálogo, um mecanismo que por si pretende limitar o que vem crescendo em todo o país: a capacidade de insubordinação e de questionamento, cada vez mais crítico em relação ao Estado e às contradições da sociedade brasileira.
Não é à toa que, mais à frente, antes do artigo 15, o Parágrafo Único defende como modelo para as mesas de diálogo entre as relações de trabalho, a divisão tripartite (trabalhadores, patrões e governo), modelo pelo qual o sindicalismo de resultados oficializou, conjuntamente com o capital, o que seria a esfera ideal de mediação e resolução dos conflitos trabalhistas, em uma proporção sempre desfavorável aos trabalhadores, pois, do ponto de vista de classe, governos e patrões possuem um mesmo ideário e papel político. Como de praxe, caberá ao governo decidir quem representará os trabalhadores nessas mesas tripartites (não faltarão sindicatos e centrais pelegas para se candidatarem ao posto).
Um modelo de participação já defasado
A estrutura de funcionamento do PNPS estabelece uma hierarquia que vai do Conselho de Políticas Públicas, passando pela Comissão de Políticas Públicas, Conferência Nacional e Ouvidoria Pública Federal. Toda essa estrutura possui interconexões e ao mesmo tempo funções específicas, integrando o Sistema Nacional de Participação Social, conjuntamente com a Secretaria Geral da Presidência, que, por sua vez, indicará a composição dessas instâncias. Mas ilude-se quem pensa que a participação é imediata em todas as esferas e de forma direta e autônoma.
Nesse aspecto, a proposta demonstra a falácia democratista e cai a máscara da autonomia desses conselhos em relação ao Estado e ao governo, pois, de acordo com o art. 15, caberá aos Fóruns Interconselhos a definição das políticas ou programas a serem objeto de debate, formulação e acompanhamento e a “definição dos conselhos e organizações da sociedade civil a serem convidados pela sua vinculação ao tema”.
Ou seja, caberá a um Fórum que reunirá todos os Conselhos – escolhidos, inicialmente, pelo próprio governo, a dedo – a definição do que será discutido e acompanhado e a definição dos demais conselhos e organizações da sociedade que deles deverão participar! Isto é a terceirização direta, através de um superconselho chamado de Fórum dos Conselhos, das indicações dos quadros e dos agraciados do governo e de seus aliados, para a composição dos órgãos que irão “discutir”, “planejar” e “acompanhar” os programas sociais do próprio governo!
Sem sombra de dúvidas, muitos movimentos sociais e organizações populares poderão se iludir com esse modelo, mas estarão apenas cumprindo a triste função de coadjuvantes em um teatro com papeis e script já definidos.
Em suma, a proposta tão atacada pelos setores de oposição ao PT não é em si nenhuma ameaça à democracia burguesa, tampouco subverte a ordem de modo a elevar os movimentos sociais institucionalizados ou não à condição de potenciais agentes de disputa política na condução do Estado. E não há qualquer comparação possível com a chamada bolivarização, menos ainda com a sovietização das relações de poder!
Na realidade, de um lado, o governo utiliza astutamente, às vésperas da eleição e às vésperas da possibilidade de mais uma onda de protestos populares contra o legado da Copa no Brasil, a proposta de criação de uma sistemática estrutura de Conselhos de Políticas Públicas, também como forma de agitação e propaganda eleitoreira, tentando iludir diversos setores da sociedade que ainda acreditam na “teoria de um governo em disputa” ou que esperam mais ações populares e democráticas. De outro, o governo cria, com esse mecanismo, uma possibilidade de institucionalização da nova configuração do cenário dos movimentos sociais e conexão da sociedade via redes sociais, de modo a seduzir e cooptar esses atores e veículos de interação, sob a mesma lógica da manutenção da ordem do capital.
Tais setores compreenderam os reais interesses desses conselhos, o que potencializará o discurso eleitoreiro de Dilma e o reforço da influência do PT na estrutura do Estado no futuro próximo. Essa medida, de fato, por sua vez, resolve outra situação contraditória aos interesses do atual governo petista, isto é, a sempre difícil e muitas vezes tensa relação com o Congresso, pois, através dos conselhos, criar-se-ia um outro mecanismo de diálogo com a sociedade, que necessariamente não precisaria passar pelas barganhas com deputados e senadores de partidos que não estão na base aliada com o PT.
De tabela, poderá ser uma forma eficaz de atrelamento consentido e até mesmo uma nova forma de correia de transmissão ideológica do governo junto à sociedade, desde que haja rejeição à velha estrutura de representação subserviente, que as tradicionais entidades pelegas da burocracia sindical ou estudantil já não atendem mais.
Poder popular
Nos últimos anos, os comunistas do PCB vêm defendendo a constituição de conselhos populares em todas as esferas de atuação do Estado, como forma de inverter o modus operandi da democracia burguesa pautada em uma representatividade formal que exclui os interesses de classe dos trabalhadores da esfera do poder político do Estado e de suas atribuições. O PCB defende o Poder Popular, com autonomia total dos movimentos populares e das organizações dos trabalhadores frente ao Estado e aos patrões.
O Decreto dos Conselhos Políticos, como ficou conhecido, é mais uma tentativa petista de iludir e instrumentalizar as massas, veiculando a falsa ideia de que estas participarão de fato da elaboração e consecução de políticas públicas que possam resolver problemas sociais mais sensíveis como o caos na saúde e na educação, a violência, a mobilidade urbana, entre outros.
O referido Decreto é uma clara tentativa de formalização institucional das relações sociais e disputas políticas, de modo a associar os anseios de mudanças e as tensões presentes na luta de classes a uma falsa ideia de democracia ativa e direta.
Não significa que os movimentos sociais não devam participar de conselhos setoriais por princípio, por estarmos em uma sociedade de classes ou por serem conselhos ligados à estrutura do Estado; ao contrário, todas as mediações possíveis que possam levar a luta dos trabalhadores (as) a um patamar mais maduro de identidade política e consciência de classe devem ser valorizadas, enquanto possibilidades de acúmulo de forças e disputa por hegemonia.
Por sua vez, o fato de ser um conselho amplo e que possibilite algum diálogo com o Poder instituído em governos locais e/ou no próprio Estado não significa necessariamente que essas possibilidades poderão ser alcançadas a médio ou longo prazo, cabendo sempre refletir sobre os limites e as condicionantes que irão reger a participação dos trabalhadores (as) nesses espaços.
Todo esse processo reflete o desgaste do atual modelo de representação política, elitista em sua essência e viciado em eleições antidemocráticas, atrelado a um Congresso repleto de aves de rapina, de lacaios do imperialismo, lobistas ou traidores oportunistas.
O modelo de democracia participativa e direta, de modo que os trabalhadores (as) possam exercer de fato a direção política da sociedade, deve se dar em Conselhos Populares, que possam conquistar espaços e meios legítimos para que seus interesses sejam defendidos com a necessária independência e autonomia em relação aos limites da ordem institucional, de modo a construir, na luta ideológica e no enfrentamento ao modo de produção capitalista, um novo ideário de organização social e política para a sociedade, ideário esse que chamamos de PODER POPULAR e que não será constituído por Decretos, nem deverá ser instrumento de manipulações e ilusões de classe com cosméticos populistas, operados sobre as velhas estruturas da democracia burguesa.
Fábio Bezerra é professor de Filosofia e História e membro do Comitê Central do PCB.
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