Naufrágios de migrantes: pecado do mundo
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- Frei Marcos Sassatelli
- 17/06/2016
“Cordeiro de Deus, que tirais o ‘pecado do mundo’, tende piedade de nós!”.
Os naufrágios de migrantes são hoje uma das faces mais cruéis do “pecado do mundo”: pecado social, pecado estrutural.
Na última semana de maio, aconteceram três naufrágios de migrantes, que faziam a rota entre a Líbia e a Itália, com pelo menos 1000 mortes.
Segundo estimativa feita pela Organização Internacional para a Migração (OIM), o número de mortes este ano na travessia do Mediterrâneo cresceu 34% em comparação com os cinco primeiros meses de 2015. A entidade - com base nos relatos dos sobreviventes - estima que até o dia 29 de maio, 2.443 pessoas morreram ou desapareceram nas diferentes rotas no Mediterrâneo.
Sempre segundo cálculos da OIM, os mortos entre 1º de janeiro e 31 de maio do ano passado foram 1.828. Em 2015 a estimativa do número total de pessoas mortas no local foi 3.770.
Federico Soda, da OIM em Roma, diz: “Essa é uma emergência humanitária no deserto e no mar, onde milhares estão morrendo (...). Sem o notável trabalho de equipe de resgate, o número de mortes seria maior”.
Stefanos, um jovem eritreu, que sobreviveu a um dos naufrágios da última semana de maio, relata: “A água estava entrando no barco, mas tínhamos uma bomba para tirá-la. Quando acabou o combustível da bomba, pedimos mais ao capitão do barco à nossa frente (e que rebocava o segundo), mas ele disse ‘não’. Neste momento, não tínhamos mais nada o que fazer. Havia cerca de 35 mulheres e 40 crianças perto de mim: todas morreram” (Folha de S. Paulo, 1º de junho de 2016, p. A9).
Defensores dos direitos dos imigrantes reivindicam a abolição de uma lei que criminaliza a imigração ilegal. "Emigrar não é um crime”. Zeid Ra'ad Al Husein, Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, criticou duramente as políticas migratórias "cínicas" adotadas pela União Europeia (UE). “A Europa dá as costas aos emigrantes mais vulneráveis do mundo e corre o risco de transformar o Mediterrâneo em um vasto cemitério".
Zeid exortou os governos dos países da UE a adotarem "um enfoque mais corajoso e menos cínico", acusando-os de ceder aos movimentos xenófobos em ascensão no bloco. Ele criticou também a falta de vias legais implantadas para os emigrantes e demandantes de asilo. "Estou horrorizado, mas não surpreso com a tragédia".
"Estes mortos e as centenas que os precederam nos últimos meses eram previsíveis". Destacou que as mortes eram o resultado do fracasso da governança e de uma "imensa falta de compaixão". Elhadj As Sy, presidente da Federação Internacional da Cruz Vermelha, criticou a posição da UE e lançou um apelo para "por um fim à indiferença que transforma o Mediterrâneo em um grande cemitério".
Quanta crueldade! Quanta desumanidade!
Com frequência, os migrantes fazem a travessia em embarcações pouco resistentes, superlotadas, sem coletes salva-vidas e com combustível insuficiente. Tommaso Fabri, da ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF) da Itália, afirma: “Passou da hora de a Europa ter coragem de oferecer uma alternativa segura que permita que essas pessoas venham sem colocar vidas em risco” (Folha de S. Paulo, 30 de maio de 2016, p. A8).
O Papa Francisco, em julho de 2013, escolheu Lampedusa (ilha italiana do Mediterrâneo, entre a Sicília e a costa da Tunísia e da Líbia), uma das principais portas de entrada para a União Europeia, para a sua primeira viagem fora de Roma. Essa escolha é altamente simbólica para um Papa que colocou os pobres e os excluídos no centro do seu pontificado.
Com sua visita, o Papa Francisco quis sensibilizar a ilha de 6000 habitantes e o país para a necessidade de acolher essas pessoas e garantir os seus direitos. Ao mesmo tempo que elogiou Lampedusa como "exemplo para todo o mundo", pediu: “tende a coragem de acolher aqueles que procuram uma vida melhor”.
Apelou a um "despertar das consciências" para combater a "globalização da indiferença" em relação aos imigrantes e lamentou: "perdemos o sentido da responsabilidade fraterna e esquecemo-nos de como chorar os mortos no mar”.
“Ninguém chora estes mortos". Criticou “os traficantes" que "exploram a pobreza dos outros" e desabafou: “o resto da Itália e a Europa têm de ajudar-nos!”. Enfim, lançou um apelo à Igreja para que cumpra, com dedicação e amor, sua missão de servir os imigrantes.
Em 3 de outubro de 2013, o papa Francisco chamou de "vergonha" o naufrágio que matou pelo menos 92 imigrantes procedentes da África e pediu a todos os fiéis que rezem por eles e por todos os refugiados do mundo. "Tenho que mencionar as numerosas vítimas deste enésimo naufrágio. A palavra que me vem à mente é vergonha. É uma vergonha".
No início de julho de 2014, o Papa escreveu uma mensagem à Arquidiocese de Agrigento para fazer a memória do primeiro aniversário da sua visita à Lampedusa - que foi lida na Praça Garibaldi da ilha durante as cerimônias que evocaram a visita de Francisco - lamentando, mais uma vez, a “lógica da indiferença” perante os naufrágios que continuam a acontecer no Mediterrâneo.
“Um ano depois, o problema da imigração está se agravando e outras tragédias seguiram-se, infelizmente, a um ritmo acelerado. O nosso coração tem dificuldades em aceitar a morte desses nossos irmãos e irmãs, que enfrentam viagens extenuantes para fugir dos dramas, da pobreza, das guerras, dos conflitos, muitas vezes ligados às políticas internacionais”.
Em sua mensagem, Francisco diz ainda regressar “espiritualmente” ao Mediterrâneo para “chorar com quantos estão na dor” e para “lançar as flores da oração de sufrágio pelas mulheres, os homens e as crianças que são vítimas de um drama que parece não ter fim”. “Tudo isso deve ser enfrentado não com a lógica da indiferença, mas com a lógica da hospitalidade e da partilha, a fim de tutelar e promover a dignidade e a centralidade de cada ser humano”.
Na Sexta-feira Santa de 2016, Francisco - numa bonita Oração - dedicou parte de sua mensagem aos naufrágios dos migrantes: “Ó Cruz de Cristo, vemos-te ainda hoje no nosso Mediterrâneo e no Mar Egeu feitos um cemitério insaciável, imagem da nossa consciência insensível e narcotizada”.
Meditemos as palavras, cheias de ternura e amor, do Papa Francisco! Não podemos ser insensíveis e indiferentes diante dessa tragédia humana! É um crime, que clama a Deus por justiça!
Todos e todas podemos fazer algo. “Vitória, tu reinarás! Ó Cruz, tu nos salvarás!
Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, é doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção – SP), professor aposentado de Filosofia da UFG.