Correio da Cidadania

Enquanto isso, longe de Marte...

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Vasculha-se cada cantinho de Marte. Comemora-se o grande feito de se encontrar vestígios de água no Planeta Vermelho. Festeja-se essa grande conquista da humanidade. Enquanto isso, milhões de homens, mulheres e crianças padecem sem acesso à água potável neste planeta tão injusto.

 

Viaja-se com uma sonda (logo mais com um foguete). Duzentos e vinte cinco milhões de quilômetros, sem que seja necessário parar para abastecer num posto de gasolina interestelar. Enquanto isso, a Terra ferve e seca nos quatro cantos, por conta do aquecimento global. Tecnologias de geração de energia renovável são boicotadas ao sabor dos interesses das grandes companhias que vivem da desgraça do planeta. Das guerras por petróleo.

 

Bilhões de dólares são empregados para enviar um robô até Marte. Enquanto isso, diz-se que preservar a natureza e a sua relação com a vida humana é economicamente inviável.

 

Espera-se que estejamos todos felizes com a descoberta de água em Marte. Enquanto isso, permanecemos estagnados num modelo econômico que condena os homens a estarem em permanente conflito com a natureza. É como se a humanidade fosse estranha ao meio ambiente.

 

Homens e mulheres são considerados igualmente culpados pela degradação da Terra, como se possível fosse preservar o planeta sem transformar as relações econômicas, políticas, sociais, de consumo, acesso à terra, moradia e saúde.

 

Como se fôssemos todos igualmente responsáveis pela construção desta sociedade que valoriza excessivamente o lucro, o prestígio, o poder e o dinheiro a todo custo.

 

Como se uma família vivesse na encosta de um morro, numa área de manancial, nas matas ciliares, na beira dos córregos sem acesso ao saneamento básico e à coleta de lixo, simplesmente por “estilo de vida”.

 

Descobriram água em Marte. Um passo gigantesco para comprovar que existem outras formas de vida, longe da Terra. Seria fantástico conhecer habitantes dos outros planetas, não é mesmo? Enquanto isso, a vida humana na terra é cada vez mais desprezível. Alguns seres humanos são tratados como um mero inconveniente. Com exceção de alguns bolsões de riqueza, a vida de homens e mulheres se mostra a cada dia mais descartável e irrelevante nas periferias do mundo.

 

Esperamos ansiosamente conhecer novas formas de vida, mas desprezamos as que já conhecemos. Refugiados de guerras santas, políticas, civis, por petróleo, ou apenas para fomentar o mercado de armas, lutam para existir em algum canto do planeta. As populações desempregadas, perdendo direitos sociais e garantias trabalhistas não culpam os sistemas políticos e econômicos. Ao contrário, nos culpamos uns aos outros. Os trabalhadores do mundo perderam seus instrumentos de solidariedade.

 

Perderam a capacidade de se enxergarem como trabalhadores. Vivem num limbo individualista. Um abismo de alienação. A ninguém parece ser conveniente ter um refugiado de guerra por perto. No entanto, somos todos refugiados. E não fugimos para Marte. Estamos aqui, com nossos antepassados mais próximos que em algum momento fugiram da violência, da miséria, das guerras ou das secas. Este é o mundo dos refugiados e dos retirantes, só que alguns se estabeleceram primeiro.

 

Gastamos bilhões para descobrir se existem bactérias, vírus ou fungos em Marte. O conhecimento científico é realmente fantástico! Não há como negar. Mas enquanto isso, muitas formas de vida desaparecem ou estão ameaçadas de sumir da face da terra. Animais lindos e fantásticos. Plantas, árvores, raízes e ervas compõem a nossa biodiversidade apenas para que um dia sejam patenteadas em novos medicamentos que renderão fortunas para quem explora o medo da vida e o medo da morte.

 

A viagem mais fantástica de todas ainda está por ser realizada. Uma expedição heroica aos castelos e fortalezas que devem ser derrubados. Haveremos de desbravar a nossa própria natureza. A evolução mais incrível e esperada por todos não será tecnológica. A grande e necessária evolução será nas relações humanas. Não importa se conquistaremos Marte. Conquistaremos a Terra e a grande civilização a ser constituída será a nossa, com uma existência mais justa, livre, generosa, igual e solidária. Que este seja o planeta da humanidade! E que não precisemos mais sentir vergonha de Ser Humano.

 

 

Rafael Castilho é sociólogo e professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Blog: http://blogdorafaelcastilho.blogspot.com.br/2015/09/enquanto-isso-longe-de-marte.html

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