Correio da Cidadania

O financiamento da educação em três propostas de Plano Estadual de Educação

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Neste final de agosto, estão na Assembleia Legislativa paulista três propostas de Plano Estadual de Educação (PPE). Uma primeira proposta, preparado por militantes de várias entidades educacionais, a Associação dos Docentes da USP (Adusp) entre elas, será identificado como PEE independente (PEE-I). Essa primeira proposta foi apresentada no final de junho, portanto dentro do prazo exigido pelo Plano Nacional de Educação, tendo sido assinada pelo deputado Raul Marcelo.

 

(Posteriormente, tendo em vista o fato de que o governo estadual pediu regime de urgência para o projeto por ele apresentado, aquela proposta foi novamente encaminhada, na forma de uma emenda substitutiva, pelo deputado Carlos Giannazi.)

 

Uma segunda proposta é a apresentada pelo poder executivo paulista e encaminhada pelo governador e pelo secretário da Educação no início de agosto, portanto, mais do que um mês após o prazo limite previsto pela legislação. Essa proposta será identificada como PEE-G.

 

A terceira proposta foi preparada pelo Fórum Estadual de Educação ((1) identificada por PEE‑F) e apresentada, também na forma de substitutivo à do governo estadual, pela bancada do Partido dos Trabalhadores, igualmente no início de agosto. Neste texto, vamos analisar como a questão do financiamento aparece nas três propostas.

O corpo da lei

 

Há uma diferença fundamental entre o PEE-I e as duas outras propostas. O PEE-I tomou o cuidado de colocar as exigências básicas sobre o financiamento da educação pública já no próprio corpo da lei, o que não ocorreu nos dois outros casos (PEE-G e PEE-F), que as colocaram apenas nas metas dos respectivos anexos. Há várias razões para aquele cuidado.

 

Uma delas é que muitas das metas constantes do anexo do Plano Nacional de Educação de 2001 simplesmente não foram cumpridas, sem qualquer consequência prática, o que parece sugerir que um anexo de lei na forma de metas, estas mesmas dependentes de estratégias também incluídas no anexo, parece não ter o mesmo peso da lei. Assim, colocar claramente no corpo da lei as exigências quanto ao financiamento gerará, de fato, obrigações e direitos.

 

A forma que os investimentos públicos no estado devem ser medidos é tomando o produto interno bruto (PIB) estadual como referência, coisa que é feita no corpo da lei da proposta PEE-I (e repetida de forma complementar no anexo). Os corpos da lei das duas outras propostas, PEE‑G e PEE‑F, nada preveem quanto ao financiamento e quando o fazem, nos anexos, não tomam o PIB paulista como referência.

 

Há, ainda, no PEE‑I, um grande cuidado para impedir que sejam computados como investimentos em educação pública despesas com outras atividades não estritamente educacionais (e usualmente computadas em outras alíneas das despesas públicas) e transferência de recursos a instituições privadas, sejam essas transferências feitas diretamente ou na forma de isenções de tributos. Esse cuidado não existe nas propostas do governo (PEE-G) e do Fórum Estadual de Educação (PEE-F), permitindo, assim, que se adote o que prevê o PNE de 2014, o qual considera como investimentos em educação pública recursos transferidos para o setor privado, por mais paradoxal que isso possa parecer.

 

Dois outros aspectos importantes relativos ao financiamento também estão no corpo da lei do PEE-I e não apenas no anexo. Um deles é a remuneração dos trabalhadores da educação e o outro é o investimento por estudante. No caso deste último, um padrão internacional é usar como referência o PIB per capita que, afinal, reflete tanto o custo de vida em cada local como as possibilidades econômicas.

 

A previsão é que, já a partir de 2018, os investimentos totais divididos pelo número de estudantes não poderão ser inferiores a 25% do PIB per capita do Estado, tanto na rede estadual como nos municípios (2). Como a maior parte dos investimentos educacionais corresponde à remuneração dos trabalhadores da educação, é essa exigência que garante a remuneração adequada dos professores, tanto na rede estadual como em todos os municípios do Estado, viabilizando cargas horárias de trabalho compatíveis com a atividade docente.

 

Além disso, aqueles 25% do PIB per capita viabilizam salas não superlotadas, escolas equipadas e todas as demais condições necessárias para se ter um bom sistema educacional em todos os municípios. Nenhum desses dois aspectos do financiamento (referência ao PIB e à renda per capita estaduais) aparece no corpo da lei das duas outras propostas, o PEE-G e o PEE-F, nem entre suas metas.

 

Sem esgotar os pontos importantes, há outro que merece ser dito: a punição caso a lei não seja seguida. As leis que geram obrigações devem prever quais são as consequências do seu desrespeito, pois, de outra forma, não têm qualquer efetividade prática. No caso do PEE-I, a não observância da lei deverá ser entendida como um desrespeito aos direitos da pessoa humana previstos na Constituição do país, podendo levar às consequências lá previstas. É essa previsão de punição, combinada com o fato que os principais aspectos do financiamento aparecem no próprio corpo da lei e não apenas em seu anexo, que garantem que o financiamento da educação pública no Estado venha a ser realmente melhorado.

Investimentos públicos totais

 

Como já antecipado, o PEE-I exige que os investimentos públicos em educação pública (dos municípios, do governo estadual e da União no Estado) atinjam 9,5% do PIB paulista, sendo 6% já em 2018, crescendo, a partir dessa data, 0,5% a cada ano, até atingir aquele valor (atualmente, os investimentos estão abaixo dos 4% do PIB).

 

Também como já dito, esses valores devem incluir apenas investimentos com educação pública no sentido estrito do termo, proibindo‑se que despesas correspondentes a outras atividades não estritamente educacionais e transferências diretas ou indiretas ao setor privado sejam consideradas gastos com educação. Nas metas incluídas no anexo, esses investimentos são detalhados por nível de ensino.

 

A proposta do poder executivo (PEE-G), assinada pelo governador e pelo secretário da Educação, é, pelo menos, estranha, aparentemente feita usando as teclas ctrl C ctrl V de um computador. Em uma das metas ele estabelece que se deve “ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% (sete por cento) do Produto Interno Bruto – PIB do país no 5º (quinto) ano de vigência do PEE e, no mínimo, o equivalente a 10% (dez por cento) do PIB no final do decênio”, redação idêntica àquela do PNE de 2014.

 

Além de ser um cópia‑cola do que já estava escrito no PNE desde meados do ano passado, parece uma espécie de jogo do tipo ache os erros. Primeiro, se isso está escrito em uma lei federal, por que repetir em uma lei estadual? Segundo, como a redação se refere ao PIB nacional, o que isso está fazendo em uma lei estadual?

 

Afinal, um estado não pode fazer leis para os outros estados e a União cumprirem! Talvez, distraídos com as teclas ctrl C ctrl V, secretário e governador não tenham percebido isso. Mas há mais erros. O PNE é de meados de 2014 e, portanto, ainda que a proposta governamental seja aprovada muito rapidamente, os prazos para os 7% e os 10% dados pela lei nacional se esgotarão um ano antes do que o escrito na proposta governamental.

 

Será que governador e secretário não perceberam a sutileza aritmética? Outro erro ainda é fazer referência ao PIB nacional. Ora, uma lei estadual deveria fazer referência ao PIB estadual, como ocorre com o PEE-I, já apontado anteriormente.

 

A proposta elaborada pelo Fórum Estadual de Educação (PEE-F), prevê, em uma das metas de seu anexo, “ampliar as fontes de financiamento à educação pública, no estado de São Paulo, por meio de mudanças no sistema tributário estadual (...)”. Embora isso não esteja no corpo da lei, mas apenas no anexo, parece significativamente melhor do que a do governo pois, pelo menos, diz que é no estado.

 

Entretanto, são apenas intenções vagas, não obrigações, que, se não cumpridas, terão consequências legais. Além disso, a previsão é que se ampliem as fontes de financiamento, não o valor do financiamento! Com essa redação e apenas no anexo, qual poderia ser a consequência disso na prática?

 

O mesmo PEE‑F inclui aspectos interessantes entre as estratégias da mesma meta de financiamento, como o aumento da carga tributária. Entretanto, pela forma que aparece – apenas uma estratégia de uma meta no apêndice da lei –, é um belo discurso, mas sem nenhuma consequência. Porém, há um péssimo aspecto nessa proposta de plano: ela permite que renúncias fiscais, subsídios e coisas equivalentes que beneficiam o setor privado possam ser considerados investimentos educacionais públicos (o setor privado deve agradecer)!

 

Há no PEE-F uma preocupação com a definição dos investimentos por estudante na forma do custo aluno-qualidade, conceito que permite calcular a quantidade de recursos por estudante necessária para oferecer uma educação de qualidade. Entretanto, diferentemente do PEE-I, deixa sua definição em aberto e apenas em uma estratégia de uma meta do anexo. Isso é muito fraco.

Remuneração dos trabalhadores da educação

 

O PEE-I exige, no corpo da lei e não no anexo, que a remuneração dos profissionais da educação pública básica seja de no mínimo 80%, até 2018, e 120%, até o final da vigência do plano, da remuneração média dos demais profissionais no estado de São Paulo, com mesmo nível de formação e jornada de trabalho e que exerçam as profissões para as quais se formaram.

 

Por outro lado, o PEE-F e o PEE-G têm, entre as metas do anexo, a exigência de que os profissionais do magistério das redes públicas tenham rendimento médio igual ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente, até o final do sexto ano de vigência do PEE. Vejamos as diferenças entre as duas redações.

 

Primeiro, os PEE-G e PEE-F não incluem essas exigências no corpo da lei, mas apenas entre as metas do anexo. Como já dito, o PNE de 2001 mostrou que metas de anexo, se não cumpridas, não têm consequência alguma: essas exigência precisariam estar no corpo da lei e com definição das consequências caso elas não fossem cumpridas.

 

Outro erro de ambos é não especificar qual o conjunto dos demais trabalhadores com mesma formação escolar a que se referem ao calcular a média dos rendimentos: como ambos os projetos são cópia‑cola do Plano Nacional de Educação de 2014, parece implícito que a remuneração média dos demais trabalhadores será calculada em nível nacional, não paulista. O erro causado pela omissão do conjunto sobre o qual se calculará a média é grave, pois a remuneração média no estado de São Paulo é cerca de 75% superior à remuneração nos demais estados e, consequentemente, o custo de vida também é bem mais elevado.

 

Outro problema grave do PEE‑F e PEE‑G é não fazerem referência à profissão exercida pelos demais trabalhadores: dever-se‑ia considerar apenas pessoas que exerçam as profissões para as quais se formaram, pois a diferença pode ser bastante grande. Finalmente, há um erro de conta comum aos dois projetos: especificar o prazo de seis anos. Ora, como essa mesma exigência é feita no PNE de 2014 e com o mesmo prazo, este se esgotará um ano antes do prazo estipulado pelo PEE-G e pelo PEE‑F.

 

Seria isso distração, consequência de ficar manipulando desatentamente as teclas cópia‑cola de um computador? Como consequência de todas essas falhas, em ambos os casos os dois projetos podem não ter consequência nenhuma quanto à remuneração dos professores.

 

Há, ainda, algo muito estranho no PEE governamental ao dizer que a remuneração média dos professores deve ser feita observando-se a lei de responsabilidade fiscal. Por quê? Por mais que se possa abominar tal lei, é óbvio que o governo estadual tem de respeitá-la, escreva isso ou não em qualquer lei, pois, se não o fizer, sofrerá consequências.

 

Além disso, o que a lei de responsabilidade fiscal tem a ver com a remuneração de uma categoria específica de trabalhadores, a do setor educacional? Se o governador e seu secretário de educação pretendem com isso jogar os professores da educação básica contra uma lei nacional ou contra o governo federal, a estratégia pode funcionar, mas apenas desnudaria uma forma pouco séria de atuar quando se discute algo tão importante quanto à política educacional do Estado.

Em resumo, uma coisa muito feia

 

Há muitos e enormes problemas com as propostas de Plano Estadual de Educação apresentadas pelo governo (PEE-G) e pelo Fórum Estadual de Educação (PEE-F), embora o primeiro pareça ainda pior do que o segundo (os pontos levantados, com erros de aritmética e o abusivo uso das teclas cópia‑cola, deveriam reprovar o governador e o secretário de educação?)

 

No que depende do PEE‑G e do PEE‑F, o financiamento público da educação pública não será suficiente para oferecer as condições necessárias para a oferta de uma educação democrática e igualitária, com a qualidade que a população exige e a realidade econômica permite, que seja emancipadora e ao mesmo tempo forme os quadros profissionais de que o estado precisa, oferecendo, a todos, as condições necessárias para o pleno exercício dos direitos e deveres da cidadania. Ao contrário, ambos os projetos garantem o atraso educacional no estado de São Paulo.

 

Notas:

 

1) O Fórum Estadual de Educação de São Paulo foi instalado em fevereiro de 2013 pelo secretário de educação do estado. Fazem parte dele várias entidades da sociedade civil. Entretanto, sua constituição parece totalmente irregular, pois a Associação dos Docentes da USP se desligou oficialmente no início de 2015 e suas congêneres da Unicamp e Unesp (Adunicamp e Adunesp) se entendem como não membros, uma vez que não participam das reuniões, o que implica desligamento automático segundo as normas legais. Apesar disso, essas três entidades continuam constando como participantes daquele fórum, ilustrando a (má) forma com que esse fórum é dirigido.

 

2) Os investimentos por aluno estão abaixo de 15% da renda per capita estadual, correspondendo a cerca de 400 reais por mês e por aluno a valores de meados de 2015.

 

 

Leia também:

Os 10% do PIB e o financiamento da educação pública nos estados

 

A origem dos 10% do PIB nacional para a educação pública e o reconhecimento de sua necessidade

 

‘Educação pública não pode seguir tolhida pela agenda do capital, dos governos e das igrejas’ – entrevista com Roberto Leher, novo reitor da UFRJ.

 

 

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um diagnóstico da Educação Brasileira e de seu financiamento”.

Blog: www.blogolitica.blogspot.com

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