O longo bonapartismo brasileiro – 1930-1964 – Um ensaio de interpretação histórica
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- Carla Luciana Silva
- 25/09/2013
A obra do historiador Felipe Demier é uma pequena parte de sua tese de doutorado. Ela é proposta como um “ensaio”, mas tem todas as características de obra acadêmica, adentrando discussões historiográficas recheadas de notas de rodapé, citações e referências. O livro vai além disso. Busca empreender debate político para além do acadêmico, na medida em que apresenta uma tese fortemente inspirada em León Trotsky, que é seguida através do trabalho.
A tese que busca comprovar é que, ao longo do período estudado (1930-64), o Brasil viveu sob domínio de um semi-bonapartismo. O bonapartismo é a medida teórica do autor. O Brasil teria sido pré-bonapartista desde 1930; “mais bonapartista”, no Estado Novo; semi-bonapartista, no período JK. Apenas o período Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) escapa da qualificação. Os curtos períodos históricos são para o autor regimes”, onde a tese da necessidade de mudar para tudo ficar como está” é a tônica principal. O bonapartismo é reiterado como a religião da burguesia brasileira, aludindo a F. Engels.
Ao longo dos nove capítulos, o autor trata de intricadas teses da historiografia, emitindo sobre elas opiniões nem sempre aprofundadas no presente ensaio – questões discutidas no texto de sua tese de doutoramento. Enuncia o objetivo de contribuir para a pesquisa sobre a verdadeira natureza das relações entre Estado e sociedade no país” (p. 27). Segundo o autor, o bonapartismo brasileiro foi responsável pela criação de uma “ideologia de um Estado patrimonialista e cartorial”. A partir disso, propõe uma interpretação materialista e dialética do Estado. A interpretação marxista sobre o Estado passa, portanto, pelo debate do bonapartismo. É a grande contribuição ao debate que o autor apresenta.
Inicialmente, propõe considerações teóricas sobre o bonapartismo, regimes nos quais “a existência das incontáveis massas populares tornam ineficazes antigas e altamente exclusivistas formas de dominação política burguesa” (p. 39). O bonapartismo seria um regime de exceção, fortemente marcado por uma crise de hegemonia. O Estado passaria a ter uma autonomia política diante dos conflitos de classe, pois a burguesia se mostraria inepta para a gestão destes últimos.
Para sustentar a tese, León Trotsky e Nahuel Moreno, dirigente trotskista argentino já falecido, são fontes argumentativas. Apesar de enunciar o conceito como um fato “transitório” (de exceção), a tese, aplicada ao Brasil, estende-se para os longos anos estudados. O próprio autor percebe aí uma possível contradição e fonte de crítica à sua proposta. Responde a elas afirmando que categorias “transcendem as realidades factuais e temporais a partir das quais foram criadas” (p. 51).
O livro trata do domínio cafeeiro e a “crise de hegemonia”, entendidas como raízes históricas do bonapartismo brasileiro. O autor retoma a tese do “estado de compromisso”, segundo a qual não há nenhuma fração de classe capaz de assumir a hegemonia, deixando ao Estado esse papel. Diferencia-se das teses correntes, ao dar ao Estado um papel central no estabelecimento do “compromisso”. O Estado define e impõe as regras às frações de classe. Uma “autonomia relativa” do Estado seria a saída para a manutenção da sociedade burguesa. Segundo o autor, antes de 1930, “a classe dominante brasileira não precisou ser dirigente, depois de 1930 ela não conseguiu ser dirigente” (p. 77).
O Governo Provisório de 1930 a 1934 é entendido como a construção do bonapartismo – um período “tendencialmente bonapartista, que continha ainda elementos de cariz oligárquico” (p. 84). Segundo o argumento, trata-se de um consenso passivo da burguesia para a modernização brasileira. A inflexão do governo provisório estaria dada pelo anticomunismo, que levaria à quebra dos burgueses recalcitrantes no apoio a Vargas. Paralelamente, ao longo do livro, o autor discute as teses do Partido Comunista, como o “ridículo culto (obrerista) à classe operária” (p. 100), entre outras.
A Constituição de 1934 também é vista como parte da formação do “bonapartismo semiparlamentar”, embora a discussão sobre ela seja incipiente na obra. Para o autor, o que importa é caracterizar os anos 1934-37 como “escalada bonapartista”, fazendo uma comparação com o bonapartismo francês. O autor assume o risco do debate, defendendo que “a função hegemônica entre 1930 e 37 não fora exercida por nenhuma classe ou fração de classe”. Sem querer, corre o risco de esposar as tradicionais teses que apontam Vargas como motor da modernidade brasileira. Para o autor, o importante é enfatizar que a burguesia brasileira “abdicou totalmente de qualquer poder político (direto)” (p. 119). A sustentação da “ditadura pessoal de Vargas” seria devida à “massa burguesa” que teria sustentado o golpe do “18 brumário” do ditador.
O Estado Novo (1937-1945) passa a ser a forma da dominação burguesa no Brasil, com a burguesia “se convencendo” da necessidade de um Bonaparte (Vargas), que iria criar formas controladas de incorporação da classe trabalhadora. Para Demier, sustentando a tese de Nauhel Moreno (p.162) e de Trotsky, trata-se de um “bonapartismo semifascista”. A crise do Estado Novo levaria à “transmutação bonapartista” (1942-45), quando o autor reconhece um sentido progressista da ditadura bonapartista (p. 178).
A partir daí, Demier desenvolve a tese do “cesarismo sem César”, no qual a luta de classes se daria sob o “semi-bonapartismo democrático”. Justamente no período autoritário e repressor de Dutra, o autor vê a “mudança de regime”, ou seja, a mudança no bonapartismo, onde “não se tratava mais de uma variante semifascista”, porque a “força dos trabalhadores forçou a turrona burguesia a ceder, ainda que pouco”. Há que dimensionar melhor a questão, pois sob Dutra a repressão à classe trabalhadora foi a regra da política.
Inspirado na tese de Trotsky do “bonapartismo sui generis latino-americano dos anos 1930”, Demier conclui que o período em questão, 1946-64 (excetuando o governo Dutra), constituiu o semi-bonapartismo democrático, sustentado em práticas reformistas. Elas seriam interrompidas pela contrarrevolução sintetizada no Golpe de 1964. Por fim, a conclusão é de que a democracia brasileira é “filha direta de um longo bonapartismo e que, por isso, ela possivelmente carregue algum dos seus traços”.
Não é necessário concordar com a tese do “longo bonapartismo” para perceber que o livro traz importantes contribuições ao debate, retomando análise de um período da história brasileira marcado por um longo domínio das interpretações da historiografia tradicional. Ganhamos muito com a contribuição do autor em sua leitura marxista do processo.
Ficha técnica:
Título: O longo bonapartismo brasileiro – 1930-1964
Subtítulo: Um ensaio de interpretação histórica
Autor: Felipe Demier
Editora: Mauad
Ano: 2013
Páginas: 248
Preço: R$ 54,80
Carla Luciana Santos é historiadora e professora da Unioeste.