De Mandela a Dilma, o sucesso e o fracasso de uma aposta política
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- Henrique Costa
- 08/08/2014
Uma das melhores histórias envolvendo esporte e política aconteceu em 1995 na África do Sul. Naquele ano, realizou-se no país a Copa do Mundo de Rúgbi, esporte muito popular em vários países da Europa e, por conseguinte, em muitos dos países colonizados por europeus, onde efetivamente este esporte se destaca, como Austrália e Nova Zelândia. Na África do Sul, o rúgbi não é exatamente um esporte popular, mas, sim, o esporte favorito da minoria branca que comandou o país durante o regime do apartheid. De modo que o Springboks, a seleção sul-africana de rúgbi, identificada com a elite racista do país, era hostilizada pela enorme massa negra e pauperizada do país.
Os bastidores do evento vieram a público com o livro de John Carl, Conquistando o inimigo, e ganharam o mundo com a versão cinematográfica de Clint Eastwood, o longa Invictus, de 2009. Em uma África do Sul que acabava de sair de um regime de exceção dos mais absurdos que o mundo já havia conhecido, o presidente Nelson Mandela, primeiro negro a comandar o país, ex-guerrilheiro preso por 27 anos, viu a oportunidade de usar a Copa do Mundo de rúgbi como um instrumento de união nacional, preservando a herança branca, da qual faz parte o Springboks, e colocando sua reputação em campo, literalmente, como símbolo de tolerância. Para isso, convidou o então capitão do time, o africâner François Pienaar, para ser seu parceiro.
Na véspera da final, o presidente enviou uma carta a Pienaar, que serviu de inspiração para que a seleção jogasse pelo país. A estratégia foi coroada com o título improvável da seleção sul-africana de rúgbi na final da Copa do Mundo em seu país. Vestido com o uniforme de Pienaar, Mandela entregou a taça ao capitão, e ambos entraram para a história, ajudando a consolidar simbolicamente o modo de regulação capitalista em que uma elite negra associada ao Congresso Nacional Africano (CNA) comanda politicamente o país e os brancos mantêm as formas de dominação econômica, em parceria com o Estado.
Em 12 de julho de 2014, a presidente do Brasil, Dilma Rousseff, enviou uma carta melancólica para a seleção brasileira de futebol, que disputava a Copa do Mundo em seu país. Um dia depois, ela entregava aos alemães a taça do torneio. Era o encerramento de uma epopeia que começou em 2007, com o anúncio da sede do evento a ser realizado sete anos depois. Na ocasião, Luiz Inácio Lula da Silva se colocou ao lado do então presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e hoje “exilado” em Miami, Ricardo Teixeira, para trazer o evento para o Brasil. O roteiro sul-africano estava preparado, e sua pupila Dilma Rousseff entregaria a taça a uma seleção brasileira campeã e redimida, unindo os desiguais em uma grande apoteose de união nacional em torno do modo de regulação lulista.
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Dilma não entregou a taça aos jogadores brasileiros. A eliminação brasileira com uma goleada para a seleção alemã por 7x1, seguida da perda do terceiro lugar com outra atuação abaixo da crítica contra a Holanda, já é bastante conhecida e comentada pelos jornalistas esportivos. Mas a débâcle da mítica camisa amarela em uma Copa do Mundo, em que pouquíssimos apostavam em outro resultado que não a vitória, explicitou a estratégia lulista de uso político da realização do torneio e da provável conquista, abrindo uma esperada brecha, por outro lado, para a oposição tentar se aproveitar do resultado adverso.
Porém, a seleção, hoje, não é muito mais do que um simulacro de um passado glorioso, ou o “sebastianismo doentio”, a crença “na volta da entidade Futebol Brasileiro, como se este estivesse sempre pronto a encarnar”, como disse José Miguel Wisnik. Se basta como um produto milionário e se vende a partir da poderosa mística conquistada nos anos dourados da “amarelinha”, entre as décadas de 1950 e 1970 e lampejos como o grande time de 1982, celebrado apesar da derrota – o “jogo bonito” virou uma marca do Brasil.
Para quem começou a acompanhar a saga do Brasil nos campos de futebol a partir da década de 1990, no entanto, não havia magia. Havia Carlos Alberto Parreira e seu time vitorioso exatamente pela falta de encanto, e esse modelo desestimulante não mudou mesmo com a conquista de 2002. Para aqueles que tiveram a oportunidade de testemunhar aqueles grandes times de três, quatro décadas atrás, a seleção brasileira de futebol talvez paire acima da racionalidade, no que os fãs de futebol chamam de paixão. A experiência geracional influencia na relação subsequente com o futebol. Assim como acontece na política.
E tal como os jovens aprenderam a ver a seleção brasileira com Parreira e Luiz Felipe Scolari, para quem a ilusão do jogo bonito deu lugar ao futebol de resultados, eles também aprenderam a notar a política com o PT no poder. Um partido assentado em ilusões do passado e na criação de inimigos imaginários – o mesmo artifício surrado usado por Felipão durante as crises de seu time.
Involuntariamente, Dilma juntou coerentemente a governabilidade que comanda sua agenda à seleção responsável pelo fim das ilusões. Há cerca de um ano, a presidente anunciava que seu governo era “padrão Felipão”, tentando angariar para si o carisma do técnico e o sucesso do time campeão da Copa das Confederações. Mal assessorada, contou com o mito do país do futebol, para quem um Mundial em casa não teria nunca outro campeão.
Enquanto produto cuidadosamente trabalhado por patrocinadores, cartolas e pela mídia chapa branca, a seleção brasileira conquistou o mundo como uma espécie de McDonalds da bola.
Todas as análises táticas e propostas de reestruturação do futebol local, descritas ao nível da súplica, são páginas e horas gastas para manter a engrenagem funcionando, mesmo que cheias de boas intenções. Porque, mais do que um time de futebol, a seleção brasileira tem um papel simbólico fundamental para a manutenção do frágil nacionalismo local.
Em tom ufanista e adornado por jargões de inspiração militar em um país que não pegou em armas por independência ou pela República, o futebol cumpre o papel de nossos praças em guerra. Não por acaso, a história da seleção se mistura às fontes de poder da nação. Somos um só, como diria a Rede Globo, sócia do status quo futebolístico e político, lado a lado a Marins, Teixeiras e Havelanges.
A politização da “Copa das Copas” é inegável. Qualquer conta honesta de menções positivas ao evento por parte de governistas, e negativas por parte da oposição, mostra exatamente quais eram as expectativas de cada lado e o saldo da realização. Efetivamente, a Copa do Mundo foi muito menos magnífica do que seus organizadores brasileiros previam em 2007 – a chuva de explicações no dia seguinte à final comprova que o governo acusou o golpe –, e muito menos catastrófica do que suspeitavam parte da imprensa internacional e mesmo os homens da FIFA, que sugeriram o famoso “chute no traseiro” dos brasileiros que não cumpriam seus prazos.
Foi o governo brasileiro quem escolheu Ricardo Teixeira para liderar a organização do Mundial. Sua filha, Joana Havelange, para quem “o que tinha de ser roubado já foi”, participou do Comitê Organizador Local até o último dia. E isto não era uma exigência da FIFA, mas uma escolha política emblemática do lulismo, ou seja, a aliança com os setores que participam do condomínio de poder do país em nome de objetivos imediatos de manutenção do poder e ganhos tímidos para a maioria da população, no caso, o chamado “legado” do Mundial.
Nada poderia dar errado, portanto. Ao lugar-comum de que os brasileiros, sem exceção, têm o futebol “como uma religião”, como declarou o presidente da FIFA, Joseph Blatter, juntou-se a prepotência de quem não vê obstáculos no caminho. Uma capa tão poderosa quanto a da seleção brasileira e que faz com que, até hoje, pessoas razoáveis e mesmo analistas considerem o “saldo eleitoral” de uma Copa do Mundo, mesmo com inúmeras evidências em contrário. Desde 1998, o resultado da seleção na Copa tem o efeito eleitoral inverso ao esperado. Pesquisas que medem tamanho de torcida, por exemplo, mostram que, historicamente, cerca de 30% da população nem mesmo torcem para qualquer clube, quanto mais têm o futebol “como religião”.
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A Copa do Mundo deu certo, mas o que tinha de dar errado, como diria Joana Havelange, já foi, e ainda pode vir depois de encerrada a festa. Remoções forçadas, prisões arbitrárias de manifestantes e gastos extravagantes em estádios ainda não cobraram a sua fatura. Enquanto isso, grupos relativamente pequenos conseguiram emplacar o mote “não vai ter Copa”, obrigando o governo a reagir – prova da fragilidade do nosso “projeto sul-africano”. O legado de mobilidade, por exemplo, não virá no nível das promessas. O futuro dirá se valeu a pena.
Dilma recuperou uma parte pequena da popularidade que perdeu durante junho de 2013 com a boa organização do torneio. Mas nada comparado às expectativas geradas pela Copa mais cara da história. Não perder ainda mais, neste caso, foi a maior vitória. Se é improvável que o resultado eleitoral em outubro seja afetado pela derrota do selecionado da CBF, a presidente também correu todos os riscos de um desgaste que talvez não seja medido nas urnas, mas em 2015. A cobertura positiva da mídia ajudou a melhorar a imagem do evento, transformando um projeto político fracassado (em seus objetivos iniciais) em um relativo sucesso econômico.
Enquanto isso, a cartolagem segue firme e forte, no futebol e na política. Andrés Sanches, ex-presidente do Corinthians, será o principal candidato a deputado federal pelo PT em São Paulo. Recentemente, a prefeitura de São Paulo batizou de Vicente Mateus, folclórico ex-presidente do clube, um viaduto próximo ao Itaquerão. Não foi a primeira homenagem aos distintos dirigentes do futebol brasileiro. Talvez, o fracasso último ajude a escancarar o “gap” entre gestão e espetáculo, onde diminuí-lo é a única forma de sobrevivência do esporte de massas no capitalismo avançado, mas não parece provável na medida em que a manutenção do poder dará o tom da derrota uma vez mais.
Uma das cenas marcantes da Copa do Mundo no Brasil fora do campo se deu no entorno da arena de Itaquera. Da estação de metrô do bairro ao local do evento, um corredor havia sido montado para separar turistas da comunidade local, onde os membros das classes subalternas se amontoavam por copos e qualquer souvenir do torneio, lembrando os famigerados “favela tours” dos morros cariocas. Provavelmente eleitores da “nova classe média” de Dilma que, por sua vez, ouviu vaias da velha classe média dentro do estádio.
Se Felipão serviu de inspiração para a presidente na vitória, até agora não serviu de alerta na derrota.
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Henrique Costa é mestrando em ciência política na USP.