Transporte público: lucros gigantescos de uns, tragédia diária de muitos
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- Raquel Rolnik
- 18/04/2016
Na semana passada, vieram à tona na imprensa as investigações sobre os chamados “Panama Papers”, um acervo de mais de 11 milhões de registros financeiros do escritório de advocacia panamenho Mossack Fonseca, que expõem proprietários de offshores no mundo inteiro e acordos financeiros secretos envolvendo políticos, empresários e celebridades.
Offshores são empresas localizadas em paraísos fiscais (onde a tributação é baixíssima ou inexistente) e que muitas vezes são utilizadas para esconder recursos não declarados no país de origem. No Brasil, a lei permite a abertura de empresas em paraísos fiscais desde que estas sejam declaradas no Imposto de Renda e a origem dos recursos seja identificada. Se tiverem sido originados no país, estes devem ser tributados. Além disso, envios de recursos para o exterior também precisam ser informados ao Banco Central.
Nos “Panama Papers” constam 1,7 mil registros com endereço no Brasil. Entre esses, me chamou a atenção o nome de Jacob Barata, conhecido como o “Rei do ônibus” no Rio de Janeiro. O empresário é dono do Grupo Guanabara, que atua nos setores de transportes, concessionárias, hotéis e imóveis. No ramo do transporte urbano, o grupo possui mais de 20 empresas, em várias regiões do país, incluindo, além do Rio de Janeiro, estados como São Paulo, Minas Gerais, Ceará, Pará, Paraíba, Piauí e Maranhão, com frota de cerca de 6 mil ônibus. O grupo também atua em Portugal.
Vale lembrar que o nome de Jacob Barata aparece também na lista do Banco HSBC da Suíça, divulgada em fevereiro no vazamento que ficou conhecido como Swissleaks. De acordo com o Blog do Fernando Rodrigues (UOL) – um dos veículos que investigam com exclusividade no Brasil tanto os Panama Papers quanto o Swissleaks –, as investigações sobre essa lista mostram que 31 sócios, diretores e parentes de donos de empresas de ônibus do Rio de Janeiro tinham contas no HSBC suíço em 2006 e 2007.
Em resposta ao Blog do colunista do UOL, a família Barata negou os dois casos: disse que não tem contas nem na Suíça nem no Panamá.
Independente de serem ou não legais – e isso precisa ser investigado –, essas informações nos levam a crer que o transporte público é uma atividade extremamente lucrativa, tanto que seus concessionários são empresários de sucesso, com milhões de dólares depositados em contas no exterior e offshores. Lembremos que foi com o lucro de suas atividades como concessionária de transporte público, por exemplo, que a família Constantino fundou a companhia de aviação Gol.
O fato é que o transporte coletivo de massas no Brasil é um setor muito cartelizado, controlado por um punhado de empresas familiares. Para garantir o monopólio, essas empresas, historicamente, têm forte controle sobre os processos políticos decisórios em âmbito municipal, começando pelo financiamento de campanhas de candidatos a vereador e prefeito, de praticamente todos os partidos. Se um prefeito tenta fazer licitações que incluam outras empresas, os tradicionais “donos” do setor mobilizam diversas estratégias para impedir as mudanças, recorrendo ao judiciário e chegando até mesmo a paralisar o serviço e, com isso, provocar a ira da população contra prefeituras.
Além disso, as contas do serviço de transporte são uma verdadeira caixa-preta. São enormes as dificuldades que as próprias gestões municipais do serviço enfrentam para “entrar na planilha” e, a partir daí, arbitrar os verdadeiros custos – e lucros – das empresas.
Recentemente, aliás, a prefeitura de São Paulo contratou uma auditoria independente para fazer isso e enfrenta até hoje questionamentos por parte das empresas.
É inaceitável, portanto, que toda vez que se discuta o abusivo valor da tarifa do transporte público recorra-se ao argumento de que os custos são altos e a margem de lucro dos concessionários é baixa. Assim, de onde vêm as centenas de milhões de dólares depositados em contas do exterior que os Panama Papers e o Swissleaks acabam de revelar?
O paradoxo é que a qualidade do serviço prestado ao usuário não é nem um pouco proporcional à lucratividade do setor. Além de pagar caro, quem anda de transporte público ainda tem que lidar com desconforto, insegurança, superlotação, inexistência de horário, insuficiência de trajetos, motoristas mal treinados, entre outras questões.
Chegamos a um ponto, porém, em que não dá mais para que tudo continue como está. Se indignar com milhões depositados em paraísos fiscais é um começo. Mas enfrentar o nó do cartel do ônibus é a tarefa muito mais ampla e urgente da qual não podemos prescindir. Ano a ano, quando prefeituras anunciam aumentos de passagens, mobilizações acontecem em todo o país. Junho de 2013 foi um marco, mas as questões levantadas naquele momento ainda estão por ser resolvidas.
Raquel Rolnik é arquiteta, urbanista e relatora da ONU pelo direito à moradia.
Texto publicado originalmente no Portal Yahoo!.