Correio da Cidadania

A mercantilização da USP

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Fotograma do filme The Woll (Pink Floyd), dirigido por Alan Parker.

 

Em seu influente estudo dedicado à gênese do capitalismo industrial no século 19, o marxista húngaro Karl Polanyi associou a consolidação desta verdadeira utopia regressiva que é a ideia de “autorregulação” mercantil à precificação das três mercadorias por ele consideradas “fictícias”, pois não produzidas com a finalidade da venda: o trabalho, a terra e o dinheiro (1). O impacto provocado pelo mercado nestes três alicerces sociais, para utilizar uma linguagem marxista, destruiria seus valores de uso ao subordiná-los ao movimento alienado do valor.

 

O valor de uso do trabalho, isto é, a reprodução social pela mediação sócio-metabólica entre a humanidade e a natureza, seria deteriorado pela espoliação dos meios de produção e pela intensificação da exploração econômica. O valor de uso da terra, isto é, sua fertilidade, seria ameaçado pela degradação ambiental. E, finalmente, o valor de uso do dinheiro, isto é, sua capacidade de medir os valores de troca, seria arruinado pela generalização do processo de compra e venda do próprio dinheiro. Em suma, o movimento do mercado “autorregulado”, isto é, o movimento irracional e alienado do trabalho abstrato, colocaria em risco a existência da própria sociedade.

 

Recentemente, o sociólogo britânico, Michael Burawoy, lembrou-se de acrescentar uma quarta mercadoria fictícia à lista de Polanyi: o conhecimento (2). A atual onda de mercantilização do conhecimento impediria a realização de seu valor de uso, ou seja, promover o progresso social, ao espoliar sua natureza pública.

 

A crise de financiamento das universidades públicas em diferentes países do mundo, o endividamento crescente da juventude trabalhadora a fim de sustentar seus estudos e o aprofundamento da burocratização por meio do bloqueio da participação democrática nas decisões estratégicas das universidades seriam diferentes dimensões de uma mesma realidade: o ataque ao conhecimento público promovido pelas forças de mercado (4).

 

As denúncias do jornal O Estado de S. Paulo de contratos celebrados pela Fundação de Apoio à USP (Fusp) envolvendo diversas empresas de professores, de dirigentes da fundação e de pesquisadores da universidade com prefeituras e corporações, revelam uma dimensão importante deste ataque: a espoliação dos recursos públicos por meio da privatização da atividade científica (4).

 

Trata-se de uma realidade propagada há décadas pelos movimentos sociais ligados à proteção do caráter público da USP, mas nunca seriamente debatida pela alta burocracia universitária (5). E como seria diferente se os principais beneficiários destes contratos são integrantes desta mesma burocracia? (6)

 

Apesar de graves – afinal, professores da universidade, alguns deles coordenadores de projetos da Fusp, assinaram contratos por empresas em seus nomes ou de familiares, contrariando frontalmente o código de ética da USP –, tais denúncias revelam apenas uma dimensão do processo de espoliação que afronta e oprime a universidade.

 

Ainda mais grave é o documento redigido por uma equipe criada pela Comissão Especial de Regimes de Trabalho (CERT) para reavaliar a regulação do trabalho docente da USP. Em termos sumários, a equipe propôs abandonar o Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) como forma de contratação prioritária da universidade em benefício do Regime de Turno Completo (RTC) e do Regime de Turno Parcial (RTP).

 

Na prática, isto significaria que o docente contratado receberia muito menos, não poderia desenvolver plenamente as funções de pesquisa e ficaria anos sob constante avaliação da CERT a fim de um dia ser promovido ao RDIDP.

 

Caso seja aprovado pelo Conselho Universitário (CO), este projeto fatalmente degradaria o ensino e a pesquisa por meio da precarização do trabalho docente. Alega-se que a razão por trás da proposta é a atual crise de financiamento pela qual atravessa a universidade. No entanto, ao economizar em algo tão essencial, isto é, a dedicação dos docentes ao ensino e à pesquisa acadêmica, a reitoria não apenas estaria se desobrigando da tarefa de reivindicar mais verbas para a educação pública, como submeteria os novos professores à vicissitude de seu despotismo acadêmico.

 

Além disso, este projeto aprofundaria ainda mais a “dualização” do corpo docente divido entre um núcleo prestigiado e uma semiperiferia subalterna e mal remunerada. Os novos contratados precisariam ter outras fontes de rendimento, o que os conduziria fatalmente ao mercado de trabalho do sistema universitário privado. Aqui, reencontramos a mercantilização do conhecimento sob outra roupagem.

 

A precarização do trabalho docente e a privatização do conhecimento acadêmico são duas expressões do mesmo projeto: a mercantilização da USP. Trata-se de um projeto cujo núcleo radica na apropriação do aparelho universitário por uma burocracia cujo compromisso principal não é com as classes subalternas que financiam a universidade, mas com seus próprios interesses mesquinhos de camada social privilegiada em busca do enriquecimento. Contra este tipo de projeto, só existe uma solução: estabelecer e ampliar o controle democrático da burocracia acadêmica pela comunidade universitária.

 

Karl Polanyi nos mostrou que ao ser ameaçada pela mercantilização, a sociedade reage por meio de movimentos contrários à lógica alienada da economia capitalista. Alguns destes “contramovimentos”, como o fascismo e o stalinismo, por exemplo, mostraram-se verdadeiramente desastrosos para a própria sociedade que buscava se proteger do mercado. Outros, como o New Deal estadunidense e a socialdemocracia europeia, apontaram alternativas progressistas.

 

Necessitamos, urgentemente, de uma solução radicalmente democrática para a crise da USP. Uma saída capaz de proteger a universidade das ameaças da mercantilização neoliberal. Para tanto, é preciso emancipar a comunidade universitária do despotismo burocrático que a asfixia. A USP precisa de uma revolução democrática.

 

 

Notas:


1) Ver POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. São Paulo: Campus, 2000.

 

2) Ver BURAWOY, Michael. “Facing an unequal world”. Current Sociology, vol. 63 (1), 2015.

 

3) Ver também o blog criado por Michael Burawoy quando era presidente da Associação Internacional de Sociologia (ISA) a fim de promover o debate sobre o tema da crise internacional da universidade: “Universities in crisis“.

 

4) Ver SALDAÑA, Paulo. “Pesquisadores da USP são sócios de firmas beneficiadas por contratos”. O Estado de S. Paulo, 15 de agosto de 2015; e SALDAÑA, Paulo. “Fundação da USP paga empresas de docentes”. O Estado de S. Paulo, 15 de agosto de 2015.

 

5) Ver Associação de Docentes da Universidade de São Paulo. “Universidade pública e fundações privadas: aspectos conceituais, éticos e jurídicos”. Cardernos da Adusp, São Paulo, novembro de 2004.

 

6) Bastaria lembrar que o ex-diretor da Fusp, José Roberto Cardoso, afastado semana passada por suspeita de corrupção, desistiu de sua candidatura a reitor, em 2013, beneficiando o atual reitor, Marco Antonio Zago, que o nomeou para dirigir a fundação logo após sua posse.

 

Leia também:


‘Educação pública não pode seguir tolhida pela agenda do capital, dos governos e das igrejas’


O financiamento da educação em três propostas de Plano Estadual de Educação

 

 

 

Ruy Braga é sociólogo do trabalho.

Publicado originalmente no Blog da Boitempo.

Comentários   

0 #1 Começamos a falar sério...Candido Volmar 27-08-2015 12:10
Agora, sim, já dá para um começo: já aparecem nomes de corruptos da USP, mas ainda não foi evidenciada a conexão entre eles, para caracterizar a formação de quadrilha.
Depois disso, ainda espero ouvir falar da OPUS DEI, do Santander, do Ministério Público Privado de São Paulo, e também de...
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